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Tricksters: Hermes, o ladrão de rebanhos
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Tricksters: Hermes, o ladrão de rebanhos

Ouça agora | Descubra a história Hermes e da vez em que roubou as vacas de Apolo para ganhar o respeito dos deuses do Olimpo
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Oi, eu sou o Arthur Marchetto e você está ouvindo o Coral.Wav.

Esse podcast faz parte do projeto da Ponto Nemo, uma publicação temática, organizada em temporadas, que chega quinzenalmente no seu e-mail ou em qualquer outro aplicativo de leitura.

Nessa primeira temporada do podcast, vamos ouvir histórias sobre os Tricksters, deuses trapaceiros, astutos & criativos, provocadores de mudanças na organização do mundo. Para me ajudar nessa tarefa, convidei a pesquisadora e contadora de histórias Inês Breccio, que estabeleceu e narrou as histórias que fazem parte dessa temporada.

Se você não conhece a Ponto Nemo, é só clicar no link da descrição (clique aqui) ou procurar Ponto Nemo e meu nome no Google que você encontra bem fácil. Lá, você vai encontrar todos os episódios de forma transcrita e receber, quinzenalmente, os textos da temporada temática desse semestre.

Se você já está ouvindo pela publicação oficial, não precisa se preocupar.

No episódio de hoje, vamos escutar a história de Hermes, o ladrão de rebanhos.

Obrigado pela companhia e boa história.


Hermes, o ladrão de rebanhos

por Inês Breccio

Essa história é a história de um bebê, um menino, bem pequenininho, que nasceu filho de Maia, uma ninfa, e de um deus. Mas não era um deus qualquer, não. Era filho de Zeus, o maior de todos. O mais poderoso.

Maia morava nas cavernas e foi por ali mesmo que ela resolveu ter o bebê. Preparou tudo para a chegada dele, deixou tudo arrumadinho. E ele chegou. Mas Hermes, o bebê, também não era um bebê qualquer, não. Pois ele nasceu de manhã. Na hora do almoço, já estava andando pela caverna e, à noite, roubando.

É. E foi assim mesmo a história.

Maia colocou ele no berço mas, assim que virou as costas, ele desceu rapidinho e ficou andando pela caverna toda, que era sua casa. Mas não ficou muito satisfeito, não. Assim que ele encontrou a porta da caverna, foi andando para fora. Queria ver as coisas, olhar o mundo. Queria conhecer.

Logo que saiu, ele encontrou uma tartaruga. Ela estava ali no chão, por acaso. Quando ele viu aquele bichinho, na hora teve uma ideia. Disse:

— Ah, vamos para casa! É perigoso para você ficar aqui fora!

Então, pegou a tartaruga, levou para dentro de casa, pegou uma colher e começou a tirar tudo que tinha dentro daquele casco... que era a tartaruga. Separou o couro e tirou toda a carne de lá de dentro e depois, com o couro esticado e mais uns dois chifres que ele encontrou e umas tripas de carneiro, começou a construir um instrumento musical: a lira.

Ele era uma criança e a lira era um brinquedo, mas com um som encantador. E aí ele tocou e cantou e cantou homenagens e brincou e cansou. Cansou e ficou com fome.

Então, guardou a lira no berço e voltou lá para fora da caverna.

Ficou andando, andando. Lá, bem em cima, assim, nas montanhas, ele viu um cercado com um monte de vacas. Um rebanho. Na hora que ele viu essas vacas, seu estômago deu uma roncada... Hm... Aquela carne macia, aquele monte de vacas apetitosas...

Não pensou duas vezes. Foi até lá. O Hermes escolheu cinquenta vacas para ele, separou as que eram as mais barulhentas e as mais gordas. E para o roubo não ser escancarado, ele bolou um plano. Primeiro, fez as vacas todas andarem de costas, de ré. Depois, pensou uma outra maneira mais eficiente ainda: amarrou em todos os rabos das vacas, galhos secos de árvore. Assim, quando elas andassem, elas mesmas iam apagando as pegadas.

