Diário de Bordo
Ciclos Circadianos não se guiam por meridianos. Insetos sociais dessincronizados. Seres da terra — pelo ar, sob o mar. Desconexo, descolado.
19:07. Ou 15:07. Ainda tenho horas enfadonhas para preencher até o começo do processo de embarque, às três da manhã. Estou escrevendo em um quiosque chamado go natural no Aeroporto Josep Tarradellas Barcelona-El Prat cujo nome parece mais um apelo para se dirigir à próxima loja.
Estive em trânsito intenso nas duas últimas semanas, visitando um país diferente em uma viagem quase surpresa feita para ajudar um casal de amigos. Por isso, a edição de hoje será como um diário de bordo. Quero compartilhar as experiências da primeira viagem internacional. Reflexões, inspirações & outras questões que surgiram, fragmentadas, durante a estadia.
Antes de continuar, vale lembrar que hoje é o último dia para pegar a assinatura promocional da Ponto Nemo no catarse. Além do custo de produção, pesquisa, entrevista e escrita, também vamos lançar a primeira temporada em um ebook ilustrado, com os textos ampliados e revisados — distribuída para os assinantes das faixa de R$10 ou mais antes de ser publicada para venda.
23° 39' 60'' S 46° 31' 56'' O – Santo André
(…)
— Mas a gente precisava de duas pessoas para embarcar com elas no avião. Vocês têm passaporte?
— Não. Mas é claro que a gente leva! — respondi, rindo, e em pouco tempo a brincadeira virou um “e se…”.
Meu amigo estava se mudando para a Espanha. Mas entre as papeladas e burocracias, duas coisas iam ficar para trás: Amora & Bolota. As duas gatas, irmãs resgatadas por um abrigo, não ficaram com a documentação pronta a tempo.
A solução mais segura e barata que encontraram foi a de pagar a passagem para que duas pessoas pudessem acompanhá-las no avião, levando as gatas em uma cesta de transporte abaixo dos assentos.
Eu já tinha me prontificado a adotar as duas meses antes, se fosse necessário. Parecia lógico que a gente também topasse levá-las — com exceção do fato de nunca ter cogitado uma viagem internacional, de não ter passaporte, noção, dinheiro, remarcar férias, trabalhar em outro fuso horário, caronas para o aeroporto. Tínhamos um prazo de dois meses para resolver tudo.
*
Eu sabia que seria difícil, mas pelos motivos errados. As gatas estavam presas em uma caixa, com dois estranhos. Sem alimentação, espaço ou caixinha de areia em um processo de viagem que duraria 23 horas.
Mas as gatas reagiram bem, na medida do possível, e nós quatros nos tornamos companheiros no processo intenso (& amedrontador) de mudar bichos para outro país. Só não contava com o fato de que aeroportos são ambientes controlados de experimentação entrópica.
…porque a revista dos animais, sim. Isso foi um inferno. Eu já sabia que precisaria pedir uma sala separada para a inspeção privada. Eu não tinha confiança o suficiente para tirar elas das caixas sem cogitar uma fuga em massa e animais perdidos e voos cancelados.
Mas não imaginei que isso implicaria em uma multidão de policiais apertada numa sala fechada, escura e completamente intimidadora (para mim & para os gatos), em um entra e sai por dezenas de minutos; que a Amora ficaria amedrontada; que seria impossível removê-la da caixa; que eu teria que discutir com a polícia porque, não, eu não ia voltar e refazer o processo para enfiar ela dentro de uma caixa apertada e despachá-la para dentro do bagageiro escuro e sem a Bolota; que eles iam fazer uma revista externa e descontar o estresse deles em um tipo sádico de tortura psicológica que duraria muito tempo porque, conforme a experiência deles, em Amsterdã ou em Barcelona eu não ia conseguir escapar e tudo daria errado; e que eu passaria as 12 horas de um voo, mais as duas horas e meia do outro, sem contar as três horas entre as conexões, em uma ansiedade terrível.
Embarquei enjoado & ansioso. Não consegui comer. Não preguei o olho. Em certo momento da madrugada, eu só conseguia chorar e olhar para a barrinha de progresso da viagem que teimava em não descer. Nos nossos pés, as gatas dormiam tranquilamente.
*
Na Holanda, Amora fez amizade com o policial responsável pela revista privativa.
Na Espanha, nenhuma das duas foi revistada.
41° 06' 56'' N 01° 14' 58'' L – Tarragona
Gatas em casa. Felizes, carinhosas. Restabelecidas. Sem nenhum ressentimento, nem desgaste.
