Sobre Svetlana Aleksiévitch e a escrita como uma ‘biblioteca de vozes’
“O universo (que outros chamam a Biblioteca) compõe-se de um número indefinido, e talvez infinito, de galerias hexagonais, com vastos poços de ventilação no centro, cercados por balaustradas baixíssimas. De qualquer hexágono, veem-se os andares inferiores e superiores: interminavelmente” – Jorge Luis Borges, ‘A Biblioteca de Babel’
Pesquiso e escrevo sobre o trabalho da Svetlana Aleksiévitch há alguns anos. Gosto da maneira com que ela organiza o texto; como trata os depoimentos; as misturas de vozes e a configuração híbrida de uma voz que aparece no texto como narradora, como jornalista, como autora e personagem. Por isso, tenho tentado entender aquilo que ela chamou de romance de vozes — sua busca por um novo gênero que sintonize melhor com suas inquietações e o nosso tempo.
Nesse caminho, no artigo Livros-testemunhas: uma leitura da obra de Svetlana Aleksiévitch enquanto uma “biblioteca de vozes”, procurei construir a ideia das obras da Svetlana como uma biblioteca. A intenção era fazer um caminho de mão-dupla: ver os livros da Svetlana como espaços de armazenamento, organização e curadoria. Pensar que as pessoas retratadas nas obras da jornalista bielorrussa podem ser, cada uma delas, como um livro.
Simultaneamente, queria constituir um aspecto de subjetividade e historicidade para os livros. Mostrar como a seleção de livros inclui propostas políticas, são marcadas por memórias, trazem resistências e experiências. No texto, o foco está no livro enquanto objeto, a materialidade que traz a vivência. Mas, enquanto escrevia essa edição, percebi que as narrativas que compõem uma biblioteca oral e sobrevivem a genocídios, por exemplo, passam pelas mesmas configurações.
Talvez, a imagem da biblioteca oral seja a intersecção ideal entre as bibliotecas e a produção de Svetlana Aleksiévitch.
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Enquanto falamos de bibliotecas, organizo a próxima temporada. Já tenho algumas ideias para temáticas e, até o começo de junho, Ponto Nemo retorna com a segunda temporada. Além disso, os apoiadores do projeto no Catarse receberão um e-mail nas próximas semanas em que comento sobre as temáticas que pensei, os projetos que estou desenrolando e o que vai rolar nesse ano. Então, se quiser ficar por dentro, não deixe de conferir o financiamento.
Sobre bibliotecas
Alberto Manguel começa o livro A biblioteca à noite com uma reflexão sobre o impulso quase absurdo de reunir e organizar informações em um todo compreensível, tarefa que me parece muito próxima à de Sísifo e sua pedra no rochedo:
Tirando a teologia e a literatura fantástica, poucos duvidariam que os traços centrais de nosso universo são a escassez de sentido e a falta de objetivo palpável. E ainda assim, com espantoso otimismo, continuamos reunindo todo fiapo de informação que conseguimos recolher em rolos, livros e circuitos eletrônicos, enchendo prateleiras e prateleiras de bibliotecas, pouco importa se materiais, virtuais, ou de outro tipo qualquer, dedicando-nos pateticamente a conferir ao mundo uma aparência de sentido e ordem, mesmo sabendo muito bem que, por mais que prefiramos acreditar no contrário, nossos esforços estão tristemente condenados ao fracasso.
Tais coleções não são só abrigos dessas informações, mas são também projetos que refletem as visões culturais e políticas sobre o que os processos do conhecimento e do saber significam em uma sociedade. Além disso, por vivermos em sociedades da escrita, as bibliotecas também retratam as configurações de poder — quem tem acesso à leitura, à escrita e, consequentemente, ao conhecimento e às leis.
Em A biblioteca: uma história mundial, James Campbell e Will Pryce fotografam e dissecam a existência de diversas bibliotecas, principalmente em relação a projetos particulares ou questões materiais, na perspectiva de que “a história das bibliotecas é, em parte, a história da relação entre a mudança do formato dos livros e seu método de organização” e suas consequentes revoluções nas formas de armazenamento.
Mas não é isso que nos interessa aqui — ao menos, não diretamente. Estamos pensando na constituição simbólica da biblioteca, na imagem que surge quando as bibliotecas deixam de ser vistas apenas como arquivos administrativos e incluem uma nova concepção arquivista.