Como não queria também deixar as próprias pegadas no chão, tirou as sandálias dele, jogou no rio e, naquele pé gordinho, pequenininho, ele amarrou casco de árvore, parecia carvalho, com umas tiras de grama e assim, quando ele pisava no chão, apareciam umas marcas estranhas que nem de longe lembrava uma pegada humana.

E aí ele foi andando, foi tocando aquele gado para poder esconder sua mais nova aquisição, foi seguindo o leito do rio. Queria achar um lugar seguro. No meio do caminho, começou a brincar. Brincava com o gado, fazia ele andar de lado, de ré, de frente. Quando ele olhou para lado, viu que tinha um senhor observando as peripécias que ele estava fazendo com o gado. Era um senhor que estava por ali no caminho, cuidando de umas uvas, da sua videira. E aí ele foi chegando para esse senhor e disse:

— Hm... Bonitas suas uvas, não?

O velho ficou todo feliz, disse:

— Não, são muito bonitas. Você não imagina o vinho que essas uvas produzem.

— Então o senhor pretende tomar esse vinho um dia, né?

— Mas é claro. O melhor vinho da região.

Ele disse:

— Bom, se o senhor ainda pretender tomar esse vinho, eu acho muito bom o senhor não ver nada do que você viu e nem ouvir nada do que você ouviu, entendeu?

Diante dessa ameaça, o velho só assentiu com a cabeça e concordou. E o menino, então, voltou tranquilamente para as suas vacas e seguiu o seu caminho.

Em um instantinho, achou um lugar ideal. A grama era verdinha, tinha bastante água limpa e espaço para o rebanho poder descansar. Enquanto isso, Hermes estava pensando como é que ele ia conseguir o que ele estava precisando.

E aí, achou pedaços de madeira e começou a mexer dois pedacinhos de madeira, friccionando um no outro. E, de repente, fogo! Ele tinha inventado o fogo. Aí, sim. Ele ia conseguir o que ele queria.

Pegou duas vacas, as mais macias, e arrastou de uma vez para perto do fogo. Pegando pelo chifre, quebrou o pescoço delas, virou as duas no chão, e começou a separar tudo que era couro daquilo que era carne. Pegou a carne, espetou por cima do fogo e, quando aquele cheiro estava enchendo o lugar, aquele aroma de carne assada, ele escolheu os pedaços mais tenros, o melhor, o lombo de toda essa carne. Na mesma pedra onde estava as peles, ele achou que seria uma mesa ideal para estender as oferendas aos deuses.

Então, ele cortou a carne em doze pedaços iguais e colocou sobre aquela mesa. Pronto. A mesa estava posta. O sacrifício, oferecido aos deuses.

O seu estômago tava roncando, roncando, mas o seu coração batia muito mais alto. Era um coração orgulhoso. Ele deixou aquela carne ali pendurada, como se fosse um troféu do que ele tinha conseguido fazer, e voltou para a casa bem rapidinho. Abafou o fogo e resolveu voltar para a casa antes do dia amanhecer.

Ele voltou tão rápido que nenhum ser vivo conseguiu ver nem rastro, nem nada. Chegou num instantinho. Chegou dentro da caverna, dentro da casa e dentro do berço junto com a lira que ele tinha feito.

Mas pensa... você acha que a Maia não percebeu? Claro que percebeu, ela era a mãe. Assim que ele entrou debaixo das cobertas no berço, fazendo de conta que já estava dormindo, já veio a Maia dizendo:

— Ah, seu moleque danado. Como é que você pode chegar a essa hora, com tanta imprudência? Bem que eu senti que seu pai fez de você um malandro. Você ainda vai causar muito problema.

O Hermes, de lá de dentro do berço, dizia:

— Mãe, eu sou uma criança tão inocente. Sou até medroso. Não precisa me assustar. Só estou preocupado, na verdade, em dar o melhor para você e para mim. Afinal de contas, é melhor a gente ficar todos os dias com os deuses mais prósperos do que ficarmos nessa caverna escura, né? Você vai ver, vou conseguir a mesma honra e respeito que meu irmão, o Apolo. E se meu pai não quiser me dar por bem, tudo bem! Faço questão, então, de ser o maior dos ladrões.

