Sobre criações, mentiras & trapaças: um apetite irrefreável...
Segundo episódio da minissérie sobre tricksters | Afinal, por que a fome é tão importante na jornada dos trapaceiros?
Além da natureza divina-cultural-criadora, os tricksters são marcados por um apetite avassalador — tanto alimentício quanto sexual. É a busca para saciar essa fome que desenvolve sua astúcia e os leva a mentir & roubar… e cada uma dessas armadilhas ardilosas chega no mundo humano como uma mudança na ordem sagrada ou apresenta o desenvolvimento da linguagem e dos seus significados.
Na história de Hermes, é o roubo e a mentira que colocam o deus no panteão do Olimpo — e representam a possibilidade que ele teve de projetar e visualizar um novo mundo por meio da linguagem.
Como falamos na outra edição, os textos dessa temporada são acompanhados de um conteúdo em áudio. Inês Breccio, contadora de história, narra os deuses tricksters para acompanhar as edições quinzenais mais longas. Você pode acompanhar os episódios com transcrição aqui no Substack ou em qualquer agregador de podcasts, como o Spotify.
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Então, vamos nessa. Pé na estrada!
Um apetite irrefreável…
Antes de se aprofundar na fome dos tricksters, precisamos fazer uma para em Kungalas, onde o chefe e a sua esposa tiveram um menino, filho único. Seu pai fez o possível para mantê-lo fora de perigo. Colocou as camas próximas. Foi rigoroso na higiene… mas nada disso impediu a doença e a morte que acometeram o menino quando ele cresceu.
Chorando, o chefe convidou a tribo e o povo animal para sua casa. Lá, ordenou que o corpo do filho fosse estendido e seus intestinos retirados e queimados, e assim fizeram os servos: queimaram as entranhas nos fundos da casa e deixaram o corpo na cama que o garoto ocupava em vida, onde seu pai e sua mãe iam para chorar todas as manhãs.
Numa dessas vezes, antes da luz do sol surgir, a chefe encontrou um jovem, brilhante como fogo, deitado onde o corpo estivera. Ela chamou seu marido e disse-lhe: “Nosso amado filho voltou à vida”. O chefe se dirigiu ao jovem:
—É você mesmo? Meu filho amado?
— Sim, sou eu. — respondeu o jovem brilhante.
A alegria voltou para o coração dos pais.
Quando a tribo entrou para consolar os chefes, o menino explicou para eles: “O céu estava muito incomodado com os lamentos constantes de vocês e então me enviaram para confortar suas mentes”. Todos ficaram felizes porque o príncipe caminhava entre eles novamente e seus pais o amavam mais do que nunca. Prova disso é que, no dia seguinte, o jovem brilhante saiu para um passeio refrescante. Enquanto estava fora, o chefe subiu a escada para a cama do filho e encontrou ali o antigo cadáver do menino! Mas, ah, como ele amava seu filho novo...
Havia um só problema: o jovem brilhante não comia. Mastigava um pouco de gordura e logo cuspia. A chefe estava ansiosa. Tinha medo de que o filho morresse novamente. Todas as manhãs, dois grandes escravos — um homem miserável e sua esposa, ambos chamados Boca em Cada Extremidade — traziam todo tipo de comida para dentro de casa. Eles botavam a comida no fogo e se empanturravam. Enquanto isso, o chefe insistia em dar comida ao filho reluzente e ele insistia em não ter fome.
Um dia, os chefes saíram para visitar outras regiões e os dois escravos entraram com um grande pedaço de carne de baleia. Boca em Cada Extremidade colocaram a gordura no fogo e comeram. Enquanto se banqueteavam, o jovem brilhante foi até eles.
— O que os deixa com tanta fome? — perguntou aos dois grandes escravos.
— Estamos com fome porque comemos as cascas das nossas canelas.
— Vocês gostam do que comem?
— Sim, querido!
— Então, também experimentarei as feridas que vocês falaram...
— Oh, não, meu querido! Não deseje ser como nós.
— Vou apenas provar e cuspir — explicou o príncipe.
Então o escravo cortou um pedaço da carne de baleia, colocou uma casca de sua canela e deu para o príncipe brilhante — que colocou a porção na boca, provou e cuspiu novamente. Enquanto o jovem voltava para a cama, Boca em Cada Extremidade falou para o outro:
— Ó, homem mau! O que você fez com o príncipe?
