Temporada 02 — Episódio 08: Continuar sonhando...
Encerramos a temporada e, para que o sonho não deixe sua rotina, falamos de algumas narrativas focadas nos sonhos
Chegamos ao fim da temporada onírica.
Nessa trajetória, tentei construir não só a explicação dos fenômenos oníricos, mas evidenciar a importância do sonho. Conceber a trama onírica não só como espaço de narrativas, mas também como um ato de resistência — uma vez que envolve ritmos que não se encaixam no cronograma produtivo do capital, a valorização de um conhecimento que não é técnico ou racional e evidencia relações políticas e sociais de um indivíduo que não está isolado, atomizado. Seja pelo viés da oniropolítica ou dos saberes yanomami, sonhar não é diagnóstico individual, é também olhar (e ser olhado) pelo outro.
No entanto, como evidenciado na conversa com Hanna Limulja, não basta apontar o potencial revolucionário dos sonhos, dar as mãos, usar uma hashtag e sonhar. Há populações vulneráveis que não conseguem dormir. É preciso sonhar, sim. Mas não basta: é necessário lutar efetivamente por um mundo em que todos sonham.
Para nosso encerramento, separei alguns dos materiais que me acompanharam nessa trajetória. Além da playlist no Spotify, que enviei no começo da temporada, vou compartilhar dois livros da Ursula K. Le Guin em que o sonho me pareceu um ponto-chave na narrativa — e sintam-se convidados a compartilhar quantos livros quiserem nos comentários.
Ah, no Instagram também postei uma foto com os livros que serviram de auxílio na produção da temporada. Nem todos foram citados diretamente, mas fizeram parte do percurso. A lista de livros é:
O oráculo da noite, de Sidarta Ribeiro;
Sonho Manifesto, de Sidarta Ribeiro;
24/7: Capitalismo Tardio e os fins do sono, de Jonathan Crary;
A interpretação dos sonhos, de Sigmund Freud;
Sonhos confinados, organizado por Christian Dunker, Cláudia Perrone, Gilson Iannini, Miriam Debieux Rosa e Rose Gurski;
O desejo dos outros, de Hanna Limulja;
A queda do céu, de Davi Kopenawa e Bruce Albert;
Floresta é o nome do mundo, de Ursula K. Le Guin;
A curva do sonho, de Ursula K. Le Guin;
Floresta é o nome do mundo: capitaloceno e resistência na obra de Ursula K. Le Guin, de Ana Rüsche (capítulo de Depois do fim: conversas sobre literatura e antropoceno – ensaios, organizado por Fabiane Secches).
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T02 E08: Continuar sonhando...
Antes de falarmos dos livros da Ursula K. Le Guin, queria retomar uma das propostas que Sidarta Ribeiro desenvolve em O oráculo da noite: a valorização do sonho lúcido. Sidarta acredita que, como espaço seguro e fértil, o sonho lúcido oferece um local seguro para experimentações, mudanças e planejamentos.
Nesse caminho, Ribeiro traz a visão sobre o espaço onírico pelo viés de monges do Tibete. Lá, o adormecimento é visto como um preparo para a morte. O sonho, como um construto, “uma ilusão sujeita às manipulações da vontade, aos limites da técnica e às intenções do sonhador”. Para lidar com essa imagem complicada, os monges praticam a ioga dos sonhos, o milam, que apresenta um trajeto para alcançar a lucidez elevada no espaço onírico.
Sidarta Ribeiro apresenta cinco passos nesse percurso de elevação, que são:
Na primeira etapa, o sonhador precisa reconhecer o espaço do sonho, ou seja, atingir o primeiro grau de lucidez onírica;
Na segunda etapa, o sonhador precisa reconhecer que o espaço do sonho não o atinge; que os terrores e pesadelos são falsos e se livrar dos medos;
Na terceira etapa, o sonhador precisa contemplar a mutabilidade permanente de todas as coisas, tanto na esfera onírica quanto na da vigília. Tudo muda. É preciso aceitar que as coisas são ilusões, impressões fugazes e insubstanciais;
Na quarta etapa, o sonhador precisa usar a compreensão da etapa anterior para transformar livremente os objetos dentro dos sonhos, de acordo com seus desejos;
Por fim, na quinta etapa, o sonhador precisa “aprender a unir seu sonho com a ‘divina luz do vazio’, visualizando em estado de lucidez onírica um Buda ou outra divindade” — uma etapa incompreensível, até que alcançada.