Enquanto eles estavam discutindo, a Maia brava com ele e ele bravo dizendo para a Maia, o dia surgiu. Então, Apolo foi ver o rebanho dele. Quando ele bateu o olho, viu que estavam faltando algumas vacas. Começou a contar, contar... hm... não é que estava faltando mesmo?

Quando Apolo começou a ficar nervoso, olhou para o chão e viu aquele monto de areia remexida, foi andando e deu de cara com quem, adivinha? Com o mesmo velho que o Hermes tinha encontrado. Aí, lógico, Apolo foi lá, chegou perto do velho e perguntou:

— Bom dia, senhor. Por acaso, viu alguém tocando umas vacas por aqui? Sabe que é, eu fui roubado e queria saber se o senhor viu alguém passando por aqui com esse gado.

O velho disso.

— Ah, meu filho, eu estou tão velho. Tão velho que não vai dar para confiar no que os meus olhos viram e nem no que os meus ouvidos ouviram. Imagina se eu ia ver uma criança conduzindo cinquenta vacas, fazendo um zigue-zague, andando de lá para cá, fazendo as vacas andarem de ré. Ninguém ia acreditar.

Nessa hora, Apolo olhou para o chão e viu que eram as mesmas pegadas que estavam perto de onde estava o rebanho. Todas ao contrário. Além disso, ele olhou para cima e viu um pássaro, que disse para ele:

— Olha o seu irmão caçula.

Na hora que ele falou isso, Apolo pensou: Ah, só pode ser o Hermes. Ele foi direto para as cavernas onde ele sabia que o Hermes estava. Mas foi furioso entrando na caverna, já foi brigando e dizendo:

— Menino, onde estão as minhas vacas? Seu ladrãozinho. Você roubou as minhas vacas. Você tem que me contar, se não eu vou jogar você lá no Tártaro, nas trevas tão fatais que nem sua mãe vai conseguir te tirar de lá!

Hermes bem quietinho, fez de conta que estava acordando e foi dizendo, com cara de sono:

— Quanta grosseria! Você veio buscar bois? Vacas? Mas eu não vi nada. Não sei de nada, não ouvi nada. Eu nasci ontem. Eu juro pelo meu pai que eu não sou o responsável por isso.

Apolo foi percebendo que o Hermes estava fazendo uma brincadeira com tudo isso e foi tirar o Hermes do berço para ter uma conversa séria. Quando ele pegou o Hermes e tirou do berço...

— Ah, seu molequinho safado. Que porquinho... Mas eu já sei como vou resolver esse problema.

E o Hermes continuava falando:

— Não fui eu quem roubei as suas vacas. Você está vendo alguma vaca por aqui? Não vi ninguém que tivesse roubado! Eu só ouvi dizer por aí, mas quanto isso não tenho nada a dizer. Se você quiser resolver seus problemas, você devia pedir ajuda para uma outra pessoa muito mais importante que eu, para Zeus, por exemplo. Não para mim.

— Calma. Eu também já pensei nisso. Na verdade, eu acho melhor a gente ir para lá agora.

Era exatamente isso que o Hermes queria escutar.

Quando os dois chegaram lá no Monte Olimpo, imagina só a figura. Zeus só olhou para aquela criança pequenininha dando a mão para o Apolo, aquele ser grande, aquele homem feito. Quando ele olhou os dois, disse:

— Apolo, o que que você está fazendo aqui?

— Pois é, eu trouxe essa criança recém-nascida para você ver o que podemos fazer. Dar o seu veredito. Olha, pai, nunca vi ninguém tão pilantra quanto esse bebê. Você acredita que ele roubou as minhas vacas, fez elas andarem de ré e ainda deixou umas pegadas muito estranhas para ninguém poder encontrar. Ainda escondeu as vacas, voltou para casa sem que ninguém visse nada e, quando eu fui lá pedir explicações, ele mentiu descaradamente, disse que não roubou e que não me devolver as vacas.

