Ponto Nemo
Coral.wav
Tricksters: Susanoo, a fúria das tempestades
0:00
-13:27

Tricksters: Susanoo, a fúria das tempestades

Ouça agora | Descubra a história de Susanoo e da invenção da agricultura

Oi, eu sou o Arthur Marchetto e você está ouvindo o Coral.Wav.

Esse podcast faz parte do projeto da Ponto Nemo, uma publicação temática, organizada em temporadas, que chega quinzenalmente no seu e-mail ou em qualquer outro aplicativo de leitura.

Nessa primeira temporada do podcast, vamos ouvir histórias sobre os Tricksters, deuses trapaceiros, astutos & criativos, provocadores de mudanças na organização do mundo. Já temos duas edições escritas (episódio um e episódio dois) falando sobre a natureza dessas divindades, do seu apetite irrefreável e logo mais seguimos para falar das suas escatologias, da sua relação com ciclos e acasos.

Para me ajudar nessa tarefa, convidei a pesquisadora e contadora de histórias Inês Breccio, que estabeleceu e narrou as histórias que fazem parte dessa temporada.

Se você não conhece a Ponto Nemo, é só clicar no link da descrição (clique aqui) ou procurar Ponto Nemo e meu nome no Google que você encontra. É bem fácil. Lá, você vai encontrar todos os episódios de forma transcrita e receber, quinzenalmente, os textos da temporada temática desse semestre.

Você também pode financiar o projeto e auxiliar na manutenção de todos os episódios e edições. Dá para encontrar o financiamento coletivo da Ponto Nemo e do Estantário no Catarse ou no Substack. Onde você achar mais conveniente.

No episódio de hoje, vamos escutar a história de Susanoo, a fúria das tempestades. Fica um aviso: se estiver com uma criança por perto, vale a pena ver a história antes e checar se não corre o risco de passar por algum desconforto, tá bom?

Obrigado pela companhia e boa história.


Susanoo, a fúria das tempestades

por Inês Breccio

Essa história é de um tempo tão antigo, mas tão antigo, em um tempo em que não havia, ainda, nem sementes. Izanagi, nesse momento da história, estava carregado de maus espíritos, tomado por eles e a única solução seria se banhar em um rio para se purificar. Foi isso que ele fez, foi até um rio e começou se banhar, mas ele foi se banhando e do seu olho esquerdo surgiu a noite, a Lua. Enquanto ele continuava se banhando, do olho direito, surge a Deusa da Luz Celeste, o Sol, Amaterasu. E quando ele já estava limpando o seu nariz, da caca do nariz surge Susanoo, que fica, então, com o reino das águas, as tempestades. Era dono de um espírito furioso.

Bom, assim foi feita a divisão dos reinos... mas Susanoo não gostou muito desta divisão, não. Ficava o tempo todo pregando peças, discutindo... Então Izanagi resolveu que era hora de dar um basta nessa situação. Ordenou que Susanoo fosse embora dali, fosse para o submundo.

Para Susanoo não restava mais nada, a não ser obedecer. Afinal de contas, o que que ele podia fazer? Mas antes ele resolveu que tinha era que se despedir da Deusa da Luz Celeste, sua querida irmã Amaterasu. Lá foi ele viajar até os céus ao encontro do Sol, e quando ele subiu aos céus todas as montanhas e rios rugiram e a terra tremeu.

Mas, quando ele foi se aproximando, Amaterasu disse:

— Pronto, ele veio roubar meu reino. Mas não vai me pegar desprevenida, não.

Ela, então, dividiu seu cabelo ao meio, prendeu as mechas com pendentes preciosíssimos e se esticou toda, fincou seus pés no chão e se armou inteira, com um arco e mil e quinhentas flechas e foi logo dizendo:

— O que você quer aqui, quem foi que te chamou?

Susanoo, tranquilamente, disse:

— Calma. Eu só vim até aqui para me despedir porque, afinal de contas, eu estou indo embora. Eu tô aqui com o coração puro.