A apresentação da ioga dos sonhos não é feita como sugestão de prática, mas evidencia a potencialidade do sonho lúcido. Ribeiro, em outro momento, descreve como o sonho lúcido poderia auxiliar na resolução de problemas:
o sonho lúcido tem potencial para ser o espaço mental que nos permitirá imaginar soluções para os problemas mais desafiadores, da destruição dos mananciais à dicotomia entre mente e cérebro, da epidemia de suicídio ao desmatamento acelerado das florestas que restam, da desigualdade extrema à corrupção generalizada, do vício mais destrutivo de todos — o dinheiro — até o acúmulo de microplásticos, da hecatombe da criação e do abate cruel de animais até o fim de quase todos os empregos, muito em breve, quando os robôs concluírem sua chegada triunfal.
Segundo Sidarta, depois de dominar o sonho lúcido, muitas coisas podem ser feitas: rever pessoas queridas; viver paixões; viajar e aventurar-se; ou até treinar manobras perigosas. Não sem perigos. Caso a prática se torne comum, Ribeiro evidencia os males do hedonismo irresponsável, da heresia com conhecimentos ancestrais e da banalização — comentamos um pouco sobre isso na primeira temporada, ao falar sobre o uso de cogumelos alucinógenos.
Creio que esses não sejam os maiores problemas da prática do sonho lúcido que Sidarta propõe. O que me parece estranho é o próprio agenciamento do ato de sonhar. É inserir o sonho em um fluxo de produtividade, com objetivos a serem alcançados e análise de rendimento.
Talvez, o mais interessante fosse a própria valorização do espaço onírico por si só e do sonho lúcido como um dos caminhos possíveis para a sintonização do indivíduo com esse espaço, sem a necessidade de solução de problemas. O que fica evidente na proposta é a força criativa do sonho, que recombina elementos da vigília e do sonho em novas narrativas.
Sonhos, criatividade e narrativas
Sidarta Ribeiro faz um caminho curioso ao refletir essa relação. Ao pensar no sonho como narrativa que surge da reorganização de memórias, insere na equação a própria cultura. O pesquisador escreve que “a fermentação da cultura sempre dependeu de imaginar formas novas a partir da recombinação de formas velhas, e a construção mental do que ainda não existe sempre se beneficiou dos sonhos como fonte primordial de inspiração”.
Ao descrever o ato criativo “em estado puro”, Sidarta aponta para a impossibilidade de visualizá-lo de forma concreta:
Na visão, na revelação, no momento “Eureka!” de epifania, insight, clarão, nesse processo mental que os gregos chamavam de abdução e que hoje chamamos de restruturação de memórias, o mais importante é capturar os princípios gerais que organizam a realidade que se quer revelar. A imaginação de uma ideia nova não precisa ser exata para dar certo.
Por isso, Ribeiro afirma que o ato da criação é o “processo intelectual mais livre de todos, em que a mente é transportada para soluções não evidentes, aparentemente distantes e via de regra surpreendentes”.
O sonho não se distancia desse processo. Conforme as imagens dos sonhos se tornam mais abstratas e com ligações menos perceptivas, o sono também reativa e relaciona memórias antigas com as recém-adquiridas. Dessas integrações, por exemplo, podem surgir novas ideias, inspirações visuais, narrativas estranhas... quase qualquer coisa. O diário de sonhos da Joana Fraga, ilustradora da temporada, é um exemplo dessa relação entre criação artística e as narrativas oníricas.
A capacidade que o sonho tem de subitamente transportar o sonhador até novas habilidades e conteúdos evoca o voo entre pontos distantes, uma verdadeira abdução. Aprendi com o escritor moçambicano Mia Couto que, em certas línguas de Moçambique, sonhar, imaginar e voar são a mesma palavra. Voo livre é uma descrição muito adequada ao colossal ganho de perspectiva que o sonho pode prover. — Sidarta Ribeiro, O oráculo da noite
Vanguardas e movimentos artísticos deixam evidente as inspirações oníricas. Antigamente, enquanto o papel do sonho no campo da espiritualidade e do misticismo estava em disputa, os poetas e trovadores usavam os sonhos em suas criações. Nas obras de arte clássicas, o sonhos são comuns como formas de apresentar revelações religiosas.
