Sobre criações, mentiras & trapaças: a transformação pela lorota
Terceiro episódio da minissérie sobre tricksters | Como os trapaceiros criam, com suas mentiras, a comunicação, a linguagem e os vários significados
Já faz tempo desde a última vez que nos encontramos aqui, entre atrasos e feriados. Talvez essa seja a última minissérie temática antes de um hiato necessário para defender a tese & repensar os rumos (e a existência) da newsletter.
Enquanto não chegamos lá, não faz mal retomar o plano de viagem e ver o que já visitamos antes de prosseguir. Na primeira parada, Hermes e Wakdjunkaga apareceram em sua natureza divina: revelaram seus papéis de sábios e tolos; de deuses criadores da cultura e dos andarilhos que afinam a fronteira entre o divino e mundano.
Suas caminhadas e sua inteligência surgem de um apetite irrefreável — fome, tesão, curiosidade... Por serem flexíveis, não possuem instintos próprios para a caça. Caem em diversas armadilhas. Atrapalham-se com facilidade — mas aprendem e se adaptam. Jogam a força da presa contra ela, fazem os búfalos correrem em direção ao precipício.
Ao habitarem essa posição entre a caça e o caçador, precisam ser espertos para saciar suas vontades. Se necessário, roubam e mentem. A ladroagem reorganiza o mundo. Divide os recursos do espaço sagrado com aqueles que habitam o mundo terrestre — relação que sugere a criação dos primeiros sacrifícios como um produto dos primeiros roubos.
As mentiras, também. Por meio das histórias e justificativas esguias, o mentiroso propõe uma nova ordem no mundo concreto por meio da linguagem e seus símbolos. As lorotas dos deuses trapaceiros são caminhos para propor uma nova realidade — veredas que, como veremos nas próximas edições, são repletas de escatologia, humor e sem-vergonhice. E quem melhor que o trickster, aquele que caminha entre os mundos, para lidar com as linguagens?
O primeiro episódio em áudio foi sobre Hermes e vamos retomá-lo na edição de hoje. Se quiser escutar novamente, está aqui. No entanto, a narrativa que Inês Breccio, contadora de histórias, trouxe essa semana foi de Susanoo, a fúria das tempestades. Você pode acompanhar os episódios com transcrição aqui no Substack ou em qualquer agregador de podcasts, como o Spotify.
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Então, vamos nessa. Pé na estrada!
Mentirosos habilidosos
Além de ladrões, os tricksters são mentirosos. Mas não de forma simplória. Suas mentiras têm um propósito. Mais do que negadoras da realidade, são subversivas: carregam paradoxos e brincam com o fluxo temporal das narrativas divinas. Hermes, por exemplo: se ele é um dos deuses do Olimpo e um de seus domínios é o dos rebanhos, como poderia ter roubado os bois de Apolo?
Retomaremos isso depois, mas “talvez o essencial quando se afirma que o trickster tem o pé na estrada seja dizer que seu ‘contexto é sem contexto’”, escreveu Lewis Hyde em A astúcia cria o mundo. O autor explica que “estar em uma determinada vila ou cidade é encontrar-se situado; estar na estrada é estar entre situações e, portanto, não orientado das maneiras como as situações nos orientam”.
Apesar de guiado pela voracidade, sua condição andarilha indica um conhecimento que falta às outras entidades: o da linguagem. Na cosmologia fon, a deusa da criação deu à luz a sete filhos e repartiu o cosmos em seis esferas bem definidas: a caça, o ferro, os animais, a terra, o céu e o mar. Cada um dos primeiros com um território próprio... e um idioma único.
Isolados e fragmentados, nenhum dos seis filhos e nem a mãe conseguiam se comunicar. Sobrou para o sétimo, o caçula trapaceiro Legba, a tarefa de estabelecer a comunicação. Hyde explica que “Legba causa o estranhamento dos outros seis filhos. Como Exu, Legba é um deus das disputas. Em uma história, foi quem fez com que o céu e a terra brigassem e se separassem; em outra, aprendemos que a deusa suprema que caminhava pela terra se retirou por causa dos modos traiçoeiros e sujos de Legba”.
Entre os fon, é Legba quem adota a posição de “linguista cósmico”, conhecedor da língua dos irmãos e da mãe. Esse conhecimento coloca os tricksters em uma posição privilegiada, de flexibilidade e astúcia.