Zeus ficou quietinho e esperou Hermes dizer a versão dele da história, do que tinha acontecido.

— Pai, sabe o que é? Eu vou falar a verdade. Eu acabei de nascer, eu nem aprendi a contar mentiras ainda. Eu estava dormindo quando ele chegou, furioso, me ameaçando e me acusando de um roubo, sem nenhuma prova, sem testemunha. Fiquei tão assustado que até... assim... alguns gases. Eu nasci ontem, não tenho como tocar rebanho nenhum Então, pode acreditar em mim. Eu não levei nenhum boi para casa. Juro, juro, juro.

Hermes fazia umas caras e bocas tão engraçadas quando ele começou a mentir que Zeus achou interessante. Só conseguiu dizer:

— Que criança velha! Meu filho, devolva as vacas para o seu irmão. Vai, devolve para ele.

Depois desse veredito, o Hermes, satisfeito, segurou a mão do Apolo, virou as costas e foi indicando o caminho onde as vacas estavam.

Quando Apolo foi chegando no lugar onde Hermes tinha indicado, ele olhou aquelas duas peles esticadas e ficou surpreso com a força daquele menino daquele tamanho para arrastar duas vacas enormes e degolar. Depois, todo o resto organizado, fogueira, as carnes esticadas.

Apolo já começou a separar as quarenta e oito vacas restantes e o Hermes não estava querendo perder o que tinha conseguido. Naquela mesma hora, ele fez um truque. Fez surgir do chão um monte de heras que foram se agarrando nas patas e nas pernas das vacas. Apolo ficou bem assustado com o poder do pequeno Hermes.

Naquele mesmo momento, enquanto crescia todo aquele mato, aquela hera, em volta das patas dos bois e Apolo estava naquela situação de assombramento, Hermes desembrulhou de dentro de uns panos que tinha levado, a lira. Começou a tirar algumas notas, brincando com o som do instrumento.

Apolo achou aquilo magnífico. Era um som único. Hermes começou a cantar uma homenagem completa, celebrando todos os feitos de todos os deuses e como cada deus recebeu aquilo que tinha. Essa música inundou o peito de Apolo. Apolo chegou para ele e falou:

— Olha, eu não sei de onde que você tirou isso, mas o som desse instrumento é maravilhoso! Vale muito mais do que cinquenta vacas. No que depender de mim, você sempre terá honra entre todos os deuses.

Hermes ficou todo contente e disse:

— Ah, Apolo. Sabe de onde eu tirei? Eu fiz para você! É um presente. Se quiser, te ensino hoje mesmo a tocar. Além disso, você se irritou à toa. Agora que as vacas estão aqui, elas vão encontrar touros e, juntos, eles vão fazer um rebanho ainda maior e outro rebanho, maior ainda, e outro rebanho, e maior ainda...

Apolo ficou até lisonjeado. Aceitou o presente e, em troca, ofereceu outro presente: um caduceu. Disse para o Hermes ser o responsável pelos rebanhos. Mas, ele tava com um pouco de medo de ser roubado novamente, e fez o Hermes jurar que ele nunca mais roubaria nada dele. E eles seriam grandes amigos, os melhores amigos.

Sendo assim, Hermes conseguiu esse espaço que ele tanto queria, ao lado de todos os outros deuses do Olimpo, e a partir daí é ele quem cuida dos ladrões, dos mercadores e dos viajantes. Também é o mensageiro perfeito, porque consegue entrar e sair dos domínios mortos, do reino de Hades.

Ele também pediu para Apolo um pouquinho dos poderes de adivinhação, mas isso ele não conseguiu. Ganhou um oráculo duvidoso... bem parecido com ele já que, mesmo ao lado dos deuses, Hermes até hoje aproveita a noite para pregar peças em mortais desavisados... como nós.


Produzido e editado por: Arthur Marchetto
Escrito e narrado por: Inês Breccio
Música: Yonder Hill and Dale, de Aaron Kenny
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