Anemonações #6 — Quando o capitalismo é tudo que há
Considerações sobre 'Realismo Capitalista', de Mark Fisher, e 'Ruptura' ('Severance'), série dirigida por Ben Stiller e Aoife McArdle
(Texto publicado há três meses, primeiro para os apoiadores da Ponto Nemo. Se quiser receber esses textos em primeira mão e apoiar a continuidade do projeto, considere apoiar via Substack ou Catarse)
No fim de 2022, li Realismo Capitalista. Escrito por Mark Fisher, o livro é uma coletânea de alguns pensamentos do crítico inglês. Ali, encontrei respostas para alguns incômodos antigos. Quer dizer, talvez eu tenha formulado questões para inquietações disformes.
(Inclusive, a leitura da obra fazia parte do Clube de Leitura de 2022 do 30:MIN e a discussão acabou gerando um dos episódios que mais gostei de gravar. Recomendo bastante. Para escutar, você pode clicar aqui e escolher seu tocador favorito).
De forma breve, podemos destacar que Fisher nasceu em 1968, na região inglesa conhecida como East Midlands cuja história foi marcada pelo movimento operário e a luta sindical que ecoaram fortemente na vida do pesquisador. Mark Fisher estudou filosofia e literatura na Universidade de Hull entre os anos 1986 e 1989, mas foi principalmente pelos blogs que seu pensamento ficou conhecido.
Criador do K-Punk, suas ideias foram marcadas pela densidade conceitual em ideias compactas. Fisher eclodiu com ainda mais força entre os anos 2008 e 2010 — anos de crise econômica. Foi bibliografia comum entre vários manifestantes. Infelizmente, Mark Fisher faleceu no dia 13 de janeiro de 2017, aos 48 anos, vítima da depressão.
Resumindo o que Victor Marques e Rodrigo Gonsalves escreveram no posfácio da edição brasileira, publicada pela editora Autonomia Literária, podemos enumerar algumas razões para conhecer a obra do pensador inglês:
Em primeiro lugar, (a) é uma chave para compreender que o capitalismo venceu também no campo do imaginário & colonizou o inconsciente; (b) além disso, Mark Fisher nos instiga a sair da posição de resignação melancólica e a pensar um futuro possível. Por fim, (c) como disse Bong Joon-Ho, diretor de Parasita, vivemos todos em um único país chamado capitalismo, e o trabalho de Mark Fisher não dialoga apenas com a história da Inglaterra, mas faz um diagnóstico da ansiedade, angústia, saúde e insegurança do mal-estar como um todo.
Quando escreve Realismo Capitalista, Fisher está preocupado em esmiuçar o “sentimento disseminado de que o capitalismo é o único sistema político e econômico viável, sendo impossível imaginar uma alternativa a ele”. Para combater a apatia e desesperança que surge dessa sensação, o inglês se volta para as narrativas de ficção como possibilidade de (1) revelar a impossibilidade de manutenção do capitalismo e de (2) planejar realidades alternativas para o futuro.
Em ambos os casos, a noção de hiperstição se faz importante. O termo defende que narrativas e realidade compõem um sistema retroalimentado em que as ficções se tornam realidade porque, antes, foram pensadas como narrativas.
Para dialogar com Fisher, trouxe algumas percepções da série Ruptura (ou Severance, já que vi um pessoal citando o nome original). Como a série discute algumas questões bastante comuns ao realismo capitalista, achei interessante o paralelo. Aliás, a série é excelente e entendo que funciona muito bem também por causa dos suspenses. Por isso, não vou revelar nenhum ponto-chave — poder ler sem medo.
Realismo Capitalista
O realismo capitalista, resumindo brevemente, pode ser visto tanto como uma crença quanto como uma atitude. É a crença de que o capitalismo é o único sistema econômico viável, uma simples reafirmação da antiga máxima thatcherista: ‘não há alternativa’. Não se trata necessariamente da ideia de que o capitalismo é um sistema particularmente bom, mas sim de persuadir as pessoas a acreditarem que é o único sistema viável e que a construção de uma alternativa é impossível. Que o descontentamento seja praticamente universal não muda em nada o fato de que não parece haver alternativa viável ao capitalismo — não muda a crença de que o capitalismo ainda possui todas as cartas na mesa e que não há nada que possamos fazer sobre isso. — Mark Fisher, Realismo Capitalista
No começo de Realismo Capitalista, Mark Fisher retoma o pensamento sobre o fim da história, de Francis Fukuyama, e as reflexões sobre o pós-moderno, de Frederic Jameson, com o objetivo de apresentar a sensação de declínio da historicidade — a naturalização do capitalismo estabelece que tudo o que poderia acontecer, aconteceu. Nada de novo é possível.
