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Tricksters: Exu, o senhor das encruzilhadas
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Tricksters: Exu, o senhor das encruzilhadas

Ouça agora | Descubra a história de Exu e da vez em que ele apresentou a arte da divinação para a humanidade

Oi, eu sou o Arthur Marchetto e você está ouvindo o Coral.Wav.

Esse podcast faz parte do projeto da Ponto Nemo, uma publicação temática, organizada em temporadas, que chega quinzenalmente no seu e-mail ou em qualquer outro aplicativo de leitura.

Nessa primeira temporada do podcast, vamos ouvir histórias sobre os Tricksters, deuses trapaceiros, astutos & criativos, provocadores de mudanças na organização do mundo. O primeiro texto escrito já foi publicado e lá falamos da natureza dessas divindades e de duas obras que moldam a percepção desses trapaceiros.

Para me ajudar nessa tarefa, convidei a pesquisadora e contadora de histórias Inês Breccio, que estabeleceu e narrou as histórias que fazem parte dessa temporada.

Se você não conhece a Ponto Nemo, é só clicar no link da descrição (clique aqui) ou procurar Ponto Nemo e meu nome no Google que você encontra bem fácil. Lá, você vai encontrar todos os episódios de forma transcrita e receber, quinzenalmente, os textos da temporada temática desse semestre.

Você também pode financiar o projeto e auxiliar na manutenção de todos os episódios e edições. Dá para encontrar o financiamento coletivo da Ponto Nemo e do Estantário no Catarse ou no Substack. Onde você achar mais conveniente.

No episódio de hoje, vamos escutar a história de Exu, o senhor das encruzilhadas.

Obrigado pela companhia e boa história.


Exu, o senhor das encruzilhadas

por Inês Breccio

Exu era um daqueles que não tinha nada. Não tinha riqueza, não tinha fazenda, não tinha profissão. Não tinha nem missão. Andava vagabundeando pelo mundo, não tinha paradeiro. Mas aí, um dia, o Exu passou a ir até a casa de Oxalá. Ele ia na casa de Oxalá todo dia. Indo para a casa de Oxalá, ele se distraía vendo o velho fabricando seres humanos.

Mas, depois da distração, ele começou a prestar muita atenção. Muitos outros iam também visitar Oxalá, mas ficavam um pouquinho ali, uns quatro dias, e não aprendiam absolutamente nada. O Exu, não. Ele ficava lá prestando muita atenção.

Todo mundo que ia até lá, claro, levava oferendas para o velho orixá. Falavam: "Nossa, que lindo, que ótimo, que obra maravilhosa" e iam embora. O Exu, não. O Exu ficava ali e ele foi ficando, foi ficando.

Sabe quanto tempo ele ficou? Dezesseis anos. Prestava muita atenção nos mínimos detalhes das modelagens. Ele aprendeu como fabricava as mãos, os pés, os olhos, os pênis. Também prestava atenção na boca, nas orelhas, nas vaginas. E durante dezesseis anos ele ficou ali, ajudando Oxalá. Ele não perguntava, não. Ele só observava, prestava muita atenção e acabou aprendendo tudo.

Um dia, Oxalá disse para o Exu ficar lá na frente da casa. Numa encruzilhada. Por aquela encruzilhada, passava todo mundo que entrava lá. Assim, ele podia olhar quem que tinha que entrar ou quem não tinha que entrar. Ele ia deixar passar só quem tivesse trazido uma oferenda para Oxalá, porque cada vez mais humanos Oxalá tinha que fazer e ele não queria perder tempo. Ele não podia ficar lá recebendo os presentes, conversando. Ele não tinha tempo para essas visitas, ele tinha muito o que fazer. Então, ele pediu para Exu ficar lá na encruzilhada que assim ele podia ajudar e separar aquelas pessoas que poderiam entrar e colher os ebós que viriam para ele, os presentes, todas as oferendas. Ele recebia e entregava para Oxalá.

E aí, o Exu ia fazendo seu trabalho e decidia quem entrava para poder encontrar com Oxalá. O Exu estava trabalhando tão bem, tão bem, que Oxalá resolveu que ele tinha que resolver uma recompensa. Então, quem viesse ver Oxalá, também tinha que pagar alguma coisa para Exu. Quem estivesse voltando da casa de Oxalá, também tinha que pagar alguma coisa para Exu, e o Exu estava sempre ali, a postos, guardando a casa de Oxalá, armado de um ogó, que é um porrete enorme. Assim, aquelas pessoas que fossem indesejáveis, em um instantinho, só de olhar para aquele ogó iam embora. Ele também punia aquelas pessoas que tentassem dar uma escapadinha, dar uma espiadinha, que burlasse a vigilância de Exu.