Num momento futuro, a psicanálise influenciou as produções artísticas dos dadaístas, surrealistas e simbolistas. Quando os trabalhos de Freud passaram a ecoar nas esferas sociais, no começo do século XX, vários artistas se interessaram pela exploração do inconsciente, das nuances da consciência, dos símbolos oníricos e nesses caminhos incertos que envolvem a mente.
As inspirações, não só dos sonhos, mas também das vanguardas citadas acima, são sentidas até hoje. Podemos elencar diversos exemplos. Nos trabalhos de David Lynch, como Mulholland Drive ou Twin Peaks, o sonho tem papel importante, seja como fator de estruturação da realidade ou fonte de informações.
É no universo dos sonhos que acompanhamos a história da desilusão amorosa de O brilho eterno de uma mente sem lembranças, filme de Charlie Kaufman e Michel Gondry. Em Waking Life, filme de animação de Richard Linklater, acompanhamos um sonhador lúcido pensando sobre questões filosóficas e religiosas, embaralhando reflexões existenciais com memórias da sua vida.
Também foi com um certo barulho que, em 2015, a Netflix lançou o documentário chamado O Pesadelo, narrativa focada em aprofundar o lado aterrorizante da paralisia do sono. E Sandman, que já falamos aqui, é um quadrinho escrito por Neil Gaiman focado no perpétuo responsável pelo Sonhar e que trabalha com questões arquetípicas e simbólicas. Enfim...
São muitas indicações e narrativas — e sintam-se à vontade para indicar as suas preferidas nos comentários. Por hoje, vamos ver duas delas: Floresta é o nome do mundo e A curva do sonho, ambas escritas por Ursula K. Le Guin, escritora estadunidense de ficção científica e fantasia.
Floresta é o nome do mundo
Floresta é o nome do mundo foi publicado pela primeira vez em 1972 e retrata a exploração do planeta Athshe pela população terrana — uma chegada nada sutil, que transforma a existência e paisagem dos athsheanos por meio da morte, fogo e violência.
Na narrativa, acompanhamos os acontecimentos pelo olhar de três personagens: Don Davidson, militar responsável pela “domesticação de mundos”, orgulhoso do seu papel exterminador; Selver, um dos athsheanos que se revolta com o cenário hostil e é porta-voz de mudanças na comunidade; e, por fim, Raj Lyubov, antropólogo que estuda a população local e se vê preso entre a cadeia hierárquica e seus afetos e crenças.
O que se segue na narrativa é a tentativa de instauração de uma indústria madeireira que quer exportar a matéria-prima que já não existe mais em outros planetas. A presença do exército na incursão é para garantir a implementação capitalista com sucesso e efetividade, sem nenhum percalço externo.
A ocupação, majoritariamente masculina, envolve o extermínio da população local — os ashtheanos são assujeitados pelos terranos, recebem nomenclaturas pejorativas, trabalham como escravos nos acampamentos, são vítimas de violência sexual e têm suas filosofias desrespeitadas.
Como escreve Ana Rüsche, em um ensaio publicado em Depois do fim: conversas sobre literatura e antropoceno, essa novela é “uma das maiores denúncias na ficção científica sobre o genocídio no Vietnã feito pelos Estados Unidos” e é preciso entender as críticas ecológicas e políticas que Ursula K. Le Guin faz sobre a exploração e o progresso para entendermos a importância dos sonhos na narrativa.
Em primeiro lugar, Floresta é o nome do mundo me parece um bom exemplo do pensamento que Le Guin desenvolve da ficção como uma cesta. De maneira sucinta, a escritora parte da dualidade de duas ferramentas — a lança e a cesta — para visualizar possibilidades de estruturação narrativa.
De um lado, na narrativa como lança, temos uma história bélica, violenta, pautada pelo conflito e pelo antagonismo; sempre seguindo uma trajetória direta, do início rumo ao objetivo final. É uma narrativa pautada pelo ideal de progresso e conquista e que se resolve de maneira bélica, por meio do embate.
Em seu ensaio, Ursula K. Le Guin reflete sobre o apelo dessas histórias na época das caçadas. A tensão do relato ao redor da fogueira: as presas fugindo, os heróis saindo em perseguição, os companheiros feridos e mortos pelo caminho. Uma concorrência desleal em comparação com o cotidiano dos coletores.
