Afinal, o que é Weird Fiction (Ficção Estranha)?
Entenda sobre a narrativa que desconstrói a ideia do ser humano como régua para todas as medidas e traz uma narrativa de “crise total”, como diz China Miéville
Primeiro, a sensação. A tontura de tentar fixar imagens numa história que parece distorcida por uma membrana; Depois, os alertas. Avisos de que algo está errado, que talvez você esteja sendo observado; Em seguida, a confusão. As impossibilidades, incompatibilidades, incongruências: a clara coexistência de elementos que são, na verdade, paralelos. Por fim, medo, admiração. Fascínio.
É difícil nomear essa cadeia de sentimentos quando a encontramos pela primeira vez. Não é a desconfiança de uma narrativa de suspense, o mesmo medo que o da narrativa de terror. Lembro de como eu me sentia enquanto desvendava o que Cecil Baldwin contava sobre a pequena cidade de Welcome to Nightvale e o incrível, magnífico e arborizado Parque para Cães, com entrada proibida para cães e que todo e qualquer civil deveria desviar o olhar.
No entanto, foi só ao ler O Barqueiro, de Vic Vieira, na antologia Aqui quem fala é da Terra, da editora Plutão, que descobri o nome desse tipo de literatura. Difícil, é verdade, mas chamavam de Ficção Weird. A palavra tem sua origem relacionada à palavra wyrd, um conceito ligado ao destino, de entidades como as moiras. É por isso que é uma palavra de difícil acepção para a língua brasileira. O uso mais corriqueiro é traduzir como Ficção Estranha ou Esquisita. Não abarca a complexidade de sentidos, as questões que envolvem forças que sobrepujam nossa materialidade e guiam nosso destino, mas são próximas o bastante.
MEDO CÓSMICO, WEIRD E UNHEIMLICH
Em The Weird and the Eerie, publicado em 2016, Mark Fisher descreve o Weird como um modo narrativo preocupado com o estranho, mas não com o horrível. Ou seja, a narrativa Weird não (necessariamente) assusta, mas trabalha com o que nos fascina, aquilo que está para além dos limites comuns de percepção, cognição, experiência — o que, claro, pode gerar apreensão e medo.
Apesar de restringir a definição, até mesmo Lovecraft faz essa relação em seu ensaio sobre o sobrenatural na literatura, colocando Weird no espaço da religião, do sonho — por isso a relação com o medo cósmico, o pavor de encontrar entidades em uma ordem de existência superior à humanidade, seus Antigos são como deuses. É o momento em que essa literatura faz a supressão do racionalismo iluminista: uma derrota do antropocentrismo, do método científico moderno, do ser humano como referência e régua para todas as coisas.
Por essa possível proximidade com o medo, Fisher diferencia o Weird das narrativas de terror que trazem o unheimlich (traduzido como infamiliar). Descrita por Freud, o infamiliar é a sensação desestabilizante, por exemplo, de ver manequins que parecem vivos. Mas, apesar de ambos tratarem de sensações, a principal diferença entre eles é o fato de que o unheimlich comporta uma certa lógica ambígua ligada à própria psicanálise freudiana, um movimento duplo de tornar o familiar estranho, e o estranho, familiar. Isso significa, de maneira muito simplória, que é uma tentativa de entender o elemento externo partindo da percepção (e das limitações) do que há de interno.
O Weird faz o caminho oposto: permite a percepção do interno pela perspectiva do que está externo. Nesse sentido, tem uma ligação com “aquilo que não pertence”, ele traz ao familiar aquele elemento que é incapaz de habitar a esfera do comum, do ordinário, porque é muitas vezes incompatível com as regras do universo em que chega.
China Miéville faz definições que trilham um caminho próximo. Ao comentar sobre o fascínio, o temor e o enfraquecimento do espaço do cotidiano, o escritor britânico diz que, “ao invés de tentar domesticar o estranho e convidá-lo de volta para o normal, o weird retém e enfoca a estranheza do estranho”. Por esse motivo, a Ficção Estranha não é sobre nos reconhecer no outro, mas o esfacelamento de um egocentrismo, a percepção de que não somos a principal existência no universo, que se torna um lugar muito mais estranho; uma mistura de prazer e dor.
“A sensação de erro associada ao weird — a crença de que isso não encaixa — é com frequência um sinal de que estamos na presença do novo. O weird aqui é um sinal de que os conceitos e enquadramentos que anteriormente empregávamos estão obsoletos. Se o encontro com o estranho aqui não é diretamente prazeroso (o prazeroso sempre relacionado a formas prévias de satisfação), também não é simplesmente desagradável: existe um deleite em visualizar o familiar e o convencional se tornando antiquados” — Mark Fisher, The Weird and the Eerie.
SUBLIME, GROTESCO E A EXPERIÊNCIA NUMINOSA
Mas como podemos visualizar a inversão e o desencaixe na literatura? Um caminho é visualizar como essas narrativas trabalham com o Sublime — o fascínio com a grandiosidade da natureza, do universo — , e o Grotesco —com a presença de figuras estranhas, bizarras; imagens e corpos distorcidos.