A configuração neoliberal que vivemos é ainda mais crítica. Fisher escreve que nas décadas de 1960 e 70 o capitalismo ainda tinha visões opostas e enfrentava o problema de absorver as energias externas — como no conflito com a União Soviética. Agora, depois de incorporar o que lhe era exterior, funciona sem ter o que colonizar.
Acho curioso a relação estabelecida dentro do campo da cultura nessa configuração. Além do movimento óbvio de converter a arte e cultura em valor monetário em um processo que digere a história e o significado das obras, a retomada do pensamento de T.S. Eliot sobre o cânone e o novo adquire novas roupagens.
De acordo com Mark Fisher, o poeta inglês afirma que “o novo se define como resposta ao canônico e, ao mesmo tempo, o canônico tem que se reconfigurar em resposta ao novo”. Quando tudo é consumido & nivelado, o movimento dialético entre o novo e o canônico é esvaziado. Em outras palavras, “a tradição não tem valor se ela não não é mais contestada e modificada. Uma cultura meramente preservada não é realmente uma cultura”. Somos sufocados por pastiches, ironia, cinismo, resignação, releituras & adaptações.
No diagnóstico que surge, gostaria de destacar alguns pontos. O primeiro deles é que, nesse momento de cerceamento geral, não é possível mais visualizar um confronto de apropriação e recuperação; de subversão e incorporação. “Não estamos lidando agora, como antes, com a incorporação de materiais dotados de potencial subversivo”, escreve Fisher, “mas sim com sua ‘precorporação’: a formatação e moldagem prévia dos desejos, aspirações e esperanças pela cultura capitalista”.
Claro, podemos achar isso uma balela e pensar em como diversas obras são críticas ao capitalismo. Mas o ponto central é que o realismo capitalista mantém o anticapitalismo — a oposição é necessária porque está controlada, dentro dos limites impostos. A obra anticapitalista é boa para o realismo capitalista porque performa o anticapitalismo obrigatoriamente por meio do consumo e de maneira individualizada. Assim, “contanto que acreditemos (em nossos corações) que o capitalismo é mau, somos livres para continuar participando da troca capitalista”.
(Aqui, o discurso da caridade é particularmente interessante: bilionários como Bill Gates e eventos como os shows do Live Aid sustentam uma crença de que os excessos do capitalismo devem ser compensados com a partilha, uma crença de que o consumismo e o aumento da produção podem resolver a desigualdade sistêmica.)
Em oposição à performance anticapitalista, Fisher tece uma crítica também à postura irônica. A ironia, supostamente, imuniza pessoas contra as seduções do fanatismo, mas revela uma profunda falta de crença no futuro, esteriliza o engajamento e o papel ativo e imaginativo no mundo — por mais cool que possa parecer. Narrativas que se dizem cruas, como as de investigação noir, mostram “o mundo como ele é” e geralmente é algo criminalizado, maniqueísta e corrupto, supersaturado e dessensibilizado, cumprindo a função de manter a selvageria neoliberal como natural.
Ficções e o Real
Nesse cenário de destruição, Fisher propõe caminhos de desconstrução & reconstrução por meio da ficção. Como dissemos no começo, Fisher é um crítico cultural e o conceito de hiperstição que ele desenvolve pressupõe uma troca intensa entre narrativas e realidades.
Em uma das fases do pensador inglês, conceitos do psicanalista Jacques Lacan foram utilizados para os desenvolvimentos teóricos. Gostaria de destacar dois que surgem em Realismo Capitalista (e, claro, com os vídeos que me serviram de apoio).
O primeiro que surge no livro é o conceito de Real porque “o realismo capitalista só pode ser ameaçado se for de alguma forma exposto como inconsistente ou insustentável, ou seja, mostrando que o ostensivo ‘realismo’ do ‘capitalista’ não tem nada de realista”.