Eu e a Mara, por outro lado, estávamos acabados. Os dois primeiros dias em
Tarragona foram para se restabelecer. Fechamos alguns roteiros e planejamentos, combinamos trajetos, mudamos coisas de lugares e desistimos de Toledo. Fizemos compras em uns mercados da cidade, economizamos dinheiro.
Depois, fomos descobrir a cidade. Eu e Mara. Meu amigo e sua companheira.
*
Numa primeira vista, Tarragona me lembrou das viagens que fiz com minha família para São João del-Rei. Ruas estreitas, sinuosas e escuras, ladeadas por prédios antigos e construções de pedra… mas dadas as devidas proporções.
Tarragona é construída sob as ruínas da antiga Tarraco, cidade de grande destaque durante o império romano. Parte da vantagem estratégica fornecida ao império era a vista privilegiada do Mediterrâneo — gosto de pensar que não só pela vantagem militar, mas também pelas possibilidades estéticas de admirar o mar de um mirante tão bem localizadas. Hoje, o ponto é chamado de Balcão do Mediterrâneo.
A cidade parece um álbum de colagens; ou uma página retirada do quadrinho Aqui, do Richard McGuire. Tarragona foi uma cidade de altos e baixos, com ciclos de desenvolvimento, ápice, invasão, estagnação e tudo de novo outra vez — preferencialmente, aproveitando as estruturas do período anterior. Todas essas estratificações parecem ocupar uma mesma faixa de tempo.
A Catedral de Tarragona é um bom exemplo. Sua construção começou no ano de 1171 e foi consagrada em 1331. Ela é a primeira catedral da Catalunha, um marco na transição da arquitetura românica para a gótica e foi pensada para ocupar o espaço de uma antiga mesquita árabe do século X — templo que ocupava o espaço de uma antiga catedral visigótica, dos anos 475, demolida nas invasões muçulmanas. Só que, ainda antes disso tudo, o espaço era dedicado à adoração do imperador Augusto, no primeiro século depois de Cristo.
As camadas temporais sempre coexistem, mas ali elas conversam com você. Pedras que ainda não foram reduzidas à pó e que resistem. O Anfiteatro foi construído sob um cemitério e depois virou uma igreja (que também foi demolida); as Muralhas foram adaptadas e reformadas conforme as necessidades dos anos que passavam, como a ampliação em altura e o implemento de canhões; o Pretório teve modificações nas estruturas e a ampliação dos seus cômodos; o Fórum está localizado no meio de uma metrópole, com pontes de ferro e perto de carros.
Ruínas despontam no meio das calçadas. Até espaços de pouco destaque ou preservação, como um Teatro Romano, dividem espaço com grafites, reinvidicações atuais e garrafas de plástico (que provavelmente farão a jornada do tempo ao lado das rochas). Tic & Tac.
No entanto, uma pulga.
Parte da minha inquietação surge da própria limitação sensorial em tentar compreender a temporalidade de algo de milhares de anos. A percepção de que a eternidade é uma só uma questão de enquadramento. Anônimo. Infinito. Maluquice.
Mas grande parte do incômodo surgia da construção narrativa daquilo, principalmente depois dos dois palácios: a Casa Canals e a Casa Castellarnau. Aos poucos, a percepção de uma narrativa linear e homogênea, grandiosa, foi se estabelecendo. Onde cabe a experiência humana, singela, nesse trajeto?
Como as pessoas usavam esses lampiões? Quantas vezes bateram os dedinhos na quina dessa mesa? Como as crianças brincavam com esses dados? Quais eram os jogos que jogavam?
O grandioso parece se esquecer daquilo no rés-do-chão.
40° 25' 00'' N 03° 42' 13'' O – Madrid
De Tarragona para Madrid, usamos um trem rápido e ficamos em um hostal. Ao longo dos dois dias e uns quebrados que ficamos por lá, leio Escute as feras, de Nastassja Martin.
Ao longo da leitura, penso que o relato de Nastassja estabelece um caminho com as sensações da viagem, mas ainda não consigo identificar o porquê. Creio que tanto eu quanto Nastassja estamos incomodados com as tentativas de interpretação e síntese da pluralidade em uma narrativa oficial, numa identidade uma.
Nástia é uma antropóloga francesa que vive junto aos even nas florestas siberianas. Ela foi surpreendida por um urso em uma trilha, em um encontro brutal. Como ela descreve no livro, “nesse dia 25 de agosto de 2015, o acontecimento não é: um urso ataca uma antropóloga francesa em algum lugar nas montanhas Kamtchátka. O acontecimento é: um urso e uma mulher se encontram e as fronteiras entre os mundos implodem. Não apenas os limites físicos entre um humano e um bicho que, ao se confrontarem, abrem fendas no corpo e na cabeça. É também o tempo do mito que encontra a realidade”.