— Como é que eu vou saber se a sua intenção é boa e se seu coração é puro?

— Que motivo que eu teria? Estou indo embora. Eu gostaria de deixar uma lembrança minha e levar uma sua. Podemos fazer juramentos, produzir crianças, espíritos descendentes. Assim, eu posso demonstrar minhas boas intenções.

Bom... Ela acabou concordando. Então, deram início aos rituais: posicionaram-se um na frente do outro, fizeram os juramentos e, depois, Susanoo deu para ela sua espada, que ela quebrou em três partes, lavou no poço celeste, depois colocou na boca, mastigou, mastigou e soprou. Deste sopro, cinco espíritos femininos surgiram. Cinco deusas.

Susanoo disse:

— Agora é a minha vez, quero que você me presenteie, me dê os seus pendentes.

Ela, então, tira os pendentes preciosíssimos e dá pra ele. Ele coloca na boca, mastiga, mastiga e, num sopro, faz surgir cinco deuses. Cinco espíritos masculinos.

Depois disso feito, Amaterasu diz:

— Aqui estão as suas filhas, feitas de sua espada. Estes, meus filhos, feitos das minhas coisas.

— Viu? As filhas nascidas da minha espada são mulheres de membros fracos e coração puro. Eu, naturalmente, venci. Eu estava dizendo a verdade, vim mesmo de coração puro.

Constatando, então, a sua vitória, ficou tão eufórico... ensandecido, até. Num acesso de fúria, destruiu os campos de arroz, ainda por cima enterrou os drenos. Lá no salão onde seria comemorada a colheita, ele espalhou fezes para todos os lados e encheu de vômito por todos os cantos.

Mesmo assim, não se deu por satisfeito. Ainda foi até um outro salão, onde Amaterasu e outros espíritos tecelãs estavam tecendo vestes divinas nos seus teares. Pois ele não foi até lá, deu um soco no teto, daí abriu um buraco enorme e, lá de cima, jogou um cavalo sagrado que já tinha sido esfolado? Pior, de trás para a frente. Era um absurdo.

A correria, o desespero... O espírito que tecia junto com Amaterasu correu naquela bagunça toda, tropeçou e a lançadeira do tear acabou penetrando na sua vagina e causou imediatamente a morte desse espírito que tecia junto com a Amaterasu.

Ela ficou tão chocada vendo aquela cena toda que entrou numa caverna na mesma hora e lá ficou, trancada. Agora, tudo era noite e o mundo estava coberto por uma escuridão sem fim. Calamidades começaram a acontecer por todos os lados.

Muitos deuses se reuniram para poder pensar no que fazer, pensar numa solução. Acharam que podiam, então, arrancar uma árvore pela raiz, colocar bem na frente da caverna, pendurar várias coisas preciosas... afinal de contas, era a Deusa do Céu Celeste que estava ali dentro, e entre estas coisas, um espelho. Eles acharam que essa podia ser uma boa solução.

Chamaram outros deuses e deusas. Uma delas, especificamente, começou a dançar, mas dançar muito. Quanto mais ela dançava, mais todo mundo se animava. Os deuses riam, ela mostrava os peitos, levantava a saia, mostrava tudo. Era uma gargalhada só. Do lado de fora da caverna, era uma bagunça. Mas, do lado de dentro, Amaterasu se perguntava:

— Por que que eles estão tão alegres, afinal, tudo era escuridão?
A curiosidade foi aumentando, aumentando... e lá de fora eles gritaram:

– Olha, Amaterasu! Aqui fora tem alguém que brilha mais que você.

Pronto. Aquilo foi o que bastou. Ela foi chegando perto da entrada da caverna... e no que ela colocou o nariz para fora para ver o que estava acontecendo, pronto. Um dos deuses puxou ela dali e ela dá de cara com o espelho! Quando ela se viu refletida nele, se encantou e concordou, então, que jamais iria se esconder novamente. Daí, tudo bem, porque o mundo ficou de novo banhado de luz... da sua luz.

