Temporada 02 - Episódio 01: Sonhos, Mitos e Sandman
Começamos a temporada dos Sonhos! Hoje, falamos sobre narrativas míticas, símbolos e como ‘Sandman’, de Neil Gaiman, articula esses conceitos no mundo dos sonhos.
Depois do susto com a primeira edição, agora sim começamos oficialmente a temporada. No primeiro episódio, como vocês sabem, vamos falar sobre narrativas míticas, o mundo dos sonhos e seus símbolos — e como Neil Gaiman articula essas questões ao escrever Sandman.
Temos também o Diário dos Sonhos, com a ilustradora Joana Fraga (e, se você quiser saber um pouco mais dessa nova seção, recomendo checar o episódio anterior, só com os avisos dessa temporada). No mais, seguimos com os mesmos recados:
Se você quer garantir a continuidade da Ponto Nemo (e dos projetos futuros, quem sabe), pode checar a página do Financiamento Coletivo. Além disso, outra forma de ajudar a newsletter é divulgando os episódios para quem você acha que pode gostar e…
Muito bem, fechem os olhos e vamos lá…
T02 E01: Sonhos, Mitos e Sandman
Acho ‘sonho’ uma palavra de difícil acepção. Quando pensei na temática, me incomodou a sugestão de que eu fosse falar sobre aspirações e desejos, como um guia de carreira, ou de um espaço utópico inalcançável (ainda que eu não tivesse nada contra bolinhos recheados ou polvilhados com açúcar).
O que quero é falar do sonho como a manifestação de imagens, memórias e sensações que acontecem durante períodos do sono e se transformam em uma narrativa (mais ou menos) coesa por meio do relato da mente sonhadora. São histórias que projetam perigos, satisfazem desejos, reforçam habilidades e memórias & outras coisas que não temos certeza.
Mas é difícil transformar esses processos simultâneos e plurais que acontecem no cérebro em uma narrativa linear e comunicável. Em sua essência, o sonho pode ser descrito como um mito pessoal — criado sob medida por e para aquele que sonha. Tão específico que o próprio ato de narrar um sonho já cria deformações. Acordados, começamos a esquecer o que se passou nesse outro reino. Lacunas são preenchidas. Sensações são ignoradas. Desordens são organizadas.
Claro. Durante esse processo, a mente faz uma intensa troca com o que encontra no meio em que vive — a cultura — e gera um resultado com símbolos bastante pessoais, moldados de acordo com memórias e vivências subjetivas, mas também passível de ser sintonizado com o entorno.
Uma forma de visualizarmos parte desse processo é pela leitura de Sandman, escrito por Neil Gaiman. Ali, temos uma transformação do mundo onírico em uma narrativa mítica protagonizada por Morfeu e a regência do reino do Sonhar...
... e aqui cabe uma explicação mais aprofundada. Quando digo que o ato de sonhar se transforma em um mito, estou dizendo que ele se transforma em uma narrativa que nos auxilia no caminho das experiências humanas comuns. Penso como o professor e mitologista estadunidense Joseph Campbell, principalmente conhecido pela pesquisa sobre o monomito e a publicação de O Herói de Mil Faces.
Das passagens da infância à velhice e, depois, à morte... dos relacionamentos estabelecidos no meio social... a natureza... o cosmos... por todas essas situações comuns, temos histórias que nos auxiliam a caminhar por esses percursos. De maneira resumida, podemos pensar que o mito tem quatro funções, como Campbell escreveu em O Poder do Mito:
a cosmológica, preocupada em explicar as funcionalidades das coisas;
a mística, que quer guiar o indivíduos pelos mistérios e refletir sobre a transcendência da vida;
a sociológica, que reflete, suporta e valida determinadas ordens sociais;
a pedagógica, que ensina a viver em diversas circunstâncias.
Fica evidente que há mais de um caminho e solução para se percorrer aí. Talvez, você prefira que quem guie você nas inquietações cosmológicas seja o discurso teológico, como há séculos. Mas também é possível que você prefira que a ciência se ocupe disso, enquanto se relaciona com as narrativas religiosas apenas pelo viés místico.
