Anemonações #1 - Ruínas
Sobre a temporalidade ambígua das ruínas, 'Pedro Páramo' e 'Hora de Aventura'
Minhas intenções para esse texto eram outras. Juro.
Eu tentei começar essa seção explicando que o que eu queria era falar sobre as coisas que leio, jogo, escrevo, etc. — e sobre como me apaixonar por Saga, quadrinho de Brian K. Vaughan e Fiona Staples, me fez criar um lugar para trocar ideias de coisas que adorei, mas sem precisar fazer um textão de resenha ou tentar gravar um episódio do podcast.
Só que isso ficou no texto que está na janela minimizada. Resolvi começar falando sobre ruínas e, quem sabe, sobre fantasmas.
Eu gosto de ruínas. Sempre gostei. Resgatei uma crônica que escrevi há uns cinco ou seis anos (antes de entender que eu não gostava de escrever crônicas) que falava sobre a sensação curiosa de observar as ruínas que brotavam nas beiras das estradas — construções de alvenaria quase completas, mas que não floresceram. As paredes com mais sorte tinham um ‘borracheiro 24 horas’ pintado em branco numa parede azul marinho.
Lembro de ver, na mesma viagem, um bairro abandonado. Algumas casas na beira da estrada, dominada por matos e quase todas sem tetos, portas ou janelas. Tudo caindo.
Na crônica, escrevi que as estradas são repletas de histórias passageiras e sem raízes, já que é um lugar marcado pelo movimento. Já as ruínas são registros de uma história incompleta, a cicatriz nostálgica de um projeto inconcluso. Besteira. Não só as estradas estão repletas de histórias que se enraizaram por ali, como também as ruínas são cheias de começos possíveis.
Em O cogumelo no fim do mundo, Anna Tsing registra seus estudos sobre o cogumelo matsutake, feitos na base de um relacionamento afetivo muito intenso, e que, muitas vezes, tinham as ruínas como pano de fundo.
Logo na introdução do livro, ela fala sobre a alienação que sofremos hoje, em um processo de afastamento do sujeito, do trabalho e o espaço em que a atividade é realizada. Descreve a situação da seguinte forma:
“Quando aquele recurso específico já não pode mais ser produzido, o lugar é abandonado. A madeira foi cortada; o petróleo acabou; o solo das plantações já não sustena mais as lavouras. A busca por ativos é retomada em outro lugar. Assim, a simplificação em prol da alienação produz ruínas, espaços de abandono exauridos pela produção de recursos”.
Além de nos desconectar desses espaços de trabalho, tal alienação não permite a visualização de que “esses lugares podem estar cheios de vida, apesar dos anúncios de sua morte; campos de lavoura ou extração abandonados às vezes produzem novas vidas multiespécies e multiculturais”.
O que Tsing traz em sua pesquisa é que, nesse estado precário em que nos encotramos, com um eminente colapso na nossa porta, a melhor opção é buscar vida nas ruínas. Enxergar outras possibilidades de existência. Será que crescem cogumelos dentro das casas abandonadas? Será que plantas floresceram naquele borracheiro 24 horas? Uma colméia, quem sabe?
Hoje, entendo que o que me atraí nas ruínas e me fez pensar na incompletudo é a parte narrativa da coisa — o referencial humano, o acontecimento. O que será que aconteceu? Morte? Dinheiro faltando? Ou será que sobrando? Vai ver, encontrou uma fortuna e se mudou.
Foi essa perspectiva que me fez escrever. Há pouco tempo, fui ao Parque do Carmo ver a Festa das Cerejeiras. Em certo momento, enquanto estávamos na fila das comidas, me peguei olhando para um ponto fixo e… viajei. Não sei descrever de outra forma.