Manguel estabelece quatro pilares para essa nova visão, quatro desejos presentes em qualquer forma de biblioteca, seja ela privada, pública ou virtual: (1) estruturar o conhecimento e/ou a imaginação; (2) ser um repositório acessível de informação; (3) reunir uma “experiência vicária” de mundo; (4) excluir diversas experiências, seja por medo, ignorância, incompetência ou parcimônia.
O desejo da exclusão é estranho, quase paradoxal, mas Alberto Manguel justifica essa existência com a reflexão sobre dois mitos que trazem a inevitabilidade do fracasso: a Torre de Babel e a Biblioteca de Alexandria. A primeira, a luta para vencer o espaço pela união dos povos rumo aos céus sendo punido pela barreira dos vários idiomas. A segunda, a ruína que apresenta os limites humanos dessa ambição — como já vimos na edição passada.
O que me leva à escrita dessa reflexão é que identifico uma pulsão semelhante no trabalho de Svetlana Aleksiévitch.
Sobre as vozes das ruínas
Jornalista e escritora bielorrussa (apesar de nascida na Ucrânia), Svetlana Aleksiévitch ganhou o Prêmio Nobel de Literatura em 2015 por sua “obra polifônica, memorial do sofrimento e da coragem”. Foi a única mulher a ganhar o prêmio com trabalhos de não-ficção, categoria pouquíssimo laureada.
Seus cinco romances publicados compõem uma coleção chamada Vozes da utopia, uma narrativa complexa sobre crises no regime soviético e que valorizam a voz do cidadão comum, morador da ruína da história — momentos fora das grandes narrativas; são espaços do cotidiano, do sofrimento, dos excluídos e perdedores.
Seus dois primeiros livros são A guerra não tem rosto de mulher (1985) e Últimas Testemunhas (1985), narrativas que decompõem a imagem mítica da Segunda Guerra Mundial, tomando como ponto de partida o depoimento de mulheres e crianças vítimas do nazismo, respectivamente. Depois, Svetlana fala sobre a Guerra no Afeganistão com Meninos de zinco (1991). A tragédia humana e a mudança na cosmovisão soviética que emergem de um desastre em uma usina nuclear é o ponto principal de Vozes de Tchernóbil (1997). Por último, O fim do homem soviético (2013) surge de uma coletânea de textos sobre suicidas que, sem saber o que fazer com o fim da União Soviética, dão fim à própria vida.
Svetlana usa das técnicas de entrevista e das estruturas do campo da história oral para construir um retrato compostos por pessoas que, naquele momento, não eram abarcadas pela historiografia oficial. Mas o trabalho de escrita não se resume a isso. A hibridização é uma marca nas suas obras e, ao tecer a narrativa, mescla entrevistas, reflexões ensaísticas, memória oficial e o processo de captação; se apresenta como jornalista, como narradora, como personagem e autora.
Mas, para não me alongar, a construção dessa trama só acontece depois de um exaustivo processo de produção. Em uma entrevista, Svetlana conta que os livros geralmente demoram entre cinco e dez anos para ficarem prontos e “representam entre trezentas e quinhentas vozes entrevistadas. Eles contêm cerca de cem vozes, das quais um número entre dez e vinte delas são o que ela chama de ‘pilares’, sujeitos que serão entrevistados umas vinte vezes cada” e são pontos centrais nos livros.
Não é difícil aproximar esse processo criativo à descrição das bibliotecas de Manguel que vimos acima. Me parece que Svetlana tenta catalogar e tornar acessível uma quantidade de vozes que representam certas experiências de mundo — ao mesmo tempo em que seu processo de curadoria de sujeitos seleciona aqueles que ficam dentro ou fora das páginas. O que ambos fazem com essa organização de experiências é a estruturação desse conhecimento em uma narrativa (literária-jornalística ou arquitetônica).
Narrativas, memórias, trajetos
A transformação da experiência em narrativa — seja pelas palavras em um livro, seja pelos livros em uma estante — é uma coisa muito importante, principalmente porque não existe experiência humana fora das narrativas. A narrativa é a maneira que encontramos de “vencer os limites do tempo”, como nos diz Manguel. Em outras palavras, é por meio dela que o tempo da experiência deixa de ser imaterial e abstrata para ser humana.
