Temporada 02 — Episódio 04: Sonhos repletos de pó
Sobre os sonhos na antiguidade & o breve relato de um sonho antigo
Tem sido curioso entender de onde vem o sonho. Observo as pessoas dormindo e procuro movimentos nos olhos. Vejo os horários que acordo e faço cálculos dos ciclos de sono. A cada dia que passa, me sinto mais conectado com a realidade onírica.
Mas sinto que ainda tenho muitos caminhos para percorrer. Tampouco me vejo próximo dos sonhos lúcidos. Às vezes, descarto a tarefa de escrever no meu sonhário improvisado — um espaço sem uso na agenda que se encaixou à função de escrita dos sonhos. Nem sempre respeito meus horários. Em algumas manhãs, sucumbo à sedução do celular ou ao chamado do Animal Crossing.
Acontece. Faz parte do percurso. Nos adaptamos.
Da mesma forma, os planos para essa edição foram trocados e tenho dois episódios de número quatro na minha pasta. Não faz mal. Hoje, vamos pensar sobre o papel do sonho na antiguidade, de acordo com o que Sidarta Ribeiro apresenta em O Oráculo da Noite — é num recorte específico: quando não genérico, eurocentrado.
O motivo é claro: pretendo falar das ancestralidades, culturas e passados das Américas em outro episódio, com um material e entrevista dedicada ao tema. Além disso, o relato de um sonho antigo, quase premonitório, que acompanhou minha mãe por grande parte da vida dela — até, quem sabe, a concretização do fato — também compõe a edição.
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T02 E04: Sonhos repletos de pó
Os sonhos sempre foram importantes para as civilizações. Em O Oráculo da Noite, Sidarta Ribeiro afirma que “todas as grandes culturas da Antiguidade apresentam referências ao fenômeno onírico, marcadas em cascos de tartaruga, tabletes de barro, paredes de templos ou papiros”. O sonho estava ligado aos processos de medicina, de política e até de tomada de decisões simples.
Não é de hoje que o sonho é permeado pela visão mística do oráculo. Era a narrativa onírica a responsável por desvendar sinais que revelassem os tortuosos caminhos do destino, fosse no Egito, na Mesopotâmia ou nas culturas ditas primitivas que permearam os continentes americanos, asiático, africano ou da Oceania.
Nas narrativas míticas gregas, há uma relação interessante que podemos traçar. A primeira é o parentesco de Hipnos, deus do sono, com Tânatos, deus da morte. A ligação entre esses filhos de Nix, a Noite, mostra o caráter intercambiável entre o ato de dormir e o ato de morrer — como se fossem ações parecidas, com diferentes graus de intensidade.
De acordo com Hesíodo, poeta grego responsável pela Teogonia, Morfeu, responsável por moldar os sonhos, é outro irmão de Hipnos. Se pensarmos em Ovídio, poeta romano das Metamorfoses, obra que sempre puxo trechos para me inspirar, Morfeu se apresenta como filho de Hipnos.
No primeiro, Morfeu não chega a ser nomeado, mas Ovídio dá nome e a função de representação dos humanos à divindade onírica — termo que surge, inclusive, pelos diversos outros filhos de Morfeu, os Oneiros.
Em seu livro, Sidarta retoma a potencialidade da figura em sua narrativa, mostrando como
Morfeu leva aos reis as mensagens dos deuses e lidera uma multidão de irmãos, os Oneiros. Esses espíritos de asas escuras emergem a cada noite através de dois portões, um feito de chifre e outro de marfim, como morcegos em revoada. Quando cruzam o portão de chifre — que, quando adelgaçado, é transparente como o véu que recobre a verdade —, geram sonhos proféticos de origem divina. Quando passam pelo portão de marfim — sempre opaco mesmo quando reduzido a espessura mínima —, provocam sonhos enganadores ou desprovidos de sentido.
Já vimos a figura de Morfeu de maneira rápida quando falamos sobre Sandman, de Neil Gaiman e podemos ampliar a discussão com algumas outras ponderações. Em um vídeo no seu canal do YouTube, o psicólogo Christian Dunker comenta Sandman e o Sonhar na psicanálise e explica que “Morfeu, em grego, quer dizer forma. Ele vai comparecer para a produção do mundo numa espécie de acasalamento com a matéria, hilé. A causa formal e a causa material, em Aristóteles, se juntam e formam a substância, o mundo, as coisas”. O sonho, então, está ligado às possibilidades de um mundo concreto, à forma com que a realidade se constrói e é moldada.