Quando os chefes voltaram da visita, encontraram o príncipe faminto. Sua mãe ordenou que os escravos alimentassem o amado filho com as comidas mais ricas e, conforme os escravos traziam a comida, o jovem comia. Sua fome não acabava. Quanto mais comida chegava, mais ele comia.
O jovem comeu por vários dias e, em pouco tempo, todas as provisões da casa acabaram. Com um apetite insaciável, o príncipe começou a se banquetear nas casas dos outros — e foi extinguindo cada uma das despensas. Triste e envergonhado pelo filho, o chefe se pronunciou:
— Vou mandar meu filho embora antes que nos falte comida.
O povo concordou e o chefe chamou seu filho. Pediu para que ele se sentasse.
— Meu querido filho, vou mandá-lo para o interior, para o outro lado do oceano — disse o chefe, entregando ao filho uma pequena pedra redonda, uma manta de corvo e a bexiga seca de um leão-marinho, repleta de todos os tipos de fruta. — Quando você se cansar de voar pelo oceano, jogue a pedra redonda no mar e você poderá descansar nela. Quando chegar no continente, espalhe as frutas pela terra. Também espalhe as ovas de salmão e de trutas nos rios e riachos. Assim, não vai lhe faltar comida enquanto viver nesse mundo. Agora, vá.
Assim, o jovem vestido de corvo partiu… e seu pai o chamou de Gigante.
O Corvo, também conhecido por Txä'msem e Wigyet, é o trickster da mitologia Tsimshian — grupo localizado próximo da Columbia Britânica e do Alasca. Suas histórias podem ser encontradas em diversos lugares, como nos livros da dupla de pesquisadores Richard Erdoes e Alfonso Ortiz e em sites preocupados com a preservação dos conhecimentos de nativos norte-americanos, como o First People e o Native Languages.
Dentro do ciclo de narrativas trickster dos Tsimshian, esse episódio é conhecido como Corvo se torna voraz e dá início há uma série de acontecimentos — como a criação do nosso mundo como ele é. Aqui, é visível como os deuses trapaceiros têm uma voracidade insaciável e talvez essa seja uma de suas características mais definidoras.
O Coiote, trickster de outras mitologias da América do Norte, recebeu de presente uma búfala mágica que se regeneraria para aplacar a fome dos que a possuíssem. O problema é que o Coiote estava com muita fome e devorou a búfala, sem deixá-la se regenerar, e a dádiva da comida infinita acabou… e o trickster tornou a vagar pelo mundo.
É a fome e o tesão que, geralmente, colocam os deuses trapaceiros em suas andanças sem rumo e, da necessidade de aplacar os desejos intensos, surge a inteligência potente dessas divindades. Como escreve Lewis Hyde em A astúcia cria o mundo, o deus acaba “dotado de maior agilidade mental, perito em conceber e desmascarar ardis, especialista em ocultar os próprios rastros e em não se deixar iludir pelos recursos usados por outros para camuflar os deles”.
Com certa frequência os tricksters foram responsáveis pela invenção de ferramentas e armadilhas. Ensinaram a aranha a tecer sua teia, criaram o primeiro anzol para pesca. Tal inventividade não silencia a dualidade complexa da figura: ele continua como herói cultural e tolo. Da mesma forma, é um predador ardiloso e uma presa estúpida.
Em uma das narrativas nórdicas (e de maneira bastante resumida), Loki provoca os deuses e encontra abrigo numa casa com portas voltadas para os quatro pontos cardeais, assim, pode vigiar o avanço dos perseguidores qualquer direção. Enquanto aguardava, o trapaceiro Loki tramou a primeira rede de pesca e, quando os deuses chegaram, ele fugiu rapidamente. Transformou-se em peixe e nadou pelo riacho que corria próximo à casa. Os deuses encontraram a casa, a invenção e capturaram Loki com a própria rede.