Tentei projetar aquele recorte geográfico específico ao longo do tempo: pessoas que andassem ali há alguns anos atrás usariam outras roupas, não existiria tecidos com plástico ou esse tipo de calçado… aliás, será que teriam pessoas aqui nesse tempo? Onde será que tinham árvores? Quais não vingaram? O que foi arrancado para conseguir domesticar esse parque? Quantos animais morreram aqui? Quantos nasceram? Será que dividiram o mesmo espaço, em tempos diferentes?
Tudo isso porque o livro que levava na bolsa era Pedro Páramo, de Juan Rulfo.
Em Pedro Páramo, acompanhamos a descida de um jovem, Juan Preciado, a uma cidade abandonada chamada Comalca. A viagem ocorre depois dele prometer para a mãe, no leito de morte, que iria em busca do pai no povoado — o que eles não imaginavam é que aquela região tinha se transformado em uma ruína.
A paisagem que Juan encontra é desoladora: o pai está morto, as casas estão desabando e a rota que cruza a região quase não é mais usada. Seu único consolo são os habitantes que encontra pelo caminho: os fantasmas que não se desprenderam da região.
Pedro Páramo é precursos do realismo mágico. Publicado duas décadas antes de Cem Anos de Solidão, de Gabriel García Marquez, é um dos holofotes da estruturação da conhecida explosão da literatura latino americana — conforme Nicolas Neves explica em uma de suas resenhas.
No entanto, diferentemente do romance de Gabo, a obra de Rulfo está marcada por um pessimismo evidente proveniente da revolução mexicana. Por isso, retrata uma realidade tão desolada, abandonada e ligada ao subdesenvolvimento. Desse retrato, é quase óbvio que a única coisa que pode surgir em Pedro Páramo é a ruína.
Nesse espaço aparentmente estéril, Juan Rulfo nos apresenta uma narrativa fragmentada por diversas vozes, que se alternam, e em diversos tempos, que passam a coexistir. Tudo isso narrado majoritariamente pelos fantasmas dos habitantes que não puderam partir ao mundo dos mortos, já que a Igreja, corrupta, se viu incapaz de absolver as almas.
Então, os espíritos continuaram por ali. São apresentados como ecos. Ali, recordam e narram memórias, fadados a um ciclo contínuo. Enfim… sem me alongar muito, acho curioso como isso parece se relacionar com outras obras da literatura latina. Em A invenção de Morel, por exemplo, Adolfo Bioy Casares apresenta uma máquina de recriar passados, que repete os acontecimentos da ilha como o futuro holográfico de um passado arruinado. Até mesmo em Cem Anos de Solidão, Gabriel García Marquez está nos contando a história daqueles que “não tem uma segunda chance sobre a terra”.
Em outro campo, acho que Hora de Aventura, desenho idealizado por Pendleton Ward e lançado em 2010, é outro que também incorpora a ruína enquanto forma narrativa — e é um assunto que queria escrever há muito tempo.
A animação conta a história de Finn, um menino humano em um mundo pós-apocalíptico (e bastante fantasioso), que está crescendo. Muito dos problemas abordados nos episódios tratam dele aprendendo valores heroicos, descobrindo as primeiras paixões e, também, buscando seus antepassados — já que não conheceu seus pais e foi adotado por uma família de cachorros.
No trajeto desse herói, as ruínas são usadas principalmente para a construção do mundo e a marcação temporal no desenvolvimento dos personagens. Em um episódio sobre o passado da Princesa Jujuba, por exemplo, é possível descobrir grande parte da vida pregressa de uma família que morava em um posto de gasolina só pelos vestígios deixados, sem que nada seja dito sobre o assunto.
Outro episódio brinca com a temporalidade em uma cafeteria. Nas primeiras cenas, vemos a história de um casal que se apaixonou e tomou milkshake juntos. No fim, a lanchonete não existe mais — alguns bancos ocupam o espaço, uma tubulação antiga que projetam o mesmo cenário.
Isso se repete na construção do mundo como um todo. Vemos trilhos de metrô, que não funcionam mais, novos seres que evoluriam e foram criados a partir de outros elementos… o próprio mundo do desenho é um desenrolar possível do nosso presente. (Um dos mistérios, inclusive, é o que foi feito da humanidade?)
