Como dito na edição passada, o texto de hoje é fruto de uma brincadeira de amigo secreto organizada em um grupo de pessoas que escrevem newsletters. Ao longo da semana, recebi uma bela carta da Ana Carolina Dantas (que também apareceu na última temporada, em um dos Diários de Sonho).
Agora, é minha vez de escrever. Espero que gostem da leitura. No final, deixei linkado a publicação e o nome de quem tirei.
Bom final de ano e até a próxima!
Oi, tudo bem?
Queria começar dizendo que te escrever foi um exercício bem curioso. Primeiro, porque chequei o sobrenome várias vezes para ter certeza de que era a pessoa certa. Depois, resolvi ler todas as newsletters que você publicou no Substack antes de escrever a carta — principalmente porque descobri que você tinha outras edições publicadas por aí no meio do percurso e resolvi manter o recorte de plataforma.
Nesse percurso, adorei conhecer você & seus textos e fiquei pensando na melhor forma de te responder (além do sufoco de me divertir com as edições e não querer estragar a surpresa, curtindo uma publicação de 8 meses… Gosto de pensar que o amigo secreto precisa permanecer secreto, hahaha).
De qualquer forma, lembrei de que, há algum tempo, um aplicativo chamado Slowly ficou conhecido por permitir o envio de cartas para pessoas desconhecidas ao redor do mundo — e demoravam alguns dias para chegar e outros tantos para voltar.
Eu adorava enviar cartas, mas nunca deixei de me incomodar com a estrutura geralmente padrão de: “É isso o que eu penso sobre determinado assunto. O que você acha?”. Por isso, resolvi não só compartilhar algumas reflexões, mas também digitar o pequeno diário de leitura que escrevi conforme lia suas edições, procurando conhecer você — e deixo links em algumas pontuações para que, caso queira, também possa conhecer um pouco do que compartilhei de mim.
#28 e #30: Entre ruínas e alteridades
Não lembro se algum dia as ruínas deixaram de chamar minha atenção. Desde pequeno, vendo construções abandonadas pela estrada ou pelo caminho do trem, lembro de ser atraído por esses espaços complexos.
O que me fez prestar ainda mais atenção nesses espaços foi o trabalho de Anna Tsing. Ela estuda cogumelos e mostra como as ruínas são apontadas como espaços que fracassaram, que deixaram de cumprir sua função de produzir alguma coisa. São espaços definidos, muitas vezes, pelo que deixaram de oferecer ao ritmo de produção.
Por exemplo, uma cidade explorado pela indústria madeireira torna-se uma ruína caso sua floresta deixe de fornecer matéria-prima no ritmo exigido pela demanda de produção. Quando isso acontece, o espaço passa a ser visto como algo que tinha potencialidades, mas fracassou.
O que Anna Tsing faz é mudar o filtro dessa narrativa. É visualizar que a ruína é o fracasso para um determinado modelo de sociedade, mas que está permeado de vida e potencialidades quando é analisado de maneira minuciosa. Por isso, o livro que escreveu é intitulado como O cogumelo no fim do mundo: sobre a possibilidade de vida nas ruínas do capitalismo.
Quando você escreveu sobre Alcântara, imediatamente pensei nesse processo ambíguo: o espaço marcado pelos diversos derrocamentos, ao mesmo tempo que deve manter relações de criação e potencialidades ocultas em seus espaços.
Coloquei a tese da Grete Soares Pflueger, Redes e ruínas, na minha lista de leitura. Ultimamente, tenho pensado bastante sobre ruínas e escrita. Como meus objetos de pesquisa no doutorado são os livros de Svetlana Aleksiévitch, sempre me pego refletindo sobre o ato de narrar as ruínas da história — o sujeito anônimo, os perdedores das guerras, o sofrimento, o ritmo incerto da memória.