Leonardo Tremeschin, do Mitografias, também fez um vídeo dedicado à entidade e apresentou a construção da figura na mitologia grega — ainda que pouco presente. Ali, o pesquisador evidencia que Morfeu aparece como um dos elementos da natureza, não como um deus, e que é bastante representado portando asas, simbologia presente nos que precisam viajar ou carregar algum tipo de mensagem.
Da multidão de seus mil filhos, desperta o deus
o artífice e simulador da figura humana, Morfeu.
Não há outro que melhor do que ele reproduza
o andar, o aspecto e a voz e até as vestes e as expressões
mais típicas de cada um. Mas este apenas imita os homens.
Há outro que se torna fera, se torna ave,
se torna serpente de corpo alongado.
Àquele chamam os deuses Ícelo e os mortais Fobetor.
Há ainda um terceiro, Fântaso, senhor de multifacetado
talento. Disfarça-se de terra, de pedra, de água,
de árvore, de qualquer coisa inanimada, de tudo.
Estes, de noite, costumam mostrar suas faces a príncipes
e reis. Outros deambulam entre a multidão da plebe.
Morfeu a todos supera. — Ovídio, Metamorfoses (trad. Domingos Lucas Dias)
No entanto, muito antes de Morfeu ser moldado, os sonhos e as histórias já se relacionavam. Nos primeiros capítulos de O oráculo da noite, Sidarta Ribeiro comenta que há fortes indícios de ligação do mundo onírico com as primeiras narrativas mitológicas.
Foi a aparente generalidade de alguns símbolos vistos nos sonhos que sugeriu a Jung uma espécie de código universal — os arquétipos. Mesmo sem a evidência biológica desse compartilhamento, podemos pensar que os símbolos compartilhados e encontrados em diferentes culturas representam as experiências universais humanas.
Como explica Ribeiro, “é o modo de viver que pauta o sonho — e os marcos mais importantes são os mesmos em toda parte: nascimento, puberdade, sexualidade, procriação, conflito, doença e morte. Essa verdade profunda da vida nada tem de especialmente humana. Sua validade se aplica não apenas a todos os primatas, mas a qualquer animal”.
(Inclusive, a Revista Gama adotou os sonhos como temática de uma das semanas. Não sei se falaremos disso com mais profundidade, mas o jornalista Leonardo Neiva escreveu uma matéria bem interessante sobre Como sonham os animais?.)
Enquanto fonte de imagens, ideias, anseios e histórias, Sidarta aponta que os sonhos tiveram um “lugar de destaque”, já que se renovavam a cada noite. Podemos supor que, como os sonhos refletem o cotidiano do sonhador, os primeiros humanos relembravam a coleta das frutas, a rotina das famílias, alianças, caçadas ou a confecção de utensílios — provavelmente, é a partir desse reflexo do dia-a-dia desperto que as primeiras noções de alma ou espírito passaram a se firmar.
Sidarta aponta que essa concepção surge ainda no período Paleolítico, entre 2,7 milhões e 10 mil anos atrás, possivelmente por intermédio de sonhos e êxtases místicos de sonhadores especializados, como os xamãs. Ribeiro explica que “a crença na vida após a morte se confundia com a crença no sonho como portal entre vivos e mortos. Em diferentes culturas, xamãs se especializaram em técnicas para atravessar esse portal e viajar no tempo e no espaço, vendo o que a maior parte das pessoas não consegue ver”.
Como vimos no episódio sobre máscaras fúngicas, a trajetória frequentemente envolvia um ritual de transformação — uma passagem que envolve a morte do ser completamente terreno para o renascimento de um indivíduo que habita o espaço entre os dois mundos, o xamã. “Através de privações e provações físicas, xamãs buscam obter visões numinosas e aumentar seu saber na forma de canções, nomes ‘verdadeiros’, guardiões totêmicos e revelações genealógicas”, escreve Sidarta Ribeiro, e conclui dizendo que “em diferentes culturas é o sonhador — xamã ou não — quem dialoga com o mundo dos espíritos”.
Com a percepção nova de uma vida dupla e uma vida após a morte, a complexidade narrativa e simbólica se torna mais fértil — aparecem as primeiras imagens de fertilidade, geralmente associada ao feminino; surgem elementos fálicos, representações de animais e, também, as representações circulares e cíclicas. Com o culto dos mortos, surge também o culto da fertilidade: um ciclo completo de morte como uma promessa de vida, de sazonalidade e ciclos.