A lógica de caça do tricksters não faz parte do binômio predador e presa. Eles são ladrões de iscas. Muitas vezes são animais, como o coiote e o corvo, que se aproveitam da caça de outros animais (mas uma afirmação que deve ser feita com cuidado, já que o coelho e a lebre também representam trapaceiros em diversas culturas). Tricksters fogem da lógica opositora e dualista. O problema que enfrentam é que precisam comer sem serem comidos e saciam a fome subvertendo a do outro, jogando sob as próprias regras e condições.
Nesse caminho, Hyde faz uma comparação interessante: aponta o Coiote como um caçador sem método, sem instintos. Por isso, muitas vezes acaba faminto, perdido e sujo. É possível pensar, inclusive, na fome, como um indicativo dos que estão fora do espaço comunitário da alimentação comunitária e sem os conhecimentos de caça, forrageamento ou plantação. Além disso, a sujeira e a falta de vergonha são formas de desafiar a ordem do mundo como está. Desafiando os pontos fixos de como a realidade é categorizada, o trickster se perde.
A questão da sujeira e do despudor será retomada outra hora, mas, como não tem nenhum “método de fábrica”, o trickster precisa aprender coisas novas, armadilhas diferentes. Como não pode se fingir de morto ou exalar um cheiro forte, precisa aprender com quem consegue… e aprende da pior maneira possível. Bate a cabeça no fundo de um rio, perseguindo o reflexo de frutas. Morre afogado numa tentativa de pesca. Prende sua cabeça em um crânio ou fica coberto de fezes, da cabeça aos pés.
Por outro lado, é isso que faz com que o trickster seja astucioso: sua inteligência é flexível. Talvez seu único instinto seja o de ser um imitador. Quando aprende as armadilhas, a falta de instinto deixa de se tornar um problema para ser uma solução. Pode evitá-las, subvertê-las, adaptar-se. Tampouco está preso em uma única abordagem, enquanto o animal que se finge de morto está fadado a se fingir de morto.
Por isso, as armadilhas dos tricksters muitas vezes jogam o instinto da presa contra ela mesma. Elas transformam as tocas de animais em labirintos e os cozinha lá dentro. Búfalos correm em direção ao penhasco e à morte certa… e a visualização desses diferentes usos e contextos é o que indica, por exemplo, a capacidade de mentir (tema da próxima edição).
Dentro da lógica dessa busca de alimentos, temos dois desfechos possíveis. Como Hyde escreve, ou “os tricksters são deuses que se tornam comedores vorazes, tomados por intestinos; ou então são seres cheios de apetite que se tornam um pouco mais divinos por meio de alguma diminuição dos órgãos de apetite”. Em outras palavras, “comida limitada ou apetite limitado”.
Uma forma de visualizar essas possibilidades de desdobramentos é organiza-las espacial ou hierarquicamente. Nos níveis mais baixos, o trickster é dominado pelo apetite; nos mais altos, está livre da voracidade ou tem fome de alimentos etéreos. Além disso, a restrição do apetite pode ser simples e não intencional; ou ser fruto de uma ação consciente e planejada. As histórias que acompanhamos até aqui podem ajudar.
Podemos pensar no Wakdjunkaga, o trickster do primeiro episódio. Ele começa no nível mais baixo, isolado e dominado pelo apetite. Começa sua peregrinação buscando saciar seu fome: engana e devora diversos filhote, faz seu pênis navegar pelo lago em busca de mulheres, infiltra-se em uma comunidade para escapar do inverno. Mas, de forma acidental, seus órgãos do apetite são podados — partindo do individual ao coletivo.
Depois de enganar e cozinhar diversos animais, dilacera, assa e se alimenta acidentalmente do próprio intestino — reduzindo-o ao tamanho do que habita nossos corpos hoje. Posteriormente, seu pênis é acidentalmente devorado por um esquilo, gerando sementes para os seres vivos daquele mundo. Com o pênis em tamanho reduzido, o ciclo do plantio e a agricultura foram instaurados enquanto o apetite foi podado.
Já Corvo da história da abertura tem um rumo diferente. Quando morre, tem seus intestinos queimados intencionalmente pelo pai e chefe. O corpo passa a habitar o espaço divino, longe dos apetites humanos. É o contato com as cascas de Boca em Cada Extremidade dá origem ao apetite irrefreável e o leva nas peregrinações e ao estabelecimento do mundo com comida ilimitada pelo plantio e cultivo de peixes.