De certa forma, viver é um processo de tornar-se ruína. Arruinar-se. Passar a habitar o espaço incerto entre passado, presente, futuro. Acho que Nastassja Martin também fala um pouco disso quando escreve Escute as feras. Com o medo de tornar-se marcada pelo encontro com o urso, que dilacera seu rosto, Nastassja parte em busca de manter sua pluralidade e complexidade — procura habitar a fronteira entre os mundos, o da mulher e o do urso.
Uma citação do livro mostra um pouco o que quero falar das ruínas:
Penso em Clarence, o velho sábio gwich’in de Fort Yukon, no Alasca, meu amigo e precioso interlocutor durante os anos em que morei em seu vilarejo. Sempre o observei com olhar entretido quando ele me dizia que tudo era constantemente “gravado” e que a floresta era “informada”. Everything is beign recorded all the time, ele repetia. As árvores, os animais, os rios, cada parte do mundo guarda tudo o que se faz e tudo o que se diz, e até mesmo, às vezes, o que se sonha e o que se pensa. Por isso é preciso prestar muita atenção nos pensamentos que formulamos, porque o mundo não se esquece de nada, e cada um de seus elementos componentes vê, ouve, sabe.
Curioso que você tenha relacionado a leitura de Nastassja com o trabalho de Hanna Limulja. Não tinha pensado dessa forma, mas talvez seja porque eles habitem esses espaços híbridos. Ambos estão permeados de temporalidades e espacialidades múltiplas, daquilo que foi, é e será. Pautados por outras formas, mais intuitivas, de conhecimento.
Estou ansioso para ouvir a mesa de Nastassja na FLIP.
Diário de Leitura
#1 (06/2021)
Edição sobre usar máscaras no trabalho e a resistência individual de se recusar a comer salgadinhos da confraternização. Raiva compartilhada com sucesso.
#2 (06/2021)
Diário sobre as manobras para almoçar no trabalho… e a presença de uma marmita para levar para casa os salgadinhos de outra festa da firma. Talvez um aprendizado desde a última edição? Hahaha. Gosto da ideia de descobrir a cidade.
#3 (06/2021)
Conjecturas sobre viagens e vacinas. Que momento terrível a gente viveu, não? Às vezes, esqueço.
#4 (07/2021)
Uau! Muito bom aprender sobre as festas juninas de São Luís do Maranhão (mas assumo que meu xodó nessas festividades é comer pamonha doce). Gostei muito das suas sugestões de narrativas audiovisuais. Veria todas.
#5 (07/2021)
Um relato divertidíssimo sobre a saga de montar móveis (e penso se o home office outrora inexistente já está vivo. Afinal, as famosas cadeiras gamer). Ri muito (mas com respeito) da “Pateta Raivosa da Chave de Boca” e da “Ex-Pateta Raivosa do Hashi”.
#6 (07/2021)
Seu exercício de conhecer Curitiba parece o meu, de conhecer sua newsletter. Quando pisei o pé para fora de casa pela primeira vez depois do isolamento, que deve ter sido mais ou menos nesse período também, fui ao sebo que sentia saudades de ir. Muito bom voltar a ver livrarias. Minha suspeita também estava certa, ela está trabalhando de casa!
#7 (08/2021)
“Todos os gatos são irritantes. Cada gato irrita seu dono de um jeito diferente.” Que releitura maravilhosa — ainda que, além de mim, ninguém mais tenha a permissão de chamá-los de irritante. Aqui, a introdução oficial ao espaço do trabalho remoto. Adorei a foto dos gatos, são lindos. Seria Sid Vinicius uma homenagem ao desenho ‘Irmão do Jorel’?
#8 (08/2021)
Feliz 30 anos! Tento não pensar muito nessas crises, até porque passo por algo parecido: cursei jornalismo, queria seguir carreira acadêmica e, nos últimos anos, tenho feito muitas reflexões sobre o que esse futuro me reserva…
#9 (08/2021)
Por um momento, esqueci das datas e fiquei confuso com Tóquio 2020 em 2021. Mas, felizmente, a vacina se concretizou antes das expectativas da edição #3. Também me senti assim, não lembro de ter postado foto. Comecei a ‘Ponto Nemo’ no mesmo período, agosto de 2021. Acho que foi um processo meio catártico de lidar com o que rolava. Antes de descobrirque sua newsletter era antiga, me perguntei se você tinha se guiado pelo mesmo impulso.