Isso porque a forma das narrativas míticas foi se desintegrando ao longo dos tempos. Primeiro porque as artes e as filosofias foram se tornando uma nova forma de “revelação não-teológica, de grande alcance, profundidade e infinita variedade (que) tornou-se o verdadeiro guia espiritual e força estruturante da civilização”, como Campbell escreve em As Máscaras de Deus: Mitologia Criativa.
Mas também porque os ritos eram socialmente estabelecidos e era o indivíduo quem precisava se adequar às percepções descritas. Agora, as experiências próprias são vividas e, quando significativas em profundidade e valor, adquirem a força do mito.
Ao descrever as forças e imagens que permeiam essas narrativas míticas, como os heróis e seus arautos, Joseph Campbell se inspira em Carl Gustav Jung e seus arquétipos. De acordo com o psiquiatra suíço, a psique humana é estruturada majoritariamente por formas e imagens inacessíveis diretamente, já que não habitam o espaço consciente, que coordenam os elementos da nossa mentalidade.
Tais moldes recebem o nome de arquétipos e se revelam por meio de imagens arquetípicas. Por exemplo, para a manifestação de um desequilíbrio emocional, o indivíduo pode sonhar com animais que causam fobia. Isso porque os arquétipos são preenchidos parcialmente pelo inconsciente coletivo, a experiência geral humana com estruturas herdadas ou padrões biológicos, e pelo inconsciente individual, que molda símbolos e interpretações pela vivências.
Essa concepção biológica do elemento narrativo me parece problemática e com algumas questões complexas. Gilbert Durand, antropólogo francês, é um exemplo dos críticos da noção de arquétipo — e comenta sobre o erro de colocar valores e conceitos da sua cultura como algo presente biologicamente nos cérebros da humanidade.
Por isso, gosto muito de pensar nos símbolos que permeiam os sonhos pela semiótica da cultura — uma teoria desenvolvida pela Escola de Tartu-Moscou e com Iuri Lotman como principal porta-voz. De maneira sintética, a ideia da semiosfera é desenvolver um habitat para os elementos culturais da mesma forma que a biosfera é o espaço dos seres vivos.
Dessa forma, a cultura é organizada por esferas de significados (semiosferas) e habitadas por textos. Alguns deles ficam perto dos núcleos, com estruturas mais rígidas e que apontam para uma certa ordem do conjunto. Outros, mais flexíveis, habitam o espaço da fronteira — e essa distância não implica nenhuma hierarquia qualitativa.
Se pensarmos na semiosfera da Ficção Científica, é provável que autores como Isaac Asimov ou Arthur C. Clarke sejam textos mais nucleares. Philip K. Dick ou Ursula K. Le Guin podem ter sido fronteiras em uma época, e agora serem vistos como textos pertencentes ao núcleo — já que tais demarcações são dinâmicas, sempre em movimento e influenciada pelos observadores… afinal, Star Wars habita o espaço da Ficção Científica ou da Fantasia? Talvez, seja um texto situado bem na fronteira.
Inclusive, as bordas são espaços de intensa atividade: traduzem textos de outras esferas para dentro e mandam elementos seus para outras esferas. O que não exclui os movimentos internos de organização e estabilização.
Além disso, há momentos de explosão e crescimento repentino — ao escrever Frankenstein, depois de receber sua inspiração em um sonho terrível, talvez Mary Shelley tenha explodido as fronteiras de semiosferas da época para compor a da Ficção Científica, dando novos significados e releituras, inclusive, para textos anteriores.
Por fim, em todos esses textos e movimentações, o que a semiótica da cultura valorizou foi também o elemento mnemônico. Não só os textos têm uma função comunicativa — a ideia clássica e linear da mensagem enviada e os ruídos da comunicação; mas tampouco param na função de gerar novos sentidos — a concepção que inclui o diálogo e a potencialidade das leituras gerarem novos sentidos. Os textos, por si, trazem memória. Como sementes, criam algo novo... mas não deixam de carregar o passado consigo.