Uma das formas aprofundar a discussão sobre a natureza desenraizada dos trickster é a partir da análise que Lewis Hyde faz do termo grego “tropos”, que significa algo como girar, mudar ou virar. Átropos, por exemplo, era a moira responsável por cortar o fio da vida. Relacionada ao fim da vida, seu nome traz a carga do imutável, inflexível, inexorável.
Por outro lado, ser politrópico é estar voltado para várias direções; ser versátil, viajado, flexível. Para os gregos, a versatilidade e a capacidade de adaptação eram virtudes importantíssimas: a Força precisa parear com a Astúcia.
Apenas três personagens foram chamados de politrópicos pela literatura grega: Hermes, Odisseu e Alcibíades. Entre eles, Alcibíades é o menos conhecido e foi um general e político com alguns fracassos e várias perseguições no currículo. Já Odisseu é um personagem retratado diversas vezes nos trabalhos de Homero, a Ilíada e, principalmente, a Odisseia.
Em suas jornadas, Odisseu se safou de diversos percalços, conheceu ilhas e outras nações, passou fome e mentiu. Apesar de não ser um deus, também não é um humano qualquer: é um herói. Em outra edição, nas Anemonações de Adônis #2, falei sobre a relação da mentira, a fome a consideração das divindades pelos mortais — a necessidade de se alimentar fazia com que os humanos fossem vistos com aproveitadores nada confiáveis, mentirosos capazes de qualquer coisa para agradar seus anfitriões e as respectivas mesas de jantar.
Como o texto vai abrir assim que o projeto de leitura for retomado, vou destacar nessa edição apenas como ser politrópico e compreender a linguagem se relacionam aqui.
Em determinado momento da sua trajetória, Odisseu precisa caminhar até que um remo seja confundindo com uma pá de joeirar, uma ferramenta usada para espalhar sementes. Ou seja, o que Odisseu precisa é caminhar até que um objeto usado no mar seja confundido com um usado para espalhar grãos no ar; que ele saia de uma região litorânea para uma nas colinas.
Essa mudança demonstra uma compreensão contextual. Exige-se de Odissseu que ele compreenda que um mesmo objeto pode ter dois significados em lugares diferentes e “apenas a pessoa que viajou (de fato ou na mente) pode perceber que o significado de um objeto (ou de uma palavra) está ligado a sua localização ou a seu contexto”, escreve Hyde.
Ao longo da sua... odisseia, Odisseu se disfarça, mente e faz brincadeiras. Adapta-se e transforma-se sempre que necessário, a ponto de nos fazer questionar: quem é o Odisseu de verdade? Talvez, não haja uma essência na identidade. Talvez, a verdadeira natureza de Odisseu é transformar-se, como o utensílio que carregava, sendo um remo aqui e uma pá acolá.
Hyde afirma que tais histórias sobre “tricksters e rastros” são “histórias sobre leitura e escrita”. Gosto de pensar em outros termos, histórias sobre signos, interpretações e a própria natureza dialógica da linguagem.
O Hino a Hermes oferece um caminho para tal afirmação.
Hermes e a oferta da carne
Na mitologia grega, Apolo é o deus da profecia. É ele quem sabe ler sinais. No entanto, as pegadas de Hermes o confundem. Os rastros do gado não indicam norte ou sul. Apolo está desorientado. Hyde reflete que Hermes “parece estar inventando algo que seu irmão mais velho nunca viu. Os rastros que ele deixa têm múltiplos significados, significados mascarados e contextuais, ambiguidade (…): a ideia de que o Hino a Hermes é um mito de criação para a mente que é mestre dos sinais”.
Lewis Hyde se debruça na carne para mostrar essa potência da criação de significados e do desenvolvimento da linguagem. Em seu Hino, Hermes chama a carne de sêma, em uma tradução pode ser um marco ou um troféu, mas também um signo. Pendurar a carne e saborear a sua fumaça é, sim, um troféu: sua astúcia lhe rendeu frutos. Mas é também a criação do sacrifício porque desloca a carne de seu lugar, faz com que a mesma carne tenha significados diferentes a depender do contexto.
Como vimos no primeiro episódio do Coral.Wav, Hermes reparte a carne em doze pedaços iguais. Doze pedaços repartidos para os doze deuses do Olimpo, sendo eles, geralmente: Zeus, Hera, Poseidon, Atena, Ares, Deméter, Apolo, Ártemis, Hefesto, Afrodite, Dionísio e... Hermes. Do primeiro roubo, nasce a primeira mentira. O recém-nascido deus trickster, em sua artimanha, reimagina o mundo e se coloca ao lado dos grandes deuses e ignora sua condição de refugiado das cavernas.