Tal afirmação é clara se pensarmos na maneira com que nós contamos nossas histórias e as usamos, consciente ou inconscientemente, para construir nossas memórias e identidades.
No trabalho de Svetlana, por exemplo, podemos pensar em como ela ouve as vozes esquecidas e silenciadas, as experiências abafadas pela historiografia oficial do regime soviético, e as insere novamente num fluxo narrativo em que as experiências cotidianas importam.
Talvez por isso ela se considere uma historiadora da alma. Svetlana diz que “em cada um de nós há um pedacinho de história. Um tem meia paginazinha, outro tem duas ou três. Juntos, estamos escrevendo o livro do tempo. Cada um grita sua verdade”. Essa tentativa de reunião é o que constitui a biblioteca de vozes da escritora bielorrussa.
Da mesma forma, “toda biblioteca é autobiográfica”, escreve Manguel em A biblioteca à noite. “A ordem das estantes planejada e ao mesmo tempo aleatória, a seleção de temas, a história íntima da sobrevivência de cada livro, os vestígios entre as páginas de certas épocas e certos lugares, tudo isso aponta para um leitor singular”, diz.
Mas, assim como uma biblioteca particular reflete o caminho de seu leitor, uma biblioteca universitária ou pública espelha as pesquisas, doações e autores que marcaram esses espaços; uma biblioteca oral, transmitida pelas gerações, preserva suas cosmovisões, resistências, histórias familiares, etc..
Além disso, por mais “factual” e “objetivo” que pareça lidar com essa construção, as bibliotecas e livros estão a todo momento relacionados com a memória — assim como a fluidez que permeia depoimentos e relatos. Como dito na edição anterior, pensadores e estudiosos eram pagos para manter o conhecimento da Biblioteca de Alexandria vivo. Os livros deveriam ser preservados infinitamente, em um eterno diálogo, em compêndios, resumos e anotações.
Os livros também precisam transformar sua existência em uma narrativa. Claro que não por uma escolha consciente ou visualizando-os como seres que surgiram descolados da criação humana, mas é uma forma de olhar para a produção da crítica literária, a criação do cânone ou até para os livros que constituem nossas identidades e do que gostamos. Tudo isso afetado pelo fluxo da memória, pela necessidade de (re)lembrar e (re)contar o que significam esses livros, assim como estamos constantemente estabelecendo quem somos nós.
Os livros esquecidos de minha biblioteca levam uma existência tácita e discreta. Mesmo assim, sua própria qualidade de livros esquecidos às vezes me permite redescobrir uma história ou um poema como se fossem perfeitamente novos. Abro um livro que imagino jamais ter aberto antes e dou com um verso esplêndido que, digo comigo mesmo, não posso esquecer, para então fechar o livro e ver, na última página, que eu mesmo, mais sábio e mais jovem, marquei a mesma passagem quando a descobri, aos doze ou treze anos. (…). Começou outra vez pelas primeiras palavras, sabendo que na realidade não posso começar de novo; e me sinto destituído de uma experiência que sei que já tive e que tenho que readquirir, como uma segunda pele. — Alberto Manguel, ‘A biblioteca à noite’.
Vozes, silêncios, livros
No entanto, se partimos do pressuposto de que as experiências não existem fora da mediação da linguagem e do ato de comunicar a narrativa, o que acontece com aquelas histórias silenciadas?
O filósofo francês Paul Ricœur diz que a necessidade de contar sobre a existência humana, como uma herança no continuum da nossa existência, é a razão pela qual contamos histórias e esse ímpeto “ganha toda a sua força quando evocamos a necessidade de preservar a história dos vencidos e dos perdedores. Toda história do sofrimento clama por vingança e exige narração”.
A preservação das narrativas oprimidas é quase contraditória. Com o espaço silenciado, não temos como conhecê-las sem as narrativas. No entanto, preservadas pela oralidade e em núcleos menores, elas emergem quando um pano de fundo propício surge para a sua configuração.
Não é à toa que os livros da Svetlana Aleksiévitch surgiram na União Soviética apenas no momento de arrefecimento, com a abertura gradual do regime no momento da perestroika. As pessoas ouvidas pela jornalista carregam histórias que contrapõem o regime oficial. Em A guerra não tem rosto de mulher, o conflito deixa de ser mítico e heroico e passa a ser humano, repleto de sofrimentos.
