Anemonações #9 — Fantasmas, espectros & estranhices
Organizando pensamentos sobre ficção estranha e tempos fora de lugar com os livros de Mark Fisher
Preciso organizar algumas ideias.
Nesse mês, terminei a leitura de Fantasmas da minha vida e reli a introdução de The weird and the eerie [a tradução seria algo como O estranho e o misterioso], ambos de Mark Fisher, e fiquei refletindo sobre aquilo que chamo de Ficção Estranha (ou Weird Fiction). Então, resolvi colocar o pensamento em ordem e descobrir se ele faz algum sentido, onde estão as incoerências e fragilidades e os caminhos para seguir.
De maneira resumida e simplória, minha primeira aproximação com a Ficção Estranha foi histórica: habitando o espaço de intersecção entre o Gótico, a Ficção Científica e a Fantasia, o Weird se volta para o elemento estranho e evidência a natureza limitada dos seres humanos, retorcendo principalmente aspectos cognitivos, sensoriais, identitários e empíricos.
Lovecraft, por exemplo, vai retrabalhar a experiência religiosa com a ficção científica, moldando um horror cósmico que fragmenta a consciência dos personagens pelo fascínio e loucura — e, no caso dele, também a incapacidade de se relacionar com o Outro, principalmente o estrangeiro, e ver nisso algo monstruoso e grotesco.
Aquilo que entendemos como New Weird, ou Neoestranho, já me parece mais próximo com questionamentos daquilo que é comumente chamado de pós-moderno. China Miéville em Estação Perdido, por exemplo, discute questões como o sistema criminal e o punitivismo, a fluidez constante das identidades & os tabus que permeiam as relações sexuais entre as pessoas — algo que me parece bem próximo com questões de Foucault.
A entrevista com T.P. Mira-Echeverría também deixa em evidência como a Ficção Neoestranha pode ser essencialmente subjetiva e instável, já que não questiona apenas os limites da mente humana, mas da própria realidade — evidenciando que a realidade é construída ao invés de descoberta.
E não é que Mark Fisher entre em conflito com essas questões. É que o exercício de olhar para uma classificação histórica de uma determinada narrativa e a reflexão sobre o que podemos criar é diferente. Consigo entender o que era e o que é, mas como posso pensar o que pode ser? Como eu posso refletir sobre o meu fazer artístico na Ficção Estranha? Quais as potências que outras pessoas podem aproveitar?
Sinto que Fisher aponta direções… que podem parecer estranhas e tortuosas. Primeiro, porque parte importante do seu pensamento está calcado em uma posição político anticapitalista e no retrato que ele faz da produção cultural desse sistema; além disso, Fisher usa muitos conceitos complexos da psicanálise.
Então, os objetivos dessa tentativa de organizar o que li são (1) estruturar os pensamentos em um fluxo lógico & coerente, (2) que me mostre onde estou, para calcular os próximos passos e leituras e que (3) seja acessível para outras pessoas, (4) que podem sugerir leituras, apontar falhas ou enviar comentários.
Vamos lá.
Realismo Capitalista
Retomando a edição #6 das Anemonações, dois pontos do Realismo Capitalista parecem contribuir mais intensamente na discussão sobre a Ficção Estranha ao longo da trajetória de Mark Fisher. O primeiro é concepção do realismo capitalista enquanto crença e atitude de que o capitalismo é a única realidade possível.
Com o pensamento moldado pela naturalização do capitalismo, chegamos na sensação de estagnação. Nada novo é possível. Tudo o que poderia acontecer, aconteceu. No âmbito das produções culturais, as obras se situam no espaço do pastiche, da releitura e da adaptação. Sem outras formas de pensar o mundo, criamos esterilizados. Jamais subversivos, mas formatados & moldados previamente — quando muito, performando um anticapitalismo inofensivo e catártico.
Para escapar dessa espiral, Fisher cita Alenka Zupančič e o pressuposto psicanalítico da diferença entre Real e realidade… e é aqui que surge nosso segundo ponto: a desconstrução do realismo capitalismo pela exposição da sua insustentabilidade e inconsistência.
Fisher explica que
Para Lacan, o Real é o que qualquer “realidade” deve suprimir; aliás, a própria realidade só se constitui por essa repressão. O Real é um x irrepresentável, um vazio traumático que só pode ser vislumbrado nas fraturas e inconsistências no campo da realidade aparente. Portanto, uma estratégia contra o realismo envolve invocar o Real subjacente à realidade que o capitalismo nos apresenta.