Fisher explica que “para Lacan, o Real é o que qualquer ‘realidade’ deve suprimir; aliás, a própria realidade só se constitui por meio dessa repressão. O Real é um x irrepresentável, um vazio traumático que só pode ser vislumbrado nas fraturas e inconsistências no campo da realidade aparente. Portanto, uma estratégia contra o realismo capitalista envolve invocar o Real subjacente à realidade que o capitalismo nos apresenta”.
Em um dos vídeos da série Falando nIsso, Christian Dunker destrinchou os conceitos do Simbólico, do Imaginário e do Real. Você pode conferir o vídeo completo abaixo, mas, de forma resumida, o primeiro diz respeito à constatação de que somos animais influenciados por elementos dentro de um sistema dinâmico, em que o conjunto se altera de acordo com as posições e lugares — ou seja, nada tem um significado natural.
O Imaginário está ligado à linguagem e à alienação que temos ao achar que há uma compreensão exata do que falamos, uma “expectativa de entendimento”. Dunker explica que o Imaginário é a instância do desconhecimento, paranoia e projeção, reflete uma mania do ego de imaginar que os outros são como nós.
Por fim, o Real é definido como aquilo que é subtraído da realidade para ela se apresentar como uma totalidade harmoniosa, integrada e dotada de sentido. Dunker descreve o Real como “aquilo que não tem sentido. O Real é aquilo que não se integra, o Real aquilo que é o abjeto, o heterônomo, o impensável, o que não pode ser nomeado. Aquilo que resiste e aparece para nós a partir de repetições que, por exemplo, tomam a vida de uma pessoa e ela diz ‘porque será que isso se repete?’ e não há nenhum sentido nessa repetição. Essa repetição não é nem para o bem e nem para o mal, só que ela nos perturba”.
Gostaria de destacar como o Real aparece como algo caótico & incapaz de ser classificado em categorias fixas, racionais e lógicas de vivências — e por um motivo bem pessoal. Descobri Mark Fisher nas minhas primeiras pesquisas sobre Ficção Estranha (Weird Fiction) quando li o último livro que publicou em vida: The weird and the eerie (2017).
Ali, Mark Fisher analisa narrativas (na literatura, no cinema, nas letras de música) que lidam com as categorias que elegeu como weird e eerie. O elemento em comum nessas produções é que as categorias humanas de percepção do mundo são retiradas do espaço privilegiado de centro das experiências, são narrativas que evidenciam como a linguagem e os conceitos humanos são insuficientes para compreender o mundo.
Em certo ponto do vídeo, Dunker explica que o Real é “um encontro com aquilo que é o impensável, o impossível... uma das definições do Real do Lacan é o impossível de representar. Vai designar isso que escapa ao simbólico e ao imaginário”. Por isso, penso que essa preocupação com o Real que Fisher apresenta em suas primeiras produções ecoa em The weird and the eerie.
Outro conceito que Mark Fisher usa no livro é o do grande Outro. De forma sintética, Lacan desenvolve a ideia do Outro aproximando o inconsciente e a linguagem e busca o lugar (não a pessoa) que é diferente do eu. Como a pessoa com quem me relaciono tem muitas semelhanças comigo, esse outro indivíduo não traz esse princípio de alteridade radical — afinal, consigo me identificar com ele —, por isso é visto como o pequeno Outro.
Por isso, surge a ideia do grande Outro, um espaço que representa radicalmente essa ideia daquilo que não é o eu. É o lugar simbólico em que a mensagem aparece para mim de forma invertida, é um princípio do inconsciente — como nos sonhos, nos atos falhos… São enigmáticos.
Em Mark Fisher, esse conceito é construído pelo mesmo ângulo de Slavoj Žižek e a leitura traz o grande Outro quase como sinônimo de campo social para mostrar como, dentro desse campo, há um antagonismo constitutivo. Nessa leitura, o grande Outro é a diferença, não necessariamente consciente, entre aquilo que se sabe no nível individual e aquilo que o grande Outro sabe que permite que “a realidade social ‘comum’ funcione”.