#10 (09/2021)
Agora o espaço do trabalho em casa foi oficialmente apresentado como escritório! Uhu! Me identifiquei muito com a ‘metáfora do Estalinho’. Define minha vida de alguém que é introvertido-extrovertido. No rascunho, escrevi que esperava que tivesse dado tudo certo com o trabalho home office, mas são tantas menções a trabalhos que não tenho certeza se deu certo ou se ele foi trocado…
#11 (09/2021)
Processos de descoberta de quem se é. Adorei a reflexão sobre vegetarianismo. Também como carne, apesar de não curtir muito. Gosto dos pensamentos de pessoas com as mesmas inquietações porque fico pensando: será que não é exatamente esse o ponto? Questionar a lógica do consumo alimentar? Também fico pensando.
#12 (09/2021)
Obrigado por traduzir ‘ridicar’. Acho que não escrevi, mas sou de Santo André/SP. Ainda não conhecia essa expressão. Gosto das reflexões alimentares. Depois de redescobrir a cidade e o espaço urbano, a distensão da pandemia tem provocado redescobertas gastronômicas, será?
Acho que passei por um movimento parecido, de externo par ao interno. Sinto que muitas pessoas precisaram redescobrir a cidade depois do isolamento. Enquanto me resolvo com isso, tenho pensado bastante sobre o rumo que quero dar para as coisas que escrevo e os projetos de sociedade que acredito.
#13 (10/2021)
Maravilhosa a metodologia de anotar os trechos preferidos de um livro em um caderno separado. Fiz uma tentativa disso ao ler os livros da Ana Martins Marques. Tenho algumas poesias que carrego lá e pretendo fazer quando ler os outros livros dela. Falando nisso, adorei as autoras citadas. Quem eu conhecia, gostava. Alguns, estão na minha lista de leitura há um tempo… mas não gostei de ‘Fique Comigo’.
#14 (01/2022)
Como dito acima, acho que você trocou de emprego? Não sei. Gosto da forma com que você fala de literatura. Tenho me identificado bastante com isso.
#15 (02/2022)
Um relato de um casamento… É, os eventos sociais foram complicados na pós-pandemia. Assumo, com vergonha, que sinto falta da socialização digital pandêmica. Muitos amigos conectados, jogando, conversando em ligações. Como eu disse, a metáfora do Estalinho define minha vida social.
#16 (03/2022)
Nunca li Isabel Allende, mas ano que vem gravo sobre ‘Eva Luna’ para um clube de leitura. Também tenho algumas coisas do Salvador Allende e do Pinochet no cronograma. Chile vai aparecer em peso!
#17 (03/2022)
Só posso concordar que sexta-feira de manhã é mesmo um horário fértil para newsletters… hahahah
#18 (03/2022)
O problema das coxas grossas. Te entendo perfeitamente. Preciso sempre caminhar com um daqueles shorts de ciclismo. Reforço ainda mais sua afirmação: “Quem iniciou a pregação sobre a arte de caminhar com toda a certeza não tinha coxas grossas”.
#19 (04/2022)
Gosto das suas ideias para produções audivisuais.
#20 (05/2022)
Mais uma vez sou confrotado sobre o exercício do jornalismo e meu investimento no campo acadêmico. Tenho pensado muito nisso.
#21 (06/2022)
Divertidíssimo o texto sobre salões. Adorei as três regras para descobrir se um salão é de bairro, de shopping, modernoso ou barbearia artesanal.
#22 (06/2022)
Ótimo guia de viagem para São Luís. Eu, que nem gosto muito de viajar, fiquei com vontade de conhecer. Talvez eu me anime a começar pelas leituras.
#23 (07/2022)
É curioso ler os relatos de mudança. Já mudei de casa algumas vezes, mas sempre passei a vida morando em Santo André.