Para saciar sua fome depois de ter sido fisgado pelo anzol da mortalidade, Corvo sai do espaço dos céus e traz os alimentos para a terra. Assim, pode saciar seu apetite ilimitado, mas precisa instaurar os ciclos.
Por fim, “se o trickster no ciclo do Corvo desce do céu para o mundo da pesca e do trabalho”, escreve Hyde, em Hermes “encontramos um trickster aparentado que deseja percorrer o mesmo caminho em sentido oposto. Ao decidir não comer a carne, Hermes está se preparando para viver no Olimpo. Comer carne é ficar confinado ao reino mortal, e Hermes tem objetivos mais ambiciosos. Não quer ser um menino da caverna, prefere ser um príncipe resplandecente. Tem fome do alimento dos deuses. (...) Contra as leis, roubou uma vaca e a matou, como fez o Coiote, mas tendo violado esse limite, impõe outro em seu lugar. (...) Nessa história, portanto, vemos a inteligência de um ladrão de carne impor uma limitação ao apetite e, ao fazê-lo, evitar a morte, anzol oculto na carne”.
Ou seja: ao fazer uma restrição planejada do próprio apetite e almejar apenas o alimento dos deuses, Hermes modifica todo o panteão grego e faz o primeiro sacrifício em homenagem a si mesmo.
Sacrifícios e a repartição da comida dos deuses
A própria ideia do sacrifício, que envolve muitos deuses tricksters, está diretamente ligada com a questão do gigantesco apetite. Por exemplo, em certo momento da história, Exu também devorou todas as comidas da aldeia. Sua fome era tão implacável que nem mesmo a morte a satisfez. Para aplacar sua voracidade, Exu ganhou o direito de sempre receber as primeiras oferendas.
Não é à toa que a relação entre fome e ritual seja articulada pela figura do trickster. Hyde descreve o sacrifício, ou as oferendas, como uma “partilha ritual”. Isso quer dizer que, quando pensamos nesse ato, visualizamos uma partilha anterior e sua decorrente alteração.
É provável que o sacrifício tenha sido criado por alguma artimanha ou trapaça que deu ao menos poderoso uma parcela pequena do alimento do mais poderoso — quer dizer, não significa que os tricksters inventaram diretamente o sacrifício. Antes, inventaram a trapaça da redistribuição. Depois, sim, o sacrifício ritual que celebra tanto a nova ordem das coisas como, também, o truque da redistribuição primeira.
É possível traçar um paralelo entre a história do oráculo de Orunmilá e a partilha dos alimentos dos deuses. Dar o poder de adivinhação aos humanos não fez com que eles tivessem o conhecimento divino, mas deu a proposição de uma ponte. Os mortais continuam mortais e os imortais, imortais. No entanto, por um breve momento, há uma troca parcial dessas esferas, um vislumbre desse conhecimento inalcançável.
Da mesma forma, os sacrifícios permitem uma troca curta de alimentos e poderes entre as esferas — e o fato dessa interação ser possível decorre, provavelmente, de alguma tramoia realizada pelos tricksters.
Por conta de sua astúcia, Hermes percebe o anzol oculto na porção das carnes que prepara. Sabe da armadilha da mortalidade prestes a fisgá-lo, sabe das trapaças que estão por aí, por isso as evita. Hermes muda o jogo: resiste à fome e ao seu desejo de carne, mas se alimenta da fumaça ritual dos deuses. Com escreve Hyde, “Hermes rouba o gado e, dedicando a fumaça do sacrifício a si mesmo, consome apenas a porção que não lhe fará mal”.
Enquanto isso, Gigante veste sua pele e segue seu caminho em outra direção. Depois do episódio que abre a edição, Corvo se torna voraz, temos a continuação: o roubo da luz.
Gigante vestiu sua pele de corvo e deixou os céus, voando sobre as águas. Em sua travessia, não encontrou a luz do dia. Apenas escuridão. Quando se cansou, deixou cair no mar a pedra redonda que seu pai lhe dera. Ela transformou-se numa grande rocha, onde ele pousou, descansou e retomou sua jornada até o continente, na foz do rio Skeena. Ali, espalhou ovas de salmão e de truta, dizendo:
— Que todos os rios e riachos tenham todos os tipos de peixes!