E você deve estar se perguntando: para que tudo isso se estamos falando de sonhos? Se você não se perguntou, eu me perguntei.
Em O Oráculo da Noite, Sidarta Ribeiro aponta por diversas vezes sobre como Sonho, Cultura e Memória estão intrinsecamente ligados. A cultura depende dos sonhos, do fortalecimento da memória e das recombinações oníricas para ser passada para frente, enriquecida e compartilhada.
Além disso, a roda também gira no sentido contrário: conteúdos que absorvemos da cultura passam a permear e compor nossos sonhos. Narrativas cinematográficas de ação, por exemplo, incrementam sonhos de perseguição. Os sonhos mudam de acordo com aquilo que vivemos.
Nesse sentido, não é difícil carregarmos cargas antigas de símbolos comuns. Por exemplo, um banquete que se refere à fartura, às cornucópias e festividades pode ser incorporado em uma ceia de Natal com familiares e amigos. Alguns sentidos e experiências novos coabitam com os antigos.
Há uma face do sonho que carrega consigo esse aspecto mítico, que relaciona os perigos e prazeres numa narrativa sútil e sua interpretação se torna tão pessoal que exige do sonhador a articulação do próprio repertório. É daí que surge o fascínio com sonhos que nos tocam tão profundamente, ainda que não saibamos o porquê.
Por fim, Campbell também aponta que cada época tem aqueles que afloram o contato com o inconsciente e auxiliam os outros nesse percurso. Antigamente, tínhamos guias espirituais, como xamãs e videntes. Hoje, esse espaço é compartilhado com outras figuras, como o artista.
Talvez, Neil Gaiman tenha escrito em Sandman uma narrativa que articula diversas experiências comuns da humanidade — como sonhar, desejar, sofrer & morrer — e que nos auxilia a se conectar com a profundidade da existência e do mundo dos sonhos.
Sandman, o terror num punhado de areia
Claro. É preciso estabelecer algumas proporções ao falar sobre Sandman. Visto como um clássico dos quadrinhos (e com encadernados publicados em preços exorbitantes até os dias de hoje), a publicação inspira parte significativa do mundo das HQs desde que surgiu.
No entanto, como avisa a pesquisadora Ana Carolina Moscardini Cunha, escritora da dissertação As chaves do inferno: as múltiplas linguagens de Sandman, em uma conversa que tivemos, é preciso lembrar que o quadrinho foi criado como um produto que buscava essa posição elevada: foi criado a partir de uma vontade de ser revolucionário, precisava ser diferente e ter destaque para evidenciar o início do selo Vertigo da DC Comics.
Esse momento do quadrinho estadunidense é marcado, num geral, por uma vontade de transgressão, renovação e legitimação das HQs enquanto linguagem artística — foi um momento de amadurecimento das reflexões e representações dos super-heróis, como o Cavaleiro das Trevas, a releitura de Batman por Frank Miller, ou o Monstro do Pântano e Watchmen (resenha no Estantário), obras de Alan Moore.
Sandman era, originalmente, um vigilante mascarado que usava uma pistola com munição sonífera. Mas, a partir de 1989, o personagem se tornou conhecido pela incorporação concebida pelo escritor britânico Neil Gaiman — inclusive, o Brasil foi pioneiro na apreciação da obra, como escrito pelo artista no Twitter.
Na configuração que conhecemos, Sandman é um dos Perpétuos. Como escreve Ana Carolina Moscardini Cunha, os Perpétuos são
sete seres, irmanados entre si, que estão acima do entendimento humano de divindade, pois não apenas pertencem ou formatam o imaginário de todos os seres, humanos e não-humanos, mas são, também e principalmente, materializações de abstrações metafísicas que definem a subjetividade de quaisquer formas de vida capazes de pensar. A condição existencial dos Perpétuos é a seguinte: enquanto os seres pensantes existirem, os Perpétuos também existirão, já que podem ser entendidos como manifestações mórficas de aspectos da vida comum de todos os seres vivos.