Por outro lado, temos a ficção como uma cesta. Aqui, as histórias não são caçadas, são coletadas e passam a ocupar o mesmo espaço. Le Guin cita o romance como um desses recipientes possíveis para armazenar histórias — nas narrativas romanescas, as vozes são coletadas e desenvolvidas de maneira mais igualitária. O ponto principal nessa organização não é a luta. A luta existe, sim, mas a centralidade passa para o diálogo, a troca. Todos dentro do cesto estão relativamente na mesma altura, com a mesma importância. Não há um grande herói sanguinário.
Então, quando Ursula apresenta a sociedade do athsheanos, estamos vendo duas estruturas: a sociedade terrana, enquanto lança, e a sociedade athsheana, como cesto. A duplicidade é visível ao longo de toda a narrativa: ambientes urbanos e estéreis em oposição à fauna nativa e ecossistemas ricos; ao invés de hierarquias patriarcais e viris no poder, comunidades são aconselhadas por mulheres idosas; corpos sociais que obedecem a um estado único dão lugar a pequenas células horizontalizadas; e, ao invés do pensamento racional e técnico, o mundo dos sonhos.
Em certo momento, Lyubov diz que a sociedade dos athsheanos é uma sociedade sem a ideia de progresso como nós entendemos: “Eles formam uma sociedade estática, estável, uniforme. Não têm história. Estão perfeitamente integrados e, em sua totalidade, não progressistas”.
Seguindo a trama de Le Guin e o ensaio de Rüsche, alguns paralelos também são apresentados no nível da linguagem athsheana. O primeiro deles envolve o título do livro, já que a palavra para planeta é mesma para floresta. Os significados se entrelaçam. “Athshe, que significava Floresta e Mundo. Assim como Terra, ou Terran, significava tanto solo como planeta, dois significados para um”, escreve Le Guin.
Além disso, como afirma Ursula, “‘falar’ aquela língua é agir. Fazer algo novo. Transformar ou ser radicalmente transformado, desde a raiz. Pois a raiz é o sonho. E o tradutor é o deus”. Ou seja, vemos uma sociedade em que ação e linguagem precisam estar em sintonia — é incompatível com o pensamento cruel e pragmático, representado na máxima de que “os fins justificam os meios”.
Por isso, traduzir é também um ato divino: é trazer uma fala-ação de fora daquele espaço para dentro dele. Apresentar maneiras de falar-agir que eram outrora desconhecidas. O contato com os terranos é um dos portais para essa mudança, ainda que não de maneira benéfica.
Na continuação da aspas citada acima, Ursula conclui o diálogo com as seguinte frases: “Selver trouxe uma nova palavra para a linguagem de seu povo. Ele tinha realizado uma nova ação. A palavra, a ação, assassinato”.
— Às vezes um deus vem — disse Selver. — Ele traz uma maneira nova de fazer alguma coisa, ou algo novo a ser feito. Um novo tipo de canto ou um novo tipo de morte. Ele traz essa coisa atravessando a ponte entre o tempo dos sonhos e o tempo do mundo. Quando faz isso, está feito. Não se pode pegar as coisas que existem no mundo e tentar levá-las de volta para o sonho, retê-las ali dentro com muros e fingimentos. Isso é loucura. O que é, é. Não adianta, agora, fingir que não sabemos como matar uns aos outros. — Ursula K. Le Guin, Floresta é o nome do mundo
Aqui, chegamos no cerne da questão para a temporada. Para que o conhecimento seja traduzido e se transforme em uma fala-ação, não basta o contato com o outro ou com uma nova ideia. É preciso viver-sonhar para compreender. É por meio do mundo onírico, como extensão do mundo da vigília, que os conhecimentos chegam. (O que me traz muitas lembranças do episódio anterior, sobre os sonhos yanomami.)
Como destaca Ana Rüsche, sonhar é um ato comunitário em Athshe. Sonha-se em conjunto porque é um ato essencial para a manutenção da organização social e da saúde individual. Inclusive, a chegada da exploração do capitalismo implementa no planeta a lógica de produtividade 24/7, desvalorizando momentos de descanso e alimentando insonias.