Além disso, abrindo a bexiga seca do leão-marinho, retirou as frutas e as espalhou sobre a terra.
— Que todas as montanhas, colinas, vales e planícies tenham todos os tipos de frutas!
Mas Gigante tinha um problema. Quando o céu estava limpo, a luz que vinha das estrelas era muito fraca. Se estivesse nublado, tudo que havia era uma noite negra. As pessoas estavam aflitas e Gigante também ficou preocupado com a dificuldade de conseguir comida no escuro.
Lembrou-se de que havia luz em seu antigo lar. Então, Gigante decidiu pegá-la. Vestiu sua pele de corvo, voou até os céus, procurou um buraco e entrou. Lá, tirou a pele de corvo e a deixou por perto. Viajou até chegar em uma nascente perto da casa do chefe dos céus, sentou-se e esperou. Logo a filha do chefe apareceu com um balde para buscar água. Gigante viu que ela se aproximava e se transformou em uma folha de cedro e flutuou. Sem notar a folha, a filha do chefe bebeu a água e engoliu.
Em pouco tempo ela ficou grávida e deu à luz um menino. Os chefes da vila ficaram encantados e cuidaram do bebê enquanto ele crescia. Mas o bebê começou a chorar, gritava “Hama, hama!” o tempo todo e ninguém conseguia acalmá-lo.
A solução só veio quando um dos sábios compreendeu o pedido e disse:
— Ele está chorando pelo mā.
Era a caixa que Gigante lembrava na qual a luz do dia era guardada. Ela estava pendurada no canto da casa do chefe e, imediatamente, foi retirada de lá e colocada para perto do fogo. O menino parou de chorar e começou a brincar com o mā dentro de casa. Rolou com a caixa por quatro dias inteiros... até que o chefe se acostumou com as brincadeiras da criança. Quando o chefe deixou de prestar atenção no bebê, Gigante agarrou o mā, colocou nos ombros e saiu correndo.
Alguém, ao vê-lo fugir, gritou:
— Gigante está fugindo com o mā!
Os exércitos do céu saíram em seu encalço, mas a perseguição não deu em nada. Gigante alcançou o buraco no céu, vestiu sua pele de corvo e voou para baixo carregando o mā, enquanto seus perseguidores tiveram que voltar para a casa de mãos vazias.
Gigante desceu perto da foz do rio Nass. Com a caixa do mā nas mãos, subiu o rio envolto na escuridão que ainda reinava. Um pouco mais acima, começou a ouvir o barulho das pessoas que estavam pegando olachens em redes de pesca nas canoas. Os pescadores estavam trabalhando muito e Gigante pediu:
— Joguem aqui na praia alguma dessas coisas que vocês estão pescando, meu querido povo!
Não houve resposta. Gigante repetiu e eles se recusaram. Mesmo que estivesse usando sua pele de corvo, as pessoas sabiam que era Gigante. Chamaram-no de grande mentiroso e o insultaram.
— Joguem-me algum peixe ou eu vou quebrar o mā! — ameaçou Gigante. Quatro vezes ele proferiu suas ameaças. Quatro vezes elas foram ignoradas.
Sem outra alternativa, Gigante quebrou o mā... e então fez-se o dia. Um vento norte começou a soprar forte e os pescadores-sapos foram arrastados rio abaixo, até uma grande ilha montanhosa. Eles tentaram escapar e fugir, mas não conseguiram. Grudaram nas rochas e foram congelados pelo vento frio. Tornaram-se pedras e lá permanecem até os dias de hoje.
Como escreve Lewis Hyde, é o Corvo que “cria o mundo, dá a ele luz solar, os peixes e os frutos, mas cria-o ‘como ele é’, um mundo de constante necessidade, trabalho, limitação e morte”. Acrescentaria, também, que é um mundo repleto de contexto, significados e deslocamentos. É um mundo com linguagem... e, também, com algumas mentiras.
Obrigado por ler até aqui!
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Nos últimos 15 dias, eu:
Publiquei o episódio: Coral.wav — Tricksters: Exu, o senhor das encruzilhadas;
Participei do episódio: 30:MIN 421 — “Luxúria”, de Raven Leilani.
Amando muito esta temporada!