Os novos modos de vida traziam, inevitavelmente, novos elementos simbólicos. A percepção do fogo, por exemplo, passa a tomar forma como senhor dos ferreiros, mineiros e mágicos, responsável pela transformação da matéria. Mitos diluvianos também tomam forma com o estabelecimento da agricultura. Os referenciais geográficos fixos de uma sociedade agora sedentária gera as primeiras evidências de princípios antagônicos, como nós versus eles; dia versus noite; verão versus inverno.
Junto disso, a associação entre sonhos, divinação e necromancia. A hipótese que Sidarta Ribeiro apresenta em O oráculo da Noite foi primeiro descrita pelo psicólogo estadunidense Julian Jaynes.
Segundo Sidarta, “Jaynes propôs que os primeiros deuses se originaram das representações mentais dos ancestrais falecidos, que persistiam reverberando na mente de seus familiares, na vigília, mas sobretudo durante o sono”. O exemplo apresentado torna a situação clara: quando morria alguma figura central para um certo coletivo, é claro que a figura do falecido aparecia em sonho para os sonhadores. A partir daí, “ao sonhar com o chefe do bando, os outros membros do grupo, assombrados, tendiam a considerá-lo vivo num mundo paralelo. A crença na vida após a morte tinha a sua confirmação mais eloquente quando o morto dava comandos, avisos ou conselhos úteis”, afirma Sidarta.
Se estabelecermos essa relação, cultuar os mortos em sonho e pensar em deuses se torna diretamente próximo. Nas primeiras grandes civilizações da Suméria, Egito, Babilônia, Assíria, Pérsia, China e Índia, o sonho teve um papel central nas narrativas mitológicas. Criaram-se coletâneas de sonho, manuais de leitura para premonições e correlações entre a narrativa onírica e a do mundo concreto. Com frequência, o sonho foi considerado diretamente ligado à recuperação saudável de uma pessoa enferma.
Em Roma, os sonhos tinham influência direta na vida social, com repercussões sérias. Por serem portais de comunicação com deuses, a comunicação onírica podia legitimar ou deslegitimar figuras políticas.
Mas, como veremos abaixo, uma série de fatores ligados ao progresso religioso e político de uma civilização cristã e o advento da escrita retirou o sonhador do espaço público. Antes, figura central na organização de uma cidade. Agora, os que navegam pelas narrativas oníricas são tidos como loucos ou pagãos, patologicamente desconectados do mundo e portadores de uma percepção desconexa da realidade.
Em sua ousada conjectura, [Julian] Jaynes afirmou que os psicóticos de hoje representam a persistência socialmente desajustada de uma mentalidade antiga, memória de um tempo em que era comum ouvir vozes. Os psicóticos seriam verdadeiros fósseis vivos de um tipo de consciência humana que teria nascido no Paleolítico, prosperado no Neolítico, se expandido na Idade do Bronze e colapsado retumbantemente na aurora da Idade do Ferro, há cerca de 3 mil anos. — Sidarta Ribeiro, O Oráculo da noite
Advento da escrita & queda dos deuses
Sem a necessidade de transes ou rituais complexos, o advento da escrita foi o primeiro dos elementos que podemos destacar para o ocaso dos deuses e dos sonhos. Textos gravados se tornam representantes diretos da palavra sagrada, supostamente lida com exatidão e localizada em objetos concretos. Além disso, é permeado por uma potente lógica de restrição, já que pode ser acessado apenas por pessoas alfabetizadas, legitimadas e inseridas numa determinada lógica de poder. Sem êxtase, delírio ou loucura, mas controle.
Sidarta Ribeiro também apresenta o surgimento de um ser humano mais introspectivo e reflexivo sobre a própria existência, uma mudança relativamente recente e que demarca 3 mil anos no passado, como outro fator. Tais questionamentos marcam a movimentação de um mundo cada vez menos místico ou divino e cada vez mais humano e terreno.
Claro. Saber escrever ou refletir sobre a própria existência não são pontos que influenciam diretamente a perda de influência onírica. A importância dos sonhos e o seu papel histórico tem seus altos e baixos. No próprio desenvolvimento cristão, o sonho foi um caminho de revelação e de propósitos divinos. Maria, por exemplo, é visitada em sonho por um anjo que anuncia o nascimento de Jesus.
Fato é que, como escreve Sidarta, “a decadência intermitente da crença na eficácia onírica atravessou os primeiros milênios antes e depois de Cristo”. Ao menos na cultura ocidental.