Destaco dois momentos em que os athsheanos discutem sobre a valorização dos sonhos nas próprias comunidades em oposição a como os terranos (ou nós) os desprezamos:
— Selver: eles sonham?
— Como crianças, durante o sono.
— Eles não são treinados?
— Não. Às vezes, falam de seus sonhos, os curandeiros tentam usá-los para cura, mas nenhum deles é treinado ou tem alguma habilidade para sonhar. Lyubov, que me ensinava, me entendeu quando lhe mostrei como sonhar, e mesmo assim, ele chamou o tempo do mundo de 'real' e o tempo do sonho de 'irreal', como se essa fosse a diferença entre eles. — Ursula K. Le Guin, Floresta é o nome do mundo
— Um povo não pode ser insano.
— Mas eles só sonham dormindo, você quem falou; se querem sonhar acordados, tomam venenos para que os sonhos saiam do controle, você disse! Como alguém pode ser tão maluco? Eles não diferenciam o tempo dos sonhos do tempo do mundo, não mais que um bebê. Quando matam uma árvore, talvez pensem que ela viverá de novo! — Ursula K. Le Guin, Floresta é o nome do mundo
A curva do sonho
Em A curva do sonho, Ursula K. Le Guin retoma o conhecimento onírico como forma de se relacionar com o mundo, mas, dessa vez, como ato potencialmente revolucionário. Na trama, publicada pela primeira vez em 1971, acompanhamos a história de George Orr, um homem que altera a realidade com o que chama de sonhos efetivos.
Tais mudança são feitas pela alteração do continuum do espaço-tempo: todo o fluxo da história é adaptado para abarcar as propostas oníricas. O primeiro exemplo que lemos é do desaparecimento de uma tia.
Quando adolescente, George Orr era assediado por uma de suas tias e sonha com um passado em que ela nunca se mudou para a mesma casa que ele. Ao acordar, George se lembra da nova história de sua família: sua tia faleceu em um acidente de carro, seus pais passaram por um momento de tristeza e luto e ela nunca chegou a se mudar para a mesma casa. Por ter sonhado com a mudança, Orr manteve a lembrança das duas linhas do tempo. Mas seus pais, não.
O caminho aqui parece o inverso daquele que descrevemos na relação entre memória e sonho. Não é a recombinação de memórias que gera sonhos, mas os sonhos que motivam a estruturação de novas memórias.
“O sonho alterou a realidade, sim. Criou, de forma retroativa, uma realidade diferente, da qual ela fez parte desde o princípio. Por estar nela, não tinha lembrança de nenhuma outra. Eu sim, lembrei-me das duas, porque eu estava... lá... no momento da alteração. Essa é a única forma que eu consigo explicar isso, sei que não faz sentido. Mas preciso ter alguma explicação ou então encarar o fato de que sou doido.” — Ursula K. Le Guin, A curva do sonho
Como fator agravante na história de George, o mundo em que vive é uma distopia completa. A exploração desenfreada, guiada pelo ideal civilizatório e pela noção de progresso, levou o mundo a um colapso geral. Alguns aglomerados urbanos abrigam milhões de pessoas, com condições climáticas péssimas, fome e um controle rigoroso do indivíduo pelo poder estatal (em certo momento, Ursula cita uma Nova Constituição de 1984 — o que me parece ser uma brincadeira com o romance homônimo de George Orwell, autor cujo nome ecoa também no protagonista).
Desde que descobriu seus “poderes”, George Orr tenta parar de sonhar. Acreditando não ter o direito de modificar a realidade, Orr busca maneiras de frear o aparecimento de tramas oníricas intensas — dos sonhos efetivos. Sua última tentativa foi tomar remédios que suprimem sonhos, utilizando cartões de controle farmacêutico de outras pessoas para ultrapassar o limite de cada cidadão.
O livro abre com a cena em que George tem uma overdose de remédios em sua casa e, após um atendimento preliminar, é encaminhado para o programa de Tratamento Terapêutico Voluntário (TTV) sob a supervisão do dr. Haber, um especialista em sonhos.
Em um dos diálogos, Haber explica que Orr está fazendo algo muito perigoso ao se privar dos sonhos. Assim como comida e água, sonhar é uma necessidade do corpo. Não há como impedir: sonhos sempre emergem. Por isso, o tratamento envolve retirar o medo de sonhar e encarar o fato de frente.