Para visualizar o funcionamento dessa lógica e mostrar como a compreensão ajuda na desconstrução do realismo capitalista, Fisher dá dois exemplos. O primeiro deles começa com uma pergunta: “Quem é que não sabia que o ‘socialismo realmente existente’ era mal-acabado e corrupto? Não os cidadãos, com certeza, bem conscientes que eram de todos os seus defeitos; e muito menos os funcionários do governo, que simplesmente não poderiam não saber. Nada disso: o grande Outro era aquele a quem se destinava o ‘não saber’”. Por isso, quando Khrushchev faz seu discurso e divulga os problemas do Estado soviético abertamente, não é mais possível acreditar que o grande Outro desconhece os defeitos.
O segundo caso emblemático que Mark Fisher traz é o do joalheiro Gerald Ratner. Fisher explica que “Ratner tentou contornar o simbólico, e falar as coisas ‘como realmente são’: em discurso após um jantar, descreveu as peças de bijuterias vendidas em suas lojas como ‘porcaria’. As consequências de tornar oficial essa avaliação foram imediatas e sérias: sua companhia perdeu quinhentos milhões de libra em valor de mercado, e Ratner perdeu o emprego. Os consumidores podiam até saber que as joias vendidas na Ratners eram de baixa qualidade; mas o grande Outro, não. E, assim que soube, a Ratners entrou em colapso”.
Para Fisher, a desconstrução do realismo capitalista passa por esses dois caminhos: evidenciar uma parte do Real que há por trás desse efeito de realidade e de destrinchar as narrativas do grande Outro. Evidenciar as incongruências por traz do discurso capitalista da catástrofe ambiental é um dos exemplos que Mark Fisher comenta no livro, já que geralmente partimos do pressuposto de que os recursos são infinitos e que podemos sair da Terra a qualquer momento.
Saúde mental & burocracia
Para terminar o panorama de Realismo Capitalista e seguirmos para Ruptura, precisamos destacar mais dois pontos: (1) a politização da saúde mental e (2) a nova configuração da burocracia.
Em primeiro lugar, Mark Fisher está preocupado em evidenciar a privatização do sofrimento e a individualização da angústia. A descrição que Fisher faz do processo é que as enfermidades são alguns dos frutos gerados pelo alto custo da disfuncionalidade do capitalismo — e ainda evidencia que a naturalização desse estado é emblemático para visualizar a atomização do sujeito.
Ao analisar a própria trajetória com a depressão desde a juventude, o crítico inglês aponta um processo de atribuição exclusivamente biológica a doenças como a depressão quando sente que, na verdade, muitas angustias surgiram de um processo de ressubordinação de sujeitos que escaparam de delimitações fronteiriças — como classe social, gênero, raça… No caso de Fisher, a identificação parte do sujeito de família operária que adquire capital intelectual e marcha rumo à Universidade, sem sentir que deveria pertencer ao local.
Por isso, Mark Fisher questiona: “em vez de atribuir aos indivíduos a responsabilidade de lidar com seus problemas psicológicos, aceitando a ampla privatização do estresse que aconteceu nos últimos trinta anos, precisamos perguntar: quando se tornou aceitável que uma quantidade tão grande de pessoas, e uma quantidade tão especialmente grande de jovens, estejam doentes?”
É importante ressaltar que ele não está negando os fatores químicos das doenças ou menosprezando a importância dos medicamentos, mas evidenciando que há mais do que apenas isso na equação, como podemos visualizar no recorte abaixo:
“A ontologia hoje dominante nega a possibilidade de que enfermidades psicológicas tenham uma possível origem de natureza social. Obviamente, a ‘bio-quimicalização’ dos distúrbios mentais é estritamente proporcional à sua despolitização. Considerá-los um problema químico e biológico individual é uma vantagem enorme para o capitalismo. (...) É óbvio que toda doença mental tem uma instanciação neurológica, mas isso não diz nada sobre sua causa. Se é verdade que a depressão é constituída por baixos níveis de serotonina, o que ainda resta a ser explicado são as razões pelas quais indivíduos em específico apresentam tais níveis, o que requereria uma explicação político-social. A tarefa de repolitizar a saúde mental é urgente se a esquerda deseja desafiar o realismo capitalista”.
No segundo ponto, Fisher aponta uma contradição na estruturação capitalista: apesar de atacar a ineficácia da burocracia nos sistemas socialistas, o capitalismo otimizou & proliferou o gerenciamento burocrático — o que não quer dizer que é ineficiente, mas aponta uma discrepância entre discurso e concretude.