Em um jogo com a letra D, Neil Gaiman os nomeia como: Destino, Destruição, Desejo, Desespero, Delírio/Deleite, Devaneio (ou Sonho e, em inglês, Dream) e Morte (em inglês, Death).
A narrativa de Sandman, como é de se esperar, acompanha a trajetória do Sonho. É ele quem permite a existência dos sonhos; quem governa e protege o reino do Sonhar (para que nada saia, para que nada invada outras dimensões); quem garante que os sonhos e pesadelos sejam feitos na medida certa e coisas desse tipo.
“Sandman [...] é uma personificação antropomórfica como Destino e Morte. Ele não está vivo da forma como entendemos a vida, nem poderia morrer da forma como entendemos a morte. Ele existe porque, desde o primeiro ser humano no universo, existem sonhos e, por algum motivo estranho, alguém era necessário para representá-los, personificá-los e controlá-los.” — Neil Gaiman
Agora, é a opção de símbolos e imagens que Neil Gaiman faz para representar o Sonho e seu reino que nos interessa.
O herói dos quadrinhos é uma mescla de figuras. Além da referência direta ao Homem de Areia, de E.T.A. Hoffman, ele é conhecido por muitos nomes, como Morfeu e Oneiros — entidades gregas responsáveis pelo sonho, aparentadas de Nix (a noite), Hipnos (o sono) e Tânato (a morte), filiações que mudam de acordo com o poeta.
Em um dos arcos, ele é conhecido como Kai’Ckul, um forasteiro que aparece numa antiga tribo do continente africano. Tal aparição apresenta uma questão interessante: ao ser visto pela população local, percebemos que ele não tem a forma pálida e esguia, mas é um homem negro — o que me leva a crer que sua representação é fluída e adaptada de acordo com quem se relaciona com ele. Ao encontrar o verdadeiro Sonho, nunca vemos a mesma pessoa.
A importância dessa constatação é que, de fato, cada símbolo está ali enquanto tradução de uma sensação. Para Gaiman, aquela é a representação do Sonho que aparece para ele — e transforma essa relação individual e subjetiva em algo compartilhado para auxiliar nas experiências comuns da vida: a transformação em mito.
Como o próprio Gaiman descreve,
O Mundo dos Sonhos é assim. É a soma total da parte da psique humana que se expressa por meio de sonhos; e é um lugar; e é os sonhos das pessoas que estão sonhando ao mesmo tempo; e é um estado de espírito. Algumas de suas áreas solidificaram-se em um estado quase que permanente (há, por exemplo, os portões de chifre e marfim pelo qual sonhos verdadeiros e falsos são enviados), enquanto outros estão em fluxo constante.
A mesma lógica é usada para a construção do Inferno em um dos arcos — um lugar que não era só um lugar, mas repleto de nomes, como Avernus, Ghenna, Tártaro, Hades ou Abaddon. Assim, o Inferno é apresentado simultaneamente como um espaço geográfico; um local mítico; e um ser, como Tártaro ou Lúcifer.
Assim é o Sonhar: é o reino de Morfeu, localizado geograficamente para algumas criaturas e figurativamente para grande parte da humanidade, mas composto pela energia do próprio Rei. Uma mescla de lugar, símbolo e entidade.
Nesse caminho de usar imagens conhecidas, Gaiman mescla elementos históricos, como a presença de Shakespeare e Robespierre em alguns arcos; imagens religiosas, folclóricas ou Míticas, como Odin, Bast, Thor, Caim & Abel, demônios e fadas; e figuras arquetípicas ou conceitos antropomorfizados, como os próprios Perpétuos.
A parte visual dos quadrinhos, ainda que não sob a responsabilidade de Gaiman, também tem seus diálogos — como inspirações nas ilustrações de Paraíso Perdido e Divina Comédia para retratar o Inferno ou o uso da Pop Arte, como apresentado no trabalho de Ana Carolina Moscardini Cunha.
Ana, inclusive, comentou em nossa conversa sobre como Neil Gaiman bebe das fontes mais canônicas, como uma certa literatura consagrada, as narrativas gregas e tradições míticas bastante difundidas, para reforçar esse movimento de valorização de uma arte vista como menor — unir o que era chamado de alta cultura com o considerado baixa cultura.