Bom, agora os deuses tinham era que pensar o que que eles iam fazer com aquele que causou toda essa confusão. Ah, Susanoo...

Primeiro, cortaram as unhas dos pés e das mãos e também a sua barba. Em, seguida ele foi exilado dos céus para a terra. Depois, disseram que ele teria que encher mil altares de oferendas, imagina? Ele poderia pedir ajuda da Deusa do Grande Alimento.

Acontece que, quando ele vai pedir essa ajuda e ela começa a ajudar, ela começa a tirar as delícias que iam ser servidas do nariz, da boca e do traseiro. "Imagina, ela ia preparar os alimentos assim?", ele pensou. "Não, isso é uma ofensa!" Ficou tão enfurecido que matou a Deusa.

Mas, olha só... Do seu cadáver começaram a germinar grãos. Da sua cabeça, começou a aparecer bichos-da-seda. Dos olhos, sementes de arroz. Das orelhas, espigas de painço. Do nariz, azuki. Das suas genitais, espigas de trigo, e, do seu traseiro, grãos de soja.

Esses grão foram todos transformados em sementes. Essas foram as sementes que Susanoo plantou e, depois, colheu e assim cumpriu a sua tarefa, pagou a sua multa.

Muito bem. Agora, exilado. Então, ele começou a caminhar. Foi andando, andando. Resolveu andar até o monte Torikami e lá ele foi seguindo um rio. Começou a perceber que, no rio, estavam boiando alguns hashis. Estavam descendo o rio. "Claro, se tem gente lá em cima do rio é para lá que eu vou." E não é que ele achou um casal de velhos chorando? Foi logo perguntando:

— Ué, por que vocês estão chorando?

Triste, eles disseram:

— Sabe o que é? Nós tínhamos oito filhas, mas sete já foram devoradas. Foram devoradas por um dragão que aparece aqui uma vez por ano. Agora, só nos resta uma filha e já está no tempo dele voltar novamente.

— Não precisa se preocupar, não. Eu consigo dar cabo desse dragão, mas isso tem um preço. Vocês têm que me dar a mão da sua única filha em casamento.

Os dois olharam um para o outro e disseram:

— Como é que a gente vai saber? A gente não sabe nem quem é você. Como é que a gente pode confiar?

Susanoo encheu o peito e disse:

— Mas eu sou irmão da Grande Deusa do Céu Celeste e desci do céu agora há pouquinho.

Os velhos concordaram e Susanoo tratou de transformar a moça, imediatamente, em um pente sagrado. Esse pente ele colocou no seu coque, no seu cabelo, e aí começou a dar umas ordens, uns comandos para os velhos.

— Primeira coisa, preciso que vocês fermentem um saque em oito fermentações. Depois, vamos fazer uma cerca com oito portões e, em cada portão, amarrem um barril com esse saque.

Assim eles fizeram e aguardaram. O dragão veio, cheirou e bebeu todo aquele saque. Bebeu todinho. Ficou tão tonto que rapidinho ele caiu, adormecido... Susanoo, então, se preparou: pegou a sua espada e pariu para cima da fera. Cortou seu corpo, picou e picou, e não é que dentro de uma das caudas ele encontrou uma lâmina poderosíssima?

Na hora que ele viu essa lâmina, resolveu levar para a Amaterasu só para poder contar para ela como que ele tinha vencido esse dragão, um de seus feitos maravilhosos.

Depois disso, ele tratou de voltar para a terra e encontrar um lugar ideal para poder construir seu palácio, se casar e, enfim, ter a sua seis gerações de descendentes.


Produzido e editado por: Arthur Marchetto
Escrito e narrado por: Inês Breccio
Música: Yonder Hill and Dale, de Aaron Kenny
0 Comments
Ponto Nemo
Coral.wav
Organizado em temporadas temáticas, episódios quinzenais sobre narrativas, curiosidades & outras estranhezas
Listen on
Substack App
RSS Feed
Appears in episode
Arthur Marchetto