Os tricksters têm uma consciência reflexiva. Eles compreendem a vida simbólica e o poder da imaginação. Hermes não só cria a possibilidade de as coisas significarem algo, mas reflete sobre isso — a inteligência que surge da fome, a flexibilidade daquele que não tem métodos próprios ou instintos.
Importante destacar que o mito de Hermes traz peculiaridades culturais: em primeiro lugar, a astúcia se aperfeiçoa na mente imaginativa que contém o impulso da fome e deixa de ser um mero estômago — uma contenção feita por vontade própria e não por forças externas. Além disso, carrega uma “duplicidade ávida” típica do trickster: seu roubo escapa da lógica de culpa ou perdas e inclui um planejamento, já que o fruto aparece só no fim da história, com sua consagração. Ele transforma a carne em sacrifício e se satisfaz com o alimento dos deuses, é um roubo planejado, imerso em uma nova narrativa.
Mas não sem limitações. É uma astúcia que, como vimos na edição passada, está ligada às necessidades vorazes do trickster. Não foi de bom grado que Hermes criou o sacrifício, mas procurando satisfazer as próprias necessidades. O trickster caçula viu a longo prazo, brincou com as significações, traçou planos e ocultou suas intenções de maneira dissimulada.
Em A astúcia cria o mundo, Lewis Hyde fala da primeira mentira que lembra de contar aos pais quando criança, como uma tentativa de experimentar a solidez do mundo adulto; uma “ficção motivada”; um “mundo artificial enviado para ver se consegue se integrar e sobreviver”. Com sua mentira, Hyde propôs uma nova ordem para a realidade e pôs a narrativa à prova.
As mudanças podem ser simples, como os famosos “já estava assim quando eu cheguei”, “não fui eu quem quebrei” ou “não sujei, não”. Cada uma dessas frases, no contexto adequado, propõe uma reorganização da realidade. No entanto, o que o trickster propõe não é só uma “afirmação contrafactual”, mas o cancelamento da oposição verdade/mentira para criar um novo espaço.
Por exemplo: Como vimos, Hermes não fica conformado com sua posição fora do espaço legítimo, tampouco se restringe a uma negação simples, de roubar a carne por toda a eternidade — ele cria sua terceira opção, graças ao roubo e à mentira, e se coloca ao lado do irmão Apolo e dos outros deuses.
Retomando o começo da edição, o deus-trapaceiro caçula propõe uma narrativa. Não se sente culpado, não confessa. Ele tem um plano. Até porque, na projeção que o deus recém-nascido propõe, a conclusão é: ele se consagra como um deus do Olimpo e recebe, entre outras coisas, os rebanhos como domínio. Sendo assim, como ele poderia ter cometido um roubo se os gados pertenciam a ele?
Uma interpretação interessante que Lewis Hyde faz em seu livro está relacionada com o momento em que Hermes apresenta a lira para Apolo e canta uma canção “celebrando os deuses imortais e a negra terra, dizendo primeiro como surgiram e como a cada um coube seu lote” (Versão do Hino a Hermes na coletânea Hinos Homéricos: tradução, notas e estudo).
“Suspeito que devemos imaginar isso como uma teogonia criada pelo próprio Hermes, um remodelamento de velhas histórias”, escreve Hyde. Aqui, Hermes se colocaria ao lado dos deuses, explicaria como ele ganhou suas conquistas e esteve ao lado dos deuses. Reorganizou o mundo a seu modo... depois de abalar as estruturas.
Lewis Hyde explica da seguinte forma:
Nessa mitologia [grega] o roubo é o começo do significado. Para dizê-lo de outra forma, a proibição do roubo é uma tentativa de aprisionar o significado, de impedir sua multiplicação, de preservar uma ‘essência’, o ‘natural’, o ‘real’.
Definir o roubo é definir uma propriedade, repartir o mundo. Os tricksters não se importam com essa divisão, eles desafiam a estrutura e propõem alternativas, e uma das formas de visualizar essa quebra é pelo humor, pela escatologia e pela falta de vergonha.
Quando Hermes mente a primeira vez para Apolo, o irmão mais velho não fica bravo: ele ri, perplexo com a ousadia. Apolo pega o bebê trapaceiro, que solta um pum fedorento, e o leva para Zeus. Lá, repete a mentira e Zeus ri. Não há raiva ou cólera, mas uma aceitação da nova ordem do mundo.