Durante a leitura do quadrinho, o aspecto mnemônico dos símbolos, que comentamos acima, fica evidente. Por exemplo, o pesadelo é permeado de imagens basilares da cultura ocidental: um dos pesadelos mais fortes é personificado na figura de Coríntio, termo presente na história Grega e na narrativa bíblica. Ao mesmo tempo, tem um visual moderno e ressignifica os sentidos desse termo.
Outro personagem-lugar que habita o mundo dos sonhos é o Verde do Violinista, que remete a paisagens bucólicas do campo, da natureza e da paz — imagem valorizada em diversos movimento artísticos. Há, também, pelo menos duas histórias curtas focadas em cidades que vivem no mundo dos sonhos: cidades que existiram ou encontraram ecos na realidade e foram transpostas & ressignificadas no espaço onírico.
Por fim, Caim e Abel figuram como ajudantes de Morfeu, ao lado de um ajudante pilantra com cabeça de abóbora, de um reflexivo corvo conselheiro e de um bibliotecário que cuida dos livros escritos em sonhos — quase como em A Biblioteca de Babel, de Borges. Todos eles encontram inspirações em figuras conhecidas pelo imaginário ocidental… e ao mesmo tempo, criam novos significados e leituras para tais imagens.
Tal uso reflete o funcionamento do espaço do sonho, como retratamos no começo: permeado de símbolos comuns, reinterpretados pelo indivíduo. Ao mitificar a narrativa, Gaiman apresenta uma possibilidade de leitura desse espaço. Cria uma história que descreve esse processo — em um viés canônico e eurocentrado.
Penso: quem ocuparia o espaço de Caim e Abel em outras tradições? Será que o Senhor do Sonho, lido por algumas tradições brasileiras, talvez tivesse um saci como ajudante no lugar do cabeça de abóbora? Quantos nomes gregos sobrariam em um espaço do sonho visto pela cultura oriental? Quem sabe, quem sabe...
Diário de Sonhos
Para inaugurar a seção de relatos oníricos, queria contar um pouco do trabalho da Joana Fraga, criadora das ilustrações que vão nos acompanhar por essa temporada. Quando estava procurando artistas para convidar para a temporada, pedi algumas indicações para a minha amiga Lígia e fui procurando.
Um dos contatos que fiz foi com o Dave, que fez a arte (linda) do Ponto Nemo e Estantário — que vocês receberam no Intervalo Comercial #2. Outro contato que fiz foi com Joana. Assim que vi as artes que ela expôs no site, senti que combinava!
Na nossa primeira reunião, indiquei alguns trabalhos dela que senti mais conexão com a temporada e que podiam indicar um caminho para a criação (aos que tiverem curiosidade, são as coleções de Lua, Sol, Deusas Gigantes, Sereias Gigantes e Estrelas). Depois disso, Joana me disse: “olha... quase todos eles foram feitos baseados em sonhos que eu tive”. Pronto! Pensei que conversar um pouco mais com ela e entender esse processo criativo onírico seria interessante para inaugurar esse espaço.
Joana Fraga é uma ilustradora de 28 anos, mora em Salvador/BA e tem uma relação complicada com o sono. “Ao mesmo tempo em que eu sonho muito e acho positivo”, ela me conta, “tenho momentos de crise de insônia”. Ela me explica que tem problemas ligados à ansiedade e saúde mental, com épocas sem sonhos e de sonos leve que acontecem só por um par de horas.
Por isso, chegou a fazer terapias específicas para o sono. Aprendeu como dormir direito e manteve rituais de preparação para a hora de dormir, como deixar o celular de lado — até que, obviamente, teve recaídas ao longo dos anos pandêmicos.
Me parece que tal movimentação para fazer as pazes com o sono surge da relação positiva tem com o espaço onírico — fortemente conectado com a criação artística. Joana me conta que, quando está numa fase boa, sempre espera os sonhos para ter ideias.