Ele trabalhava bastante, viu? Muito. Então, foi ali mesmo que ele resolveu se estabelecer. Fez a sua casa ali, na encruzilhada. Ganhou o seu lugar e a sua casa e Exu, então, ficou rico e poderoso. Ninguém mais, até hoje, pode passar na encruzilhada sem pagar alguma coisa para Exu.



Era um tempo muito difícil. A terra estava sofrendo demais. Maltratada pela seca, ou por alagamentos terríveis, ou ainda por frio, um frio intenso. Esses lugares estavam assim. Claro, os homens que habitavam essas terras estavam todos doentes, pobres, totalmente infelizes. Mas sabe por que que estava tudo isso acontecendo?

Porque os homens, descendentes dos deuses, não se lembravam mais deles. Não alimentavam mais os deuses, que também brigavam entre si. Oras, pouca comida, né? Então, travavam guerras assombrosas. Para poder melhorar essa situação, só se os homens voltassem a alimentar os deuses. Assim, quem sabe, com os deuses satisfeitos, os homens poderiam continuar a gozar dessa proteção dos deuses e essas desgraças, que tinham se abatido sobre toda a face da terra, iam poder deixar de existir.

As coisas iam acontecendo sempre do mesmo jeito. Cada vez mais desgraças. Aí, um dia, o Exu estava cansado dessa situação e resolve fazer alguma coisa. O primeiro lugar que ele foi, foi até Iemanjá. Quem sabe ela pode ajudar, né? Mas sabe o que foi que ela disse? "Não vai conseguir nada, pois o Xapanã já fez os homens sofrerem com doenças, epidemias e, mesmo assim, nada. Ninguém veio oferecer sacrifício nenhum. Ele podia até matar os homens, mas não ia adiantar nada. Eles não se importam. Xangô também mandou raios, mas nada. Não adianta ameaçar os homens. Quem sabe, se você mostrar para eles uma coisa que fosse tão boa, tão boa, que eles sentissem vontade de ter e que para isso eles tivessem que continuar vivos, talvez pudesse dar certo".

Exu, então, foi procurar Orungã. Assim que Exu chegou, ele disse: "eu sei porque você veio, porque os dezesseis deuses têm fome e é preciso dar aos homens alguma coisa que eles gostem". Ele disse que conhecia uma coisa que poderia fazer isso, uma coisa grande que poderia ser feito com os caroços de uma palmeira, os caroços de dendê. Ele falou para o Exu: "arranja esses coquinhos e entende o seu significado. Assim você poderá reconquistar os homens".

Exu foi buscar essa palmeira e esses coquinhos de dendê. Andou, andou e encontrou o lugar onde estavam essas palmeiras, só que ali estava cheio de macacos. Os macacos estavam todos povoando aquele espaço. Ele ficou quietinho para poder não anunciar que estava ali e foi pegando bem devagarinho os dezesseis coquinhos. Mas na hora que ele pegou, de verdade, ele não sabia o que fazer. Orungã não disse que ele tinha que entender os significados? Pois ele ficou lá com os coquinhos na mão, pensando. Foi pensando, pensando e foi falando alto: "e agora, o que que eu vou fazer com isso?".

Um dos macacos ouviu e disse para ele: "bom, agora que você conseguiu esses dezesseis coquinhos, sabe o que você vai ter que fazer? Andar pelo mundo. Você vai andar por dezesseis lugares e, em cada lugar, você vai perguntar o que que significa esses coquinhos. Mas não é só isso, além de perguntar, vai ter que ouvir dezesseis histórias, dezesseis oráculos, e recolher dezesseis odús, que são as predestinações, os destinos. Mas você tem que lembrar que em cada história você vai encontrar uma sabedoria. Com certeza, isso vai ajudar os homens e você vai juntando esses odús. No final de um ano, depois que você andar bastante, você vai ter aprendido o suficiente, com certeza. Pensa... Dezesseis vezes dezesseis odús... Daí você volta com toda essa sabedoria lá onde vivem os deuses e aí eles vão ensinar os seus descendentes, os homens, o que aprendeu. Com certeza, vão cuidar de todos vocês, e de você, Exu, de novo".