Em outra história, Krishna rouba e come as manteigas que estão em sua casa. Yasoda, sua mãe, havia proibido que ele fizesse isso. Quando ela vê a situação, o questiona. Até que, por fim, pergunta para ela: “as coisas que estão na nossa casa não são nossas? Então, como eu poderia ter roubado a manteiga para comer se ela é também é minha?”. Yasoda, é claro, ri.
Krisha também inverte o sujo e o limpo. Em uma das história, come a terra do chão e sua boca, repleta de lama, se preenche com o universo. No último episódio do podcast, Susanoo empesteia o território sagrado da irmã com suas fezes, traz a morte ao local divino & fere costumes e tradições.
Esse deslocamento é o que nos faz refletir sobre os significados. Descontextualizar coisas, refletir sobre o que é cada uma delas e possibilita que as narrativas e histórias sejam reescritas.
É comum a ideia de que os tricksters são os responsáveis pela invenção da linguagem — ou, ao menos, de que eles criam a conversa onde antes havia apenas silêncio. Se as esferas se tornam estéreis ou incomunicáveis, se as práticas retiram o encanto das conversas, é o despudorado trickster que abre o caminho para as vozes.
Gosto particularmente de uma reflexão em que Lewis Hyde cita Nietzsche, falando que “a verdade é uma ilusão que esqueceu que é ilusão”:
Esquecer a ilusão é tornar-se inconsciente dela, e nessas histórias é a fome, creio, que ameaça perturbar qualquer inconsciência como essa. A fome incita ‘meros estômagos’ a revelar a natureza fictícia das verdades ilusórias, como se o ácido estomacal, quando não tem mais nada sobre o que agir, despisse a ilusão de sua amnésia protetora. (...) Mas essa revelação é apenas metade do poder do trickster no que diz respeito à ‘verdade’. Assim como pode escapar de uma armadilha, depois dar meia-volta e fazer a sua própria, ele pode desconstruir uma ilusão, depois dar meia-volta e conjurar outra.
O trickster incorpora o que me parece ser um princípio básico da linguagem: a construção é sempre dialógica. Nenhum discurso ou significado surge de um espaço individual, neutro ou carrega uma essência. As coisas são construídas no contato com o outro. Como a história de Legba tão bem demonstra, a individualização é estéril e inacessível. É preciso que haja poros, fronteiras, trocas. Só assim a linguagem circula.
Além disso, essa equação traz um poder escondido: narrar uma história se torna a criação uma realidade — ou, para os mortais, a proposição de uma realidade possível que precisa passar pelas provas do mundo concreto. Em Floresta é o nome do mundo, Ursula K. Le Guin apresenta uma língua em que a palavra para deus e para tradutor é a mesma. Na narrativa, o tradutor age como um trickster: ele fala a língua de outros lugares, como a dos sonhos. Quando traz significados das outras esferas para a da sua comunidade, gera uma coisa nova. Por isso, traduzir é criar. O conceito de hiperstição, trabalhado na Anemonações #6, também versa um pouco sobre isso.
Artistas carregam um pouco dos tricksters consigo. A mente para criar precisa ser flexível & reflexiva, compreender as categorias que ordenam o mundo e escolher quais subverter. Novos mundos são propostos; outras formas de repartir os quinhões por aí. Talvez não seja o bastante para modificar o mundo como um deus, mas quem sabe? Se der para saciar algum desejo no caminho, ótimo. Com a obra no mundo, a barriga fica um pouco cheia... até que a voracidade ataque de novo e a andança recomece.
Obrigado por ler até aqui!
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Nos últimos dias, eu:
Publiquei o episódio: Coral.wav — Tricksters: Susanoo, a fúria das tempestades;
Abri o texto: Anemonações #6 — Quando o capitalismo é tudo que há…;
Participei do episódio: 30:MIN 422 — Literatura no Multiverso da Loucura;
Participei do episódio: 30:MIN 423 — “O Amante de Lady Chatterley”, de D.H. Lawrence;
Participei do episódio: 30:MIN 424 — “Salmo para um robô peregrino”, de Becky Chamber, merece o prêmio?”;
Participei do episódio: 30:MIN 425 — “Escute as feras”, de Nasstasja Martin;
Participei do episódio: 30:MIN 426 — Como você faz para ler teatro?.
Logo no começo falando da linguagem e criação, e depois do contexto ser o não-contexto eu já lembrei da citação de Úrsula. Adorei!
muito bom! 💛