A abordagem que Haber adota prevê o uso de uma máquina experimental, o Amplificador. A engenhoca amplifica as ondas do cérebro e, junto da hipnose, induz rapidamente qualquer estágio do sono que se queira com possibilidade de sugestões para a trama dos sonhos.
No entanto, aos poucos Haber entende o poder de Orr e começa a manipulá-lo para moldar a realidade de acordo com sua visão. É a manipulação irresponsável dos sonhos que abre as portas para o caos. Em primeiro lugar, Haber não sabe o que está fazendo. O médico é um daqueles sujeitos bem-intencionados, mas cuja organização do pensamento se baseia em um cientificismo extremo que desumaniza o próximo e procura o progresso a todo custo.
Orr frequentemente diz que Haber tem boas intenções. Mas, em uma de suas investidas, o médico tenta eliminar conflitos étnicos e doenças e o resultado que surge é uma população completamente cinza, com indivíduos sem personalidade e guiada pela eugenia. A manifestação de doença é suprimida publicamente pelo uso de pistolas com agulhas de eutanásia, dispositivo que todo cidadão carrega. Outro momento, após um discurso sobre a necessidade de qualidade de vida para todos apresenta um mundo malthusiano, com o extermínio de grande parte da população.
Soma-se à incapacidade de Haber, os próprios filtros e processos desconhecidos do sonhar. Como diz o médico, “é o que torna os humanos tão inquietantes no que diz respeito ao sono. Sua total privacidade. Quem dorme vira as costas para todos”. As instruções de Haber sempre são deformadas pelo inconsciente, pelas vivências e memórias de Orr. A concretização dos sonhos é quase como fazer desejos para um gênio: será que, se eu pedir o fim da guerra na Terra, começaremos uma guerra no espaço?
Por fim, essa deformação é influenciada também pela própria falta de perspectiva de George Orr. Por diversas vezes, vemos a falta de imaginação utópica em George — ecoando a pergunta de Mark Fisher no subtítulo de Realismo capitalista: será que é mais fácil sonhar o fim do mundo do que o fim do capitalismo?
Quando comenta sobre a região em que escolher morar, lemos que “George Orr ficou em Portland porque sempre vivera lá e porque não tinha motivos para acreditar que a vida em qualquer outro lugar seria melhor, ou diferente”.
Em outro momento, ao refletir sobre as guerras, Orr pensa: “acho que não consigo, ou meu subconsciente não consegue, sequer imaginar um mundo sem guerra”. Uma impotência que não diz respeito apenas às guerras, mas uma impotência geral na alteração do mundo e na regência da própria vida. A inaptidão fica clara quando Orr diz: “não tenho destino algum. Tudo o que tenho são sonhos. E, agora, outras pessoas os comandam”.
O posicionamento de Orr em relação ao mundo é quase contemplativo. Um dos diálogos com Haber mostra como estão em opostos:
“— Na verdade, não é o propósito exato do homem na Terra... fazer coisas, alterar as coisas, dirigir as coisas, criar um mundo melhor?
— Não!
— Qual é o propósito, então?
— Não sei. As coisas não precisam ter um propósito, como se o universo fosse uma máquina na qual cada parte tem uma função útil. Qual a função da galáxia? Não sei se nossa vida tem um propósito e não acho que isso tenha importância. O que importa é que somos um componente. Como um fio no tecido ou uma folha da relva no campo. A relva existe e nós existimos. O que fazemos é como o vento soprando a relva.”
Na conclusão da narrativa, Ursula parece escapar dos maniqueísmos. Nem Orr, nem Haber. Ao longo do livro, vemos como os diversos significados de sonho se interconectam. Os sonhos de George Orr deixam de ser apenas narrativas oníricas, mas passam a ser também aspirações, reflexões utópicas ou ações revolucionárias.
Talvez não saibamos ainda como sonhar um mundo sem capitalismo, sem crises e colapsos. Quem sabe, é um conhecimento estrangeiro, a ser adquirido de outras cosmovisões, organizações do pensamento ou da sintonia com aquilo ao seu redor. Mas acreditar em um ideal civilizatório predatório, como temos feito até agora, é uma solução impossível.
Quer dizer... podemos não saber como seguir, mas sabemos como não seguir. E é por aí que devemos começar a caminhar.
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