Exu fez isso direitinho, orientado pelo macaco. Foi andando, andando, andando e depois voltou para Olorum e mostrou aos deuses, como ele tinha combinado, tudo que ele aprendeu. Os deuses acharam ótimo e trataram de ensinar os homens porque, quando eles jogavam os dezesseis coquinhos, eles podiam traçar os desígnios de cada um. O que que tinha sido traçado por um deus e, assim, eles poderiam saber a quantidade de mal que haveria no futuro. Os homens reaprenderam a oferecer o sacrifício aos orixás. Esses sacrifícios eram feitos para afastar os males que ameaçavam. Esses males poderiam ser conhecidos pelo ifá. Os homens, então, ficaram um pouco mais seguros e, consequentemente, ficando mais seguros, ficaram mais felizes. Mas não só os homens estavam mais felizes, é claro, os orixás também ficavam felizes.

Obrigado Exu.


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Exu era o melhor amigo de Orunmilá. Sabe como essa amizade começou? Pois eu estou aqui para contar essa história.

Primeiro, é preciso dizer que os dois são completamente opostos. Enquanto Orunmilá é um orixá calmo, responsável pelo conhecimento dos destinos, Exu busca a confusão, o ponto de intriga. Enquanto um é agitado, o outro é muito calmo. Enquanto um mostra as intenções, revela a partir das conchas tudo o que o supremo Olorum tem para dizer, o significado desses destinos todos, o Exu faz tudo para tornar essas coisas mais incertas possíveis. Enquanto Orunmilá dá o destino, Exu dá o acidente. Mesmo assim, eles se tornaram grandes amigos. Até íntimos.

Mas essa história começou em uma viagem, na verdade. Exu não foi nessa viagem, foram amigos de Orunmilá e todos esses amigos que estavam acompanhando perceberam, tinham uns olhares, para a sacola que Orunmilá levava, porque lá ele guardava o tabuleiro e os obis, que é uma noz, uma semente de uma palmeira que ele usava para ler o futuro. Esses supostos amigos de Orunmilá, a cada momento da viagem, diziam bem delicadamente: "essa sacola não está incomodando? Não seria melhor eu levar, para você ficar mais tranquilo?". Ele dizia: "não, está tudo bem". Daí vinha outro: "eu posso carregar sua sacola, eu sei que está pesada" e ele dizia: "não, não está, está tudo bem". Daí vinha outro com o mesmo pedido e eu sei que Orunmilá foi ficando tão cansado de tudo aquilo que chegou lá pelas tantas e disse: "Chega! Eu não quero mais saber de ninguém se oferecendo para levar minha sacola. Eu vou levar minha sacola e pronto".

Quando foi terminando a viagem e ele foi se dirigindo para a casa dele, ele foi pensando em um plano. Quando ele chegou lá, conversou com a mulher. O plano era o seguinte: ela ia espalhar por todos os cantos que ele, Orunmilá, tinha morrido. Ele queria ver o que que ia acontecer. Ele ia ficar bem quietinho, dentro da casa dele, esperando os acontecimentos.

E assim se deu. Os amigos chegaram e, às vezes, um ou outro chegava e já dizia: "ah, que perda irreparável! Tão triste esse momento. Deve estar se sentindo muito mal, a senhora". Aí, ela dizia: "o meu marido ficou devendo alguma coisa para o senhor?". "Não, de maneira nenhuma, não ficou devendo nada, mas ele tinha uma sacola que ele carregava sempre e ele comentou, assim, uma vez, que eu poderia tomar conta dessa sacola. Por gratidão, eu ficaria tranquilamente com a sacola." "Ah, é que a sacola se perdeu, eu não sei onde ela está." E logo se encaminhava com a pessoa para fora de casa e ele ia embora. Tudo parte de um plano.

Daí a pouco, passava uns dias, chegava mais um com a mesma história e ela perguntava a mesma coisa e ele, no final da conversa, dava um jeitinho da bendita sacola e ela dizia: "bom, se perdeu". Assim foi acontecendo até que, um dia, Exu chegou. O dia que Exu chegou, ele foi chegando bem triste e choroso, dizendo para ela da perda irreparável que era a partida de Orunmilá e ela dizia: "pois é, o meu marido ficou devendo alguma coisa para o senhor?". Ele disse: "não, de maneira nenhuma. Eu só to achando que a senhora vai ficar triste demais, não vai ter mais para quem cozinhar". Ela ficou até sensível com aquilo que ele disse, mas continuo: "tem certeza que meu marido não deixou nada, nenhuma incumbência, com o senhor?". "Não." Aí ela não aguentou e disse: "por acaso, ele não teria deixado com o senhor os instrumentos de adivinhação?". "Não, de maneira nenhuma."