Roger Luckhurst, no The Cambridge Companion to American Science Fiction, coloca a Ficção Weird marcada pela transgressão de fronteiras: primeiro, uma decomposição categórica temática, como vimos acima; segundo, por decompor também as próprias fronteiras entre gêneros, com uma heterogeneização frequente, instabilizando fronteiras literárias — coabitando diversos espaços do Horror, como a Ficção Científica ou a Fantasia.
Um bom exemplo que tange as fronteiras nebulosas da Ficção Científica é descrito no trabalho de Istvan Csicsery-Ronay Jr., em seu livro The seven beauties of Science-Fiction (As sete maravilhas da Ficção Científica), em que ele apresenta a “Ficção Científica Sublime” e sua inversão, a “Ficção Científica Grotesca” em que as categorias ontológicas de percepção do mundo entram em colapso.
Enquanto a Sublime diz respeito à mente refletindo sobre seus próprios poderes e limitações, sobre a totalidade do mundo (um pouco como os personagens de Lovecraft tentam acomodar a nova ordem de existência que inclui novas dimensões e seus Antigos), a Grotesca tem a ver com a luta para acomodar o mutável, os objetos instáveis: “o grotesco traz o sublime para a Terra, o torna material e no nosso nível, forçando a atenção de volta para o corporal. Ele prende o sublime no corpo, parcialmente subvertendo-o”, escreve Csicsery-Ronay Jr. — em Estação Perdido, China Miéville trabalha bastante a questão do grotesco na arte e nos corpos alienígenas.
Além disso, Istvan também nos diz que “onde o tecnosublime [o sublime que surge de uma nova potencialidade tecnológica humana] é extenso, induzindo sentimentos de espanto e pavor em resposta a fenômenos criados ou revelados por técnicas humanas, o grotesco é implosivo, acompanhado de fascínio e horror com a perspectiva de fenômenos intimamente violadores de categorias descobertas pela ciência humana”. É um conhecimento que ataca a própria racionalidade que o permitiu nascer, um oximoro de ideias.
China Miéville também trabalha com questões do sublime e suas limitações. Para ele, o Weird faz uma transposição do sublime, da experiência numinosa para a esfera do cotidiano. “De acordo com Edmund Burke e outros teóricos do sublime, o belo e o sublime excluem-se mutuamente: em certa escala, enormidade e irrepresentabilidade (…), o sublime aparece. O Weird, porém, perfura a suposta membrana separando o sublime e permite a difusão desse espanto e horror do ‘além’ de volta ao cotidiano — em ângulos, arbustos, o toque de membros estranhos, ruídos, etc.”, escreve Miéville no capítulo Weird Fiction, do livro The Routledge Companion to Science Fiction.
CRISES, INDICAÇÕES E UM ESTRÂNHONE
Mas, o que tudo isso quer dizer? Como essas coisas se conectam e o que vemos na narrativa? Miéville descreve a imagem da Ficção Estranha como uma literatura de “crise total”, mas uma crise que resiste às significações. Ela não pode ser articulada de maneira direta e clara. Em uma determinada cena de Aniquilação, romance de Jeff VanderMeer, a protagonista expõe essa crise de maneira ilustrativa:
“Falei que tinha visto uma luz dourada? Assim que passei por aquela curva, a luz não era mais dourada, e sim azul-esverdeada, e essa luz azul-esverdeada não se parecia com nada que eu já tivesse vivenciado antes. Ela se encapelava, ofuscante, sangrante e espessa, dividida em camadas e absorvente. Ultrapassava a tal ponto minha capacidade de compreender suas formas que eu mesma me forcei a deixar de lado a visão para registrar primeiro as impressões que recebia pelos outros sentidos.
“O som que eu ouvia era como um crescendo de gelo ou de cristais se estilhaçando para produzir a melodia sobrenatural que eu antes tinha erradamente interpretado como um zumbido, e que passou a reproduzir um ritmo intenso que se apossou do meu cérebro. Vagamente, de algum lugar muito distante, me veio a certeza de que as palavras na parede estavam também impregnadas de som, mas que antes eu não tinha sido capaz de percebê-lo. A vibração tinha textura e peso, e com ela veio um cheiro de queimado, como o de folhas do fim do outono e como um motor imenso e distante próximo do superaquecimento. O gosto que eu sentia na boca era de salmoura ardente.
“Palavras não podem… nenhuma foto poderia…
“Enquanto eu me acostumava àquela claridade, o Rastejador mudava de forma com a velocidade da luz, como se zombando da minha capacidade de compreendê-lo. Era uma imagem por trás de uma série de lâminas de vidro refrator. Eram várias camadas em forma de arcada. Era um imenso monstro em forma de lesma orbitado por criaturas ainda mais bizarras. Era uma estrela cintilante. Meus olhos ficavam a todo instante desviando dele, como se um nervo óptico não fosse suficiente”.
A crise também pode ser mais sutil e confusa. À maneira do surrealismo, algumas obras se importam menos com o sentido direto e mais com sua quebra, com a confusão e as sensações; a percepção direta da transposição dos limites humanos — incluindo o leitor.