A partir do encontro violento que estraçalha seu rosto e fratura sua mandíbula, Nástia tenta compreender a experiência do combate/diálogo entre ela e o animal. Mas sua busca é complexa e vai contra as tentativas de organizar a narrativa em um sentido único, compreendido pela mente humana. Nástia não quer se tornar a mulher que sobreviveu ao urso; não quer que o urso seja um símbolo (da pulsão de morte, de uma limitação, da força, da maternidade ou qualquer fruto nesse sentido). Ela busca a complexidade do acontecimento, a pluralidade de pontos de vista.
Como fruto do embate com o urso, Nástia é marcada pelos even e colocada no lugar de miêdka — alguém que é metade humana e metade ursa. Seu espaço é o da fronteira entre mundos, sem que possa habitar nenhum deles com totalidade. A metamorfose é sua única permanência.
Talvez, a ideia de se relacionar com o espaço seja sempre essa. Não há uma narrativa oficial, única. Um modo de vida espanhol ou brasileiro. Não é possível resumir o que é dito, feito e vivido em uma síntese, uma identidade nacional. São cartografias, relações, experiências.
Em um determinado momento, Nástia escreve:
Penso em Clarence, o velho sábio gwich’in de Fort Yukon, no Alasca, meu amigo e precioso interlocutor durante os anos em que morei em seu vilarejo. Sempre o observei com olhar entretido quando ele me dizia que tudo era constantemente “gravado” e que a floresta era “informada”. Everything is beign recorded all the time, ele repetia. As árvores, os animais, os rios, cada parte do mundo guarda tudo o que se faz e tudo o que se diz, e até mesmo, às vezes, o que se sonha e o que se pensa. Por isso é preciso prestar muita atenção nos pensamentos que formulamos, porque o mundo não se esquece de nada, e cada um de seus elementos componentes vê, ouve, sabe.
Talvez, o ideal seja se desprender das tentativas homogeneizantes de experimentação do espaço e se relacionar com o conhecimento do próprio mundo.
A tradução do livro optou pelo termo de escutar as feras, quando o original traz um sentido de crer ou acreditar nelas. Acho que o caminho pode ser esse: não escutar, como um processo interpretativo ativo, em que eu sei aquilo que está sendo dito, mas um ato de comunicação instintiva. Um salto de fé.
41° 23' 24'' N 02° 09' 14'' L – Barcelona
Os dois últimos dias da viagem foram marcados pela exaustão, mas também pelo maravilhamento. Separamos Barcelona, basicamente, para conhecer o trabalho de Antoni Gaudí.
Eu esperava que fosse gostar, mas não estava pronto para tanto. Creio que foi a experiência estética mais intensa que já passei. A construção do terraço da Casa Mila, a experiência submersa da Casa Battló e a força religiosa da Sagrada Família me pegaram de jeito. Acreditar naquelas paredes foi algo intimidante.
É difícil passar por isso e, em tão pouco tempo, retirar o vivido do campo não-verbal para o texto. Gostaria de escrever, mas as palavras que surgem parecem falsas. O apodrecimento dessa experiência ainda precisa acontecer, e que ele dure o tempo que precisar. Volto a falar disso quando estiver pronto.
O fato é que tivemos que voltar antes de ver todas as construções do Gaudí que gostaria.
Quem sabe, viajar não seja tão diferente de construir uma catedral imensa, como a Sagrada Família — em um determinado momento, a ficha caí e percebemos que parte do trabalho vai ficar incompleto. A vantagem é que ainda temos a esperança de concluir o trabalho em algum momento (se for possível).
*
Parece que vi tudo isso há um mês e não há algumas horas.
São 21:09. Ou 17:09. Mais cinco horas até a abertura dos quiosques para a retirada o cartão de embarque, depois mais alguns momentos até o a hora em que sobrevoarei o oceano (lugar em que, definitivamente, não fui feito para estar).
*
Agora, são 15:44. Unicamente 15:44 de uma sexta-feira, dia 18.02.2022. Meu computador e meu celular estão, novamente, de acordo.
Em casa, enfim.
Obrigado por ler até aqui!
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Nos últimos dias, eu:
Participei do episódio: “30:MIN 368 — Superação — Stephanie Land”;
Participei do episódio: “30:MIN 369 — Cópia ou Inspiração?”.