Se pensarmos nos livros e as histórias de censura e resistência que carregam, o trabalho de Svetlana é o de mover as narrativas que seus personagens contam para fora dos lugares inacessíveis em direção aos locais ao nível dos olhos e braços.
O erro que cometemos, conforme Manguel revela, é termos concebido a biblioteca como um espaço neutro, quando a estrutura de qualquer acervo pressupõe a exclusão de diversos títulos, seja por “gosto, conhecimento, espaço e tempo”. Como a leitura é o que nos permite lembrar e se aproximar da história comum de toda humanidade, é esperado que governos autoritários tentem silenciar as memórias nas páginas e calar a voz das vítimas. E, conforme esses reinados tiveram mais ou menos sucesso ao longo de sua história, somam-se às histórias dos livros a sombra daqueles que não resistiram.
A destruição dos livros da América pré-colombiana exemplifica o temor dos poderosos às virtualidades subversivas da palavra escrita. (…) As bibliotecas, por sua mera existência, não apenas afirmam, mas também questionam a autoridade dos poderes constituídos. (…) Pouco importa por qual razão uma biblioteca é destruída: toda proibição, mutilação, destruição, saque ou pilhagem faz nascer (ao menos como presença espectral) uma biblioteca mais estridente, mais cristalina, mais durável, feita de livros proibidos, saqueados, pilhados, destruídos ou mutilados. Esses livros podem não ser mais acessíveis à consulta, podem existir apenas na vaga memória de um leitor ou na memória ainda mais vaga da tradição e da lenda - mesmo assim, terão adquirido uma espécie de imortalidade. — Alberto Manguel, ‘A biblioteca à noite’.
Por outro lado, como o próprio trabalho de Svetlana nos mostrou, Manguel conta que “toda biblioteca, mesmo sob a mais estrita vigilância, contém textos secretamente rebeldes que escapam ao olho do bibliotecário”. Pessoas ou livros, cada um deles trazem consigo seu passado e as marcas de sua sobrevivência, como o livro judaico de orações que Manguel descreve em A biblioteca à noite, comprado em Berlim e sobrevivente do regime nazista.
Como todo livro que chegou até nós das mãos de leitores distantes, cada um de meus livros traz consigo a história de sua própria sobrevivência. Do fogo, da água, da passagem do tempo, de leitores descuidados ou das mãos do censor — cada um dos meus livros escapou de alguma coisa para me contar uma história. — Alberto Manguel, ‘A biblioteca à noite’.
Em que consiste meu conflito com o poder? Entendi que uma grande ideia precisa de pessoas pequenas, e não de alguém grande. Para ela, o grande é supérfluo e incômodo. Dá trabalho para moldar. E é por ele que procuro. Procuro pelo grande ser humano. Humilhado, pisoteado, ofendido – ele passou pelos campos de trabalho stalinistas e pela traição, e mesmo assim venceu. Realizou um milagre. — Svetlana Aleksiévitch, ‘A guerra não tem rosto de mulher.
Em certo momento do seu livro, Manguel nos diz que os livros não nos ajudam a entender respostas, mas a formular perguntas: “por meio das vozes que recolhem das histórias que imaginam, os livros apenas permitem que recordemos o que jamais sofremos e jamais conhecemos. O sofrimento em si mesmo pertence às vítimas. Todo leitor é, nesse sentido, um outsider, um estranho”.
É a partir desse contato com o outro que tentamos organizar nossa experiência de mundo, dar um sentido à vida.
A suspeita de que nós e o mundo somos feitos à imagem de algo maravilhosa e caoticamente coerente, muito além de nossa compreensão mas ao qual também pertencemos; a esperança de que nosso cosmo estilhaçado e nós mesmos, pó de estrelas, sejamos dotados de sentido e método inefáveis; o prazer de repetir a velha metáfora do mundo como livro que lemos e no qual somos lidos; a hipótese de que tudo que podemos saber da realidade é uma imagem criada pela linguagem - tudo isso encontra manifestação material nesse autorretrato que chamamos de biblioteca— Alberto Manguel, ‘A biblioteca à noite’.
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