Gautama Buda (c. 480-400 a.C.) foi um dos responsáveis que evidenciou a necessidade de interpretação simbólica dos sonhos e o relacionou diretamente à vida, com a afirmação “toda a vida é sonho”. A China também tem uma forte tradição de divinação onírica. O mestre Zhuang (c. 369-286 a.C.), por exemplo, tem a famosa reflexão sobre o sonho da borboleta, como Sidarta Ribeiro apresenta:
Uma vez eu, Zhuang Zhou, sonhei que era uma borboleta flutuando de um lado para o outro, uma verdadeira borboleta, desfrutando ao máximo de sua plenitude, e não sabendo que era Zhuang Zhou. De repente acordei e me encontrei, o verdadeiro Zhuang Zhou. Agora já não sei se era então um homem que sonhava ser uma borboleta, ou se sou agora uma borboleta que sonha que é homem.
No islã, até os dias de hoje, as interpretações dos sonhos são estimadas. Elas aparecem como profecias, divinações, são invocados para solução de problemas específicos — bem diferente do pensamento grego. Platão (c. 428-348 a.C.) afirmava que, no Estado, não havia espaço para o sonho e a loucura. Aristóteles (384-322 a.C.), por sua vez, que o sonho era uma cópia prosaica da realidade, um relembrar banal que surgia no momento do descanso.
Nos altos e baixos, a concepção e o descaso com o mundo dos sonhos pela civilização ocidental foi, aos poucos, erodindo a importância do sonhos. O período da Idade Média, com o desenvolvimento de um cristianismo eclesiástico, marcou a divinação onírica como prática pagã.
É possível visualizar essa percepção em alguns dos credos que foram compartilhados até os dias de hoje. Uma dessas crenças, como explica Sidarta Ribeiro, era a “de que demônios, chamados íncubos e súcubos, podiam invadir os sonhos das pessoas para ter relações sexuais com elas. Diante dos perigos noturnos e da natureza fantástica do sonho, não é estranho que o período de escuridão fosse marcado por fantasias apavorantes e pelo uso protetor de meditações, orações e encantamentos”.
A partir daí, a concepção e fortalecimento de um espaço supostamente legítimo para se relacionar com o divino e o sagrado, como as igrejas católicas e os textos escritos, minou o potencial dos sonhos.
Com a formação dos Estados nacionais europeus e o início do mercantilismo, a interpretação dos sonhos afastou-se definitivamente da esfera pública. No século XVI a cristandade já tinha a revelação onírica como fonte de blasfêmia e danação — na pior das hipóteses — ou irrelevância — na melhor delas. (...) O descrédito dos sonhos se aprofundou no século XVIII, com o racionalismo que está na origem tanto da ciência quanto do capitalismo. Não era materialmente justificável recorrer a sonhos para decisões importantes, e os áugures de qualquer tipo perderam importância nas cortes de reis e rainhas. Não é por acaso que as vertentes protestantes, sobretudo o calvinismo, tão pragmático em sua perseguição da prosperidade sagrada, tenham se afastado bastante do sonho. Em poucos séculos operou-se profunda transformação no entendimento do que é, ou significa, sonhar. – Sidarta Ribeiro, O oráculo da noite
A partir daí, Sidarta descreve a percepção do sonho como “sensações residuais do corpo passivamente adormecido”. Além disso, as narrativas oníricas tornaram-se um produto fácil para a exploração comercial. “Com a invenção da imprensa, surgiram as condições para a comercialização de um produto que até hoje se encontra em qualquer banca de revistas: o manual de interpretação de sonhos baseado em chaves fixas para a decodificação de símbolos”, escreve Ribeiro.
No entanto, há um marco a ser destacado. Um caminho que nos leva de lá até aqui. Partindo do espaço de descrédito e dos folhetins de banca, um pesquisador austríaco resolve apresentar os sonhos como objetos de estudo e fenômeno biológico relevantes.
Conforme descrito por Sidarta, a “psicanálise marca um retorno de olhos abertos às práticas oníricas da Antiguidade, ao encarar o sonho como ferramenta essencial para desbravar as redes simbólicas e seus nós cegos”.
Sigmund Freud retoma o sonho, confere a ele poderes de revelação da mente do sonhador, de desejos reprimidos e de um aparato de símbolos e significados que só podem emergir do próprio sonhador ou de alguém sintonizado com ele: o psicanalista. Com A interpretação dos sonhos, Sigmund Freud, não sem uma pitada de instrumentalização e alienação de sonho e sonhador, coloca novamente as narrativas oníricas sob os holofotes — ainda que muitos anos depois do seu lançamento.
Diário de Sonhos
O relato de hoje é de Inês Breccio: Professora de artes, teatro, gastronomia. Mestra Geleieira. Contadora de Histórias. Escritora e pesquisadora. Minha mãe.