Na hora que ele afirmou, negativamente, que Orunmilá não tinha deixado para ele todos os instrumentos de adivinhação, de lá de dentro do quarto Orunmilá gritou e disse: "Exu, o meu melhor amigo!".

Os dois, juntos, se abraçaram e comemoraram e, a partir daí, uma amizade indestrutível aconteceu entre os dois.


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No princípio, Olocum, Orum e Oxú, cada um tinha o seu próprio lugar. Cada um, a sua própria morada e eles ficavam lá, no seu cantinho. Olocum era o deus do mar, morava nos oceanos, nos rios. Morava na água. Oxú, deus-lua, tinha o costume de andar pelos céus, cada noite em uma direção. Ficava sempre perto das estrelas. Orum era o deus-sol, levantava-se logo de manhã, brilhava o dia inteiro, e só voltava para a casa à noite.

Um dia, e toda história tem um dia, o Exu foi até a casa do Olocum, lá nas águas, e disse: "olha, sua casa não é muito boa, não. Eu conheço alguma coisa melhor. Se você quiser vir comigo...". Ele falou: "tá bom, eu quero ver isso". Mas ele não falou só com Olocum, ele falou também com Orum e com Oxú e disse: "ah, sua casa não é muito boa, não. Eu sei de uma muito melhor" e eles disseram: "tá bom, então eu quero ver".

E aí, sabe o que ele fez? Ele trocou todo mundo de lugar. Mostrou para o Olocum a casa de Oxú. Mostrou para Orum, a casa de Olocum. E para Oxú, mostrou a casa de Orum. Trocou todo mundo de lugar.

Oxalá, o grande deus de todos os deuses, de lá de onde ele vivia podia ver tudo o que estava acontecendo. Todas as noites, ele via passar o Oxú e aí, no dia seguinte, viu Oxú passar e disse: "o que está acontecendo agora? Pois agora você está andando durante o dia?". Oxú respondeu: "é que o Exu falou que era melhor eu viver assim e eu tô conhecendo". Oxalá falou: "de jeito nenhum, Oxú. Você vai voltar para o lugar onde eu te coloquei".

Quando chegou de noite, Oxalá viu Orum passar e, em seguida, Olocum, e aí foi perguntar: "o que está acontecendo? Mas, todo mundo?" e aí eles disseram que, na verdade, foi o Exu que sugeriu. Oxalá, nervoso, disse: "pois eu quero que vocês retornem aos seus domicílios, aos seus lugares, e façam o trabalho que eu determinei".

Mas Exu não se deu por satisfeito e, por uma segunda vez, fez os três deuses trocarem de morada, outra vez. Dessa vez, ameaçou os deuses de morte. Claro que Oxalá sabia tudo que estava acontecendo e o que ele fez? Pediu para Xapanã castigar Exu e Xapanã não castigou sozinho, não, pediu para Orum ajudar. O que que Orum fez? Quando Exu abriu os olhos, ele, com aquela luz solar que ele tinha, o poder de Orum com aquela luz, cegou o Exu. Não foi só isso. Xapanã deu uma surra no Exu. Mas uma surra... que o corpo dele ficou todo machucado. Todo ferido.

Para poder ele aliviar as dores que ele sentia das feridas, ele foi se banhar em um rio. Mas não foi só para aliviar as dores do próprio Exu que ele foi se banhar no rio, foi também para livrar dos males que ele tinha porque, quando ele entrou na água, ele proferiu uma maldição: "todas as feridas que o Xapanã provocou no meu corpo passarão através da água para os homens que se banharem nela. Queimarão a todos como fogo. Quem se banhar nas águas onde eu, Exu, lavei todas essas feridas que Xapanã fez em mim vai ter varíola, vão ter cicatrizes, doenças...".

Bom, dessa maneira, a interferência de Exu no mundo atingiu os homens e permaneceu viva até hoje entre nós...


Produzido e editado por: Arthur Marchetto
Escrito e narrado por: Inês Breccio
Música: Yonder Hill and Dale, de Aaron Kenny
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