Mas é difícil fazer essa comparação e identificar os elementos sem repertório, sem sabermos do que estamos falando. Por isso, um grande problema é que essas crises e instabilidades também se refletem de maneira direta na construção de um certo cânone ou guia para leitura da Ficção Estranha.
“Eu tenho tentado escrever uma história relativamente ‘direta’ da ficção weird, mas é também importante reconhecer quão arbitrário e contingente essa trajetória realmente é. Em um comentário no Weird Compendium, Miéville desafia a noção de que pode haver um cânone weird: ‘Esse cânone muda. Suas bordas são inconstantes, suas membranas são permeáveis e escorrem como a biologia violadora do Horror de Dunwich de Lovecraft. Nos interpretamos isso, claro: nossas mentes são fábricas de sentidos. Mas o solo abaixo delas é esburacado. Tem fissuras e caos’”. — Roger Luckhurst, American Weird
Como o Luckhurst diz ao longo do texto citado acima, grande parte da beleza da Ficção Estranha é essa consciência da flexibilidade e dos movimentos autocontidos que ela faz para definir suas próprias fronteiras. Então, se você ainda não conhece a Ficção Estranha, e também assumindo que pode ser um tanto árduo entender um tipo de narrativa sem um referencial, um bom caminho para começar a descoberta de um (im)provável “estrânhone” pode ser:
A Ann VanderMeer conversou sobre Ficção Estranha duas vezes com o público brasileiro nos últimos anos. A primeira vez foi em um encontro chamado FK, vai ter entrevista! New Weird — Ann VanderMeer, promovido pela Fantástika 451, em 2020, contando com a presença de Felipe Benicio, George Amaral e Vic Vieira. Nesse evento, eles conversaram bastante sobre China Miéville e a ficção New Weird — uma maneira diferente de trabalhar a Ficção Weird, mas vamos tratar disso em outro momento.
Além disso, em 2021, Ann voltou a conversar conosco no Relampeio Festival, na mesa Weird Fiction, com Ann VanderMeer — tive a felicidade de participar da mesa ao lado do Vic Vieira e sob a mediação da Ana Meira. A conversa foi bastante bacana, na intenção de traduzir alguns conceitos de Ficção Weird para o público brasileiro e, no papo, Ann também falou bastante sobre como ela entende as narrativas estranhas enquanto narrativas que tratam principalmente do desconhecido.
Aos leitores da língua inglesa, Ann e Jeff VanderMeer também publicaram uma antologia chama The Weird: A Compendium of Strange and Dark Stories, pela editora Tor Books. O livro é um calhamaço de mais de mil páginas, pensando na trajetória da Weird Fiction ao longo dos vários anos e com um vasto recorte geográfico (se você estiver lendo o texto no momento em que saiu, saiba que esse livro será tema da próxima edição da newsletter Ponto Nemo).
Se quiser aprofundar a discussão sobre Lovecraft, pensando nos pontos discutidos acima, vocês podem conferir algumas das matérias abaixo:
Nos tentáculos do medo: Como o ódio racial e o horror cósmico estruturam a ficção de H. P. Lovecraft, criador de entidades que estão enraizadas na cultura pop — Jornal Rascunho
H.P. Lovecraft e ‘O Horror Sobrenatural em Literatura’ — Escotilha
Ficção Weird e Horror Cósmico em Lovecraft — Escotilha
‘A Balada do Black Tom’ e o ódio racial de Lovecraft — Escotilha
Além disso, alguns autores têm trabalho de maneira intensa nessas narrativas. Em solo brasileiro, você pode conferir o trabalho de Vic Vieira — com grande parte do trabalho aberto e gratuito. Os argentinos Jorge Luis Borges e Julio Cortázar têm contos citados na antologia dos VanderMeer supracitada, mas é também possível conhecer o trabalho de T.P. Mira-Echeverría, com narrativas recém-traduzidas pela Editora Monomito.
Além disso, espalhados pelo mundo, podemos citar alguns autores que já foram traduzidos para o português, como Caitlin Kiernan, Joyce Carol Oates, Carmen Maria Machado, Jeff VanderMeer e China Mieville.
Em outras linguagens, é possível encontrar a presença do Weird em séries, filmes e animes como O Farol, Dorohedoro, a primeira temporada de True Detective e o diálogo que estabelece com a coletânea de contos O Rei de Amarelo, ou em alguns filmes de David Lynch. Por fim, penso que os jogos Control e Death Stranding também trazem, de certa forma, alguns elementos de Weird em sua composição.
Todas as imagens da matéria são do filme Aniquilação, filme baseado no romance homônimo de Jeff VanderMeer — que também é weird e serve de indicação.
Obrigado por ler até aqui!
Se você gostou do texto, considere apoiar o financiamento coletivo (ou pode me dar um livro de presente). Mas saiba que só de compartilhar, você já auxilia na manutenção do conteúdo.
Além disso, não deixe de conferir a newsletter Ponto Nemo. Também tenho outras produções do Estantário e faço parte do podcast 30:MIN. Também estou no Twitter e no Instagram.