Mas, para ser sincero, sempre tive vontade de escrever sobre o assunto porque a sensação que o fluxo temporal no Mundo de Ooo me causa é quase sublime. Muitas vezes, a temporalidade também serve para marcar a passagem de um tempo não-humano; as mudanças e permanências longas, que transformam qualquer vida em um acontecimento minúsculo (e, ainda assim, marcante o bastante para identificarmos a história em pequenos objetos ou monumentos).
Finn e Jake, seu irmão-cachorro-mágico, moram no Forte da Árvore. Em alguns episódios, vemos a árvore brotando; só uma mudinha. Em outros, vemos ela em alturas tão enormes e sem nenhum vestígio dos personagens que apresenta a inexorabilidade da morte e a insensibilidade do tempo que corre.
Os últimos minutos do último episódio parece tocar bastante nesse ponto. No futuro distante, um dos personagens reúne alguns dos objetos das aventuras passadas em sua moradia. Sua memória já está falhando, não se recorda muito bem de tudo o que passou e o que restou foram as ruínas — e a consciência da inutilidade & grandeza da jornada de uma vida… até que as ruínas e nossa consciência sumam também.
Enfim! Para concluirmos esse episódio, o que queria dizer é que as ruínas me trazem uma sensação poderosa. Assim como os fantasmas-eco, elas habitam uma temporalidade múltipla. Enquanto lemos um romance ou vemos um filme, a temporalidade surge do passado que gerou uma consequência no presente e projetos uma expectativa para o futuro. A ruína me parece evidenciar que houve um presente anterior e que haverá um futuro sem você. É um tempo ambíguo.
Em Pedro Páramo, os fantasmas repetem o presente que viveram no presente que lemos. São duas temporalidades que coexistem — junto à percepção do fim.
Um dos personagens que me espera nos rascunhos é Cesário, um falecido funcionário. Depois que um fungo cresceu em seu pulmão e tomou conta do sistema nervoso, Cesário morreu. Por estar morto, segue descolado do tempo — mas o apodrecimento obedece às conexões sinápticas antigas.
Então, Cesário age de maneira normal, ainda que não aprenda coisas novas. Alguns dizem que seus padrões foram pré-gravados de acordo com o destino, quase profético. Outros não têm certeza se ele é consciente, arriscam que ele repete o padrão demarcado pelas memórias em um fluxo espasmódico, como se pelo reflexo de uma perna que toma choque… ou um eco.
Ao evidenciar a simultaneidade de temporalidades e narrativas, me parece que a ruína evidencia que a vida acontece o tempo todo. Ainda que, para você, seja apenas por um brevíssimo período de tempo.
“Bernie Kapax: Mas me saí bem, não? Quer dizer, vivi... quanto? Uns quinze mil anos? É, um bocado de tempo, não é? Vivi uma enormidade.
“Morte: Você viveu o mesmo que todo mundo, Bernie. O tempo de uma vida. Nem mais. Nem menos. O tempo de uma vida.”
Neil Gaiman, Sandman: Vidas Breves (vol.3)
Indicações
Além dos links que coloquei ali, você pode se aprofundar mais sobre tema (e recomendo, principalmente porque hoje se fala muito e se conhece pouco o dito realismo mágico):
Ouvindo o episódio ‘30:MIN 321 - Retorno ao Realismo Mágico’;
Ele foi bastante pautado pelo episódio ‘Realismo Mágico - Estado da Arte’;
O Nicolas Neves, do canal las hojas muertas y otras hojas, tem alguns vídeos sobre o que citamos hoje, como ‘Para além do boom: o modernismo tardio e a tecnificação da narrativa latino-americana’ e ‘A politização da técnica: Cem anos de solidão (Gabriel García Márquez’.
Obrigado por ler e apoiar!
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