Dessa modificação burocrática surge o que Mark Fisher chamou de “stalinismo de mercado”. Segundo o escritor inglês, o capitalismo tardio adotou a “valorização dos símbolos do resultado, em detrimento do resultado efetivo”, evidenciada no stalinismo. Isso quer dizer que “as metas rapidamente deixam de ser um meio para avaliar a performance e tornam-se a finalidade em si” — pesquisas e relatórios de produtividade, a vigilância constante… o espectro constante e a ação redundante é mais importante do que as ações efetivas que surgem daí (se existirem).
Pela discrepância entre como o capitalismo funciona e como ele diz que funciona, instaura-se a percepção de uma certa “ontologia empresarial”, como se o gerenciamento eficiente de qualquer organização — inclusive das que são públicas — é o que adota a gestão empresarial como base (enquanto, minando a credibilidade do Estado com o discurso neoliberal, aproveita para subordiná-lo ao mercado).
A articulação de todos os elementos que vimos até aqui — narrativas, percepções do realismo, saúde mental, burocracia — são importantes para pensar nos elementos que compõem Ruptura, como veremos abaixo.
Ruptura
[No capitalismo tardio] trabalho e vida tornam-se inseparáveis. O capital te acompanha até nos sonhos. O tempo para de ser linear, torna-se caótico, fragmentado em divisões puntiformes. Na medida em que a produção e a distribuição são reestruturadas, também é reestruturado o sistema nervoso. — Mark Fisher, Realismo Capitalista
Ruptura talvez seja umas das séries que mais gostei de assistir nos últimos anos. Lançado em 2022, o suspense conta com a direção de Ben Stiller (algo que me deixou surpreso) e Aoife McArdle e a atuação de Adam Scott, Britt Lower, John Torturro e Zach Cherry no time principal.
Ao longo da narrativa, acompanhamos o recém-promovido Mark e a equipe de refinamento de macrodados que está sob seus cuidados na empresa Lúmen: Helly, Dylan e Irving. O trabalho é bastante estranho, já que o refinamento consiste em colocar números descontextualizados dentro de caixas. Cada um tem suas teorias sobre o que de fato estão fazendo na empresa.
No entanto, o curioso é que todos esses funcionários passaram por um procedimento de ruptura: fragmentaram suas personalidades e criaram uma personalidade que não tem acesso à quem você é fora da empresa. É como se uma nova vida surgisse & compartilhasse o mesmo corpo. Memórias, sentimentos, competência. Tudo fora do campo motor/corporal adquire novas roupagens dentro do escritório.
Por isso, a aspas citada acima. Repito o trecho final: “na medida em que a produção e a distribuição são reestruturadas, também é reestruturado o sistema nervoso”. Ruptura leva a modificação do sistema nervoso ao extremo. Em seus episódios, a trama começa a se tornar complexa quando Mark encontra um ex-colega de trabalho, fora da empresa, e passa a investigar o que se passa nas entranhas da empresa responsável por quase tudo naquela cidade.
Algumas considerações temáticas
Para respeitar o suspense que a série constrói, resolvi fazer a apresentação dos diálogos entre Ruptura e Realismo capitalista por tópicos — na esperança de também incentivar quem ainda não assistiu.
Em certa medida, temos um processo de atomização dos sujeitos dentro das empresas — indivíduos que são contratos sem passado ou laços pessoais. A solidariedade é inimiga da coorporação e temos um antagonismo forte entre o individual e o coletivo, configuração que o Mark Fisher também descreve.
Curioso pensar que a série é me pareceu um tanto híbrida em relação às formas de trabalho passadas & atuais. Ali, parece haver um longevo plano de carreira ao invés das relações temporárias e informais de trabalho. A empresa ali é “quase como uma família”.
A empresa Lúmen é um exemplo curioso do “stalinismo de mercado” que Fisher apontou: as metas que os funcionários têm que cumprir não são claras; os prêmios para os que atingem são inúteis; a sensação de (auto)vigilância é constante e a estrutura impessoal da burocracia empresarial toma forma no misterioso Conselho sem rosto.