#24 (08/2022)
Também gosto muito de ler em transporte público. Já peguei estações de metrô a mais só para continuar a leitura. Gostei da sua tipificação de pessoas em clubes de leitura. Nos últimos que participei, acho que fui aquele que não conseguiu ler tudo. Espero ter colaborado com alguém.
#25 (09/2022)
Me identifiquei muito com suas percepções sobre trocar de celular, principalmente quando os tamanhos são muito diferentes. Tem um texto que li na época do doutorado que, se não me engano, é de um filósofo alemão chamado Hans Ulrich Gumbrecht. Ali, ele fala sobre a experiência estética no nível do cotidiano. Acho que perceber as diferenças do celular tem um pouco disso, uma retomada da percepção de que se trata de um objeto, que estamos lidando com algo — e o quanto nos adaptamos a ele, de forma muito rápida.
Oficialmente, o sucesso com o hashi!
#26 (10/2022)
Outubro. Que mês infernal. Nem sei o que comentar do intervalo infinito entre o primeiro e o segundo turno.
#27 (10/2022)
‘Dias de Abandono’ foi o único livro que li da Elena Ferrante. Não sei se tenho curiosidade de conhecer mais livros dela, mas foi uma leitura incrível. Realmente, é narrativa de ler em uma sentada. Fiquei com vontade de reler.
(…)
#29 (12/2022)
Estou há tempos querendo ler ‘Úrsula’. Talvez o audiobook seja bom para começar. Além disso, ao longo de tantas leituras. Será que consigo encontrar tiquira por aqui? Fiquei curioso com o gosto.
As pedras das ruas de Paraty são mesmo marcantes. Na única vez que fui, em 2019, fiquei com o pé doendo por alguns dias (e as coxas, também. Ainda não tinha adotado o uso do shorts, sabe?).
Ano que vem é ano de ler Annie Ernaux pela primeira vez. Mas Camila Sosa Villada li esse ano e foi maravilhoso. Também escutei como audiobook pela voz dela, hipnotizante. Tenho vontade de ler. Ouço os livros como você, meio desprendido em apreender tudo. Acho que a materialidade da coisa vai me proporcionar uma outra perspectiva.
(…)
#31 (12/2022)
Fui pego de surpresa! Depois de escrever a carta, mais uma edição. ‘O parque das irmãs magníficas’ também entrou no ‘Melhores do Ano’ das minhas leituras quando gravei — mas colocaria junto com ‘Grande sertão: veredas’, ‘Esforços olímpicos’, ‘Escute as feras’, os contos do Ted Chiang, ‘Alvorada em Almagesto’, ‘O desejo dos outros’, ‘A vida e as mortes de Severino Olho de Dendê’, ‘Realismo capitalista’… 2022 foi um ano ótimo nas minhas leituras. Alguns anos são meio mornos, né? Desse, gostei. Que legal saber que ‘Vozes de Tchernóbil’ já foi uma de suas leituras preferidas! Svetlana é mesmo incrível.
É isso. Vou terminando por aqui a minha carta para a Luisa Pinheiro, da newsletter . Espero ter acertado a Luisa. Gostei bastante de conhecê-la (e agora posso curtir os textos sem ficar receoso de estragar a surpresa).
Quem quiser, recomendo conhecer a publicação por essas duas edições:
Até uma próxima,
Abraços,
Arthur Marchetto
que coisa bonita suas anotações, arthur! <3 quase um diário de bordo da viagem que é conhecer o trabalho de alguém - e essa alguém por tabela.
beijocas e boas festas
A carta toda foi incrível, um grande relato de viagem sem sair do lugar, algo total dos tempos pandêmicos. Estive em São Luís e Santo André sem sair do sofá numa cidade sem nome de santo, hehehe.
Quando você diz “(...)viver é um processo de tornar-se ruína. Arruinar-se.” eu só posso gritar AQUI TEM ESCRITOR! Essas frases ecoaram demais aqui!