“Os sonhos fazem parte do processo criativo”, ela diz, “porque eu tenho habilidade de lembrar do que eu sonho e lembro deles com bastante detalhe”. Desde pequena, Joana tem o hábito de escrever os sonhos em um caderno — fator importante no treino e manutenção para a permanência das visões no momento da vigília.
“Quando eu acordo de um sonho, corro para anotar a maior quantidade de detalhes que eu lembro, porque preciso anotar para não esquecer dos detalhes-chave”, explica. A partir daí, a lembrança pode percorrer dois caminhos: às vezes, é suficiente para uma composição completa. Mas, quando não é, se torna parte de um banco de dados onírico que Joana consulta para se inspirar com fragmentos dos sonhos em outros projetos.
Por isso, pergunto se tem temáticas ou elementos que se repetem. Ela me conta que sonha muito com o espaço sideral se mexendo e com coisas gigantes — pessoas, animais, criaturas marinhas...
“Mas não só gigantes. Meus sonhos têm proporções estranhas. Nos raros sonhos que são mais normais, tipo andar do quarto até a geladeira, tudo ao redor tem proporções estranhas. O sofá fica muito pequeno ou a mesa é do tamanho do prédio... como se fosse Alice no País das Maravilhas. Por isso a ideia da proporção é importante no meu trabalho”, ela explica.
Joana entende os sonhos dela como o resultado das diversas experiências que vive: “É como meu subconsciente interpreta as coisas que eu vejo e faço. Muitas vezes, o resultado é visualmente interessante”. Ela me explica que tem sonhos em estilos diferentes, psicodélicos, coloridos e com muito movimento — e, curiosamente, Joana sonha em 2D.
(Agora, enquanto escrevo, penso que talvez o segredo esteja na linguagem artística? Eu, por exemplo, sonhos textos com certa frequência — narrativas que se materializam em formatos de tuítes ou mensagens de texto.)
Por isso, o desenho que é o destaque dessa temporada é fruto de um sonho de Joana. “Eu atravessava as dunas. Estava explorando um deserto e, quando o vento passava, as dunas se mexiam como mulheres dormindo, tentando mudar de posição”. Mas a emoção do sonho é contemplativa, natural & sem perigos.
Curiosamente, Joana fez um traçado provável para o surgimento do sonho. Rindo, me contou: “Acho que o sonho tem conexão com o The Sims. Eu sei que é aleatório, mas eu estava jogando uma expansão do The Sims 3 que chama Volta ao Mundo. Os três ambientes do jogo eram Egito, Paris e China. Foram os locais que apareceram no meu sonho e escolhi o primeiro para o projeto”.
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Para sonhar, se preocupe com a higiene do sono. Evite telas num geral no momento de se preparar para dormir, garanta que a temperatura e a iluminação do quarto estão certas e coisas do tipo. Manter as mesmas ações na hora de dormir também são importantes para criar um ritual do sono e acostumar o cérebro. A alimentação também é uma questão de influência para sonhar. Por exemplo, remédios, álcool e comidas pesadas podem interferir na qualidade do sono. Por fim, ao acordar, tente passar um tempo deitado & focado no ato de lembrar o sonho: se você bombardear o cérebro com outras necessidades, como pegar o celular ou ir ao banheiro, é possível que toda a lembrança do sonho se apague em instantes. Mas, claro, nem sempre é possível…
Para escrever, pode responder esse e-mail! Se estiver sem saber muito bem o que escrever, pode me contar se sonha com frequência, se gosta de sonhar, se tem imagens ou características que se repetem, algum causo ou experiência interessante que teve, se mantém diário de sonhos, se essa newsletter afetou os seus sonhos de alguma forma... coisas desse tipo. Se achar que desenrola melhor por conversa, vamos bater um papo!
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Nos últimos 15 dias, eu:
Participei do episódio: “30:MIN 391 — Snowpiercer, Luta de Classes e Desenvolvimentismo”;
Participei do episódio: “30:MIN 392 — Por que ler Pepetela? (Literatura Africana)”.