Minha mãe sempre dormiu pouco. Muito pouco. Mesmo. E nem sempre por causas naturais. Quando eu estava no colégio e ela era minha professora de teatro, brincávamos que o mundo não estava preparado para minha mãe com 8 horas de sono, porque se normalmente já chegava no 220V...
O fato é que, por dormir pouco, quase nunca lembra dos sonhos. Geralmente, fica só a sensação de ter sonhado com alguém. São poucos aqueles marcantes — muitos ligados a presságios de morte — e um, em específico, que resolveu compartilhar.
Ela me conta que o sonho que compartilhou sempre foi um sonho muito claro. “Eu acordava sabendo direitinho o que eu tinha sonhado”, ela me diz. A força era tanta que chegou a fazer esboços do lugar, alguns inspirados no trabalho de M.C. Escher. “Era um sonho que me perseguia, mas não me incomodava, de maneira nenhuma. Só estava sempre comigo. O mais interessante é que eu nunca mais lembrei de ter sonhado com ele, desde que fui lá”, conta.
O mais curioso do relato que vocês vão ler abaixo é que, tendo visto a história de fora, tudo foi permeado por vários acasos: a possibilidade de fazer uma viagem (a 1ª para fora do país) e encaixar agenda, documentações e dinheiros; o acaso da hospedagem reservada estar lotada; a sorte de ter ido justamente para aquele segundo espaço. Uma narrativa preparada para o encontro derradeiro.
Enfim, fiquem com o texto:
Eu tenho um sonho recorrente. Me acompanha desde muito pequena. Eu sempre sonho que estou num lugar muito fechado, atrás de alguma coisa, com lugares... de difícil penetração de sol. Meio escuro. Tem escadas e são lugares muito apertados, com o teto muito baixo e com várias escadas.
Bom, já teve épocas que eu chegava a sonhar 3 ou 4 vezes no mês. Depois, ficava espaçado. Quando eu já era adolescente e que eu tive contato com a obra da Anne Frank, eu ainda brincava e dizia "se teve uma segunda encarnação, na primeira, eu, com certeza, estive na Segunda Guerra", porque a sensação do sonho era quase que igual a descrita nos livros, da coisa sem muito contato com o sol, escuro, a escada, um teto baixinho, como se eu tivesse mesmo escondida.
O tempo foi passando... Aliás, muito tempo foi passando. Eu continuei tendo esse sonho, às vezes, mais espaçado. Às vezes, mais próximos um do outro.
Até que, em 2019... Um detalhe é que eu tenho, hoje, 61 anos. Então, em 2019, eu tive a oportunidade, por um acaso, de ir para Marrocos. Nessa viagem, eu sou contadora de histórias, e fui uma casa para conhecer um mestre contador de histórias. Nós passeamos por algumas cidades e fomos para uma cidade muito pequenininha no deserto.
O grupo que estava com a gente, que o guia levou, já tinha determinado uma casa, lá no lugarejo. Não era nenhuma pousada, hostel, nada. Era uma adaptação para as pessoas que viviam por lá. Nesse dia, especialmente, eu e mais duas pessoas não tínhamos espaço nessa casa que o guia encontrou.
Então, ele pediu para que a gente fosse para uma outra casa, não muito longe dali, mas num lugar muito íngreme, com muitas pedras e de difícil acesso. Uma casa muito pequena.
O engraçado é que assim que eu entrei no portão, com uma arquitetura completamente diferente da nossa, absurdamente diferente... Mas, quando eu entrei, inclusive o cheiro, que era parecendo maçã e que depois eu descobri que tinha uma garagem até a metade da parede cheinha de maçã e que permeava o espaço todo. Lá tem muita maçã...
E aí eu fui entrando na casa e, assim que eu entrei, eu reconheci totalmente o local. Quando eu comecei a andar nas escadas, porque é uma casa que tem várias divisões e vários cômodos, quando eu comecei a subir e a descer aquelas escadas, porque eram muito pequenas e apertadas, eu reconheci. Eu sabia exatamente onde cada lugar daquela escada ia dar. Era como se eu já tivesse andado por ali várias vezes.
E aí, a coisa mais interessante é que, depois que eu estivesse nesse lugar, reconheci... Praticamente não consegui dormir. Não só encantada pelo lugar, mas, principalmente, com esse questionamento: como eu conseguia saber onde que eu tava? E aí, uma coisa interessante que aconteceu desde 2019, é que eu nunca mais sonhei com esse lugar. Quem sabe, hoje à noite?
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