Além disso, nem os funcionários parecem saber o que fazem na empresa, nem os moradores da cidade parecem quão amplo é o leque de produtos — apenas que ela é poderosa. Penso em um trecho que o Fisher aponta que “o modo como o valor é gerado no mercado de ações depende menos do que uma empresa ‘realmente faz’, e muito mais das percepções, e expectativas, sobre sua performance (futura)”.
Fisher descreve um movimento contemporâneo de depressão hedonística — uma busca incessante & exclusiva pelos momentos de alto prazer e excitação. Como consequência, tudo aquilo que não gera um grande estímulo é entediante.
“[A depressão hedonística] é constituída não tanto por uma incapacidade de se obter prazer e mais pela incapacidade de fazer qualquer outra coisa senão buscar prazer. Há uma sensação de que ‘algo está faltando’” — entendo que a aceitação do processo de ruptura pelos personagens passa também pela renúncia de certos momentos enfadonhos.
Não é uma rejeição apenas do tédio, mas uma espécie de fuga da dor. Alguns personagens carregam seus traumas — afastados, individualizados, privativados. Compõem as dores o fato de que os danos gerados dentro da empresa são distanciados. O indivíduo externo desconhece toda dor e violência física & mental que acontece com os internos, elas são apagadas.
Fisher escreveu “a privatização destes problemas — tratando-os como causados por desequilíbrios químicos na neurologia do indivíduo e/ou por seu histórico familiar — já descarta de início qualquer questionamento sobre a causa social sistêmica”.
Além disso, no episódio do podcast 30:MIN sobre Realismo capitalista, conversamos sobre como o discurso neoliberal quer garantir o poder econômico da violência. Quando não é possível colonizar totalmente o espaço da mente, o controle extravasa para a via corporal, a violência no corpo. É o que, em certa medida, acontece na série pelas medidas disciplinares.
Antes de concluir, a série trabalha bem com alguns tipos de discurso que circulam por aí. É interessante notar a percepção de que o conhecimento técnico é desgarrado, neutro, sem ideologias; visualizar como a narrativa da empresa surge quase como uma religião a ser seguida pelos fiéis; e uma sacada interessante de como o discurso da autoajuda/coach pode funcionar.
Por fim, há uma sensação de estranheza que permeia a série. Penso que a apresentação do funcionamento do edifício, as conspirações e hierarquias faz um movimento de revelar o Real que há por baixo, como descrito por Fisher. Aproxima-se do Real por meio de uma outra face sem ser a do efeito de realidade do realismo imposto pelo realismo capitalista ao evidenciar, por exemplo, a violência e o fanatismo presentes na cultura empresarial.
Narrar para desmontar
Para não esticar mais, quero concluir retomando a importância que Fisher coloca nas narrativas. O pensador inglês apresenta o neoliberalismo como um movimento de decomposição. Por isso, precisamos trabalhar na recomposição. É um processo voltado para o futuro, não para o passado.
O que Mark Fisher aponta é que (1) precisamos reconstruir a solidariedade. Medidas que apostam nas escolhas individuais de consumo; de formas de consumir, enfraquecer e minar o anticapitalismo no nível do indivíduo não resolvem, porque apostam na produção enquanto meio. É manutenção da estrutura. É como defender que a resolução da desigualdade social é a caridade de bilionários.
(2) Além disso, é preciso imaginar (e acrescentaria: narrar) utopias. Precisamos inventar ficções sobre o futuro para que elas possam se tornar reais, de acordo com o processo de hiperstição que falamos aqui. Não apenas performar anticapitalismo ou ironia, mas planejar futuros reais.
Por fim, (3) é importante ter a noção de que esse é um caminho coletivo. Digo isso não como uma frase bonita para pintar no muro, mas porque o capitalismo minou o sujeito político e deixou apenas o individual — é preciso retomar a coletividade, a solidariedade e o sujeito político das questões sociais para que possamos provocar mudanças sem intermédio do consumo.
Não vamos frear catástrofes climáticas consumindo direito, precisamos parar a máquina. Precisamos contar utopias.
Obrigado por ler e apoiar!
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Obrigada! Vou assistir Ruptura ⭐️
Reli essa newsletter hoje e só consegui pensar: o Grande Outro não é a Velhinha de Taubaté do Verissimo?