Tomando como base um dos vídeos da série Falando nIsso, de Christian Dunker, escrevi na outra edição que vemos que o Real é definido como aquilo que é subtraído da realidade para ela se apresentar como uma totalidade harmoniosa, integrada e dotada de sentido.
Dunker descreve o Real como “aquilo que não tem sentido. O Real é aquilo que não se integra, o Real aquilo que é o abjeto, o heterônomo, o impensável, o que não pode ser nomeado. Aquilo que resiste e aparece para nós a partir de repetições que, por exemplo, tomam a vida de uma pessoa e ela diz ‘porque será que isso se repete?’ e não há nenhum sentido nessa repetição. Essa repetição não é nem para o bem e nem para o mal, só que ela nos perturba”.
Não consigo evitar a relação entre essa afirmação e a descrição que Fisher fez sobre a Ficção Estranha em um de seus livros: “O que o Estranho [Weird] e o Misterioso [Eerie] têm em comum é uma preocupação com o estranho. (…) Tem a ver com uma fascinação pelo externo, por aquilo que está além da nossa percepção, cognição e experiência comuns”. O caminho da Ficção Estranha, então, parece ser frutífero para a exposição das entranhas do Real.
Fantasmas da minha vida
Em Fantasmas da minha vida, Fisher reuniu textos publicados em revistas e no seu blog em uma coletânea sobre assombrologia — um conjunto de textos que mostra muito mais da faceta de crítico e comentarista cultural do que de pesquisador e acadêmico.
Essa assombrologia parte de uma brincadeira do Derrida, um trocadilho com o termo ontologia — resumido por Fisher como conceito filosófico daquilo que pode ser dito que existe. Subvertendo essa ideia, Derrida postula que as coisas não têm uma existência puramente positiva: “tudo o que existe só é possível a partir de toda uma série de ausências, que o precedem e o circundam, permitindo-lhe possuir a consistência e a inteligibilidade que possui”. Ou seja, uma cadeira é uma cadeira porque não é uma poltrona, um colchão, uma mesa...
Fisher inclui a articulação temporal dentro do cenário e visualiza duas direções distintas:
A primeira se refere ao que (na realidade) não mais é, mas que permanece eficaz como uma virtualidade (a traumática 'compulsão de repetir', um padrão fatal). O segundo sentido da assombrologia se refere àquilo que (na realidade) ainda não aconteceu, mas que já é efetivo no virtual (uma antecipação que molda o comportamento atual).
É uma conceituação complexa para visualizar de primeira, mas as coisas vão ficando mais visíveis. Fisher se volta para a essa reflexão pela primeira vez quando no campo musical, com músicos assombrológicos preocupados com a questão da memória no espaço digital e, por isso, eram fascinados com ruídos do vinil, das fita cassetes, da televisão... mas Fisher logo identifica a questão de forma mais ampla, como um efeito que passa a “alimentar novos sonhos e táticas fantasmagóricas num mundo onde as cartas são dadas pelo desenraizado capital financeiro”.
Por exemplo, na abertura do seu livro destaca uma série britânica chamada Sapphire and Steel que tinha como um de seus objetivos “transpor histórias de fantasmas do contexto vitoriano para lugares contemporâneos, ainda habitados ou recentemente abandonados”. A (não-)conclusão da série parece profética para Fisher, evidenciando “a condição de que a vida continua, mas o tempo, de alguma forma, parou”.
Fisher escreve que a tese do livro é que “a cultura do século XXI é marcada pelo mesmo anacronismo e inércia que afligiu Sapphire and Steel em sua última aventura”, personagens que ficaram presos em um (não-)lugar, uma loja padronizada de conveniência, em uma trama suspensa e imóvel. A interrupção foi “enterrada embaixo de um frenesi superficial no movimento perpétuo da ‘novidade’”.
Fisher dialoga com Bifo Berardi, filósofo e amigo italiano, para apresentar um quadro de lento cancelamento do futuro, de deflação de expectativas — como se não esperássemos que uma banda qualquer pudesse lançar um álbum melhor no futuro; ou da sensação de estarmos atrasados e perdendo os anos dourados. Soma-se a isso a alteração na “textura da experiência cotidiana”, alterada pela internet e a tecnológica móvel, e a sensação de que a cultura não é capaz de articular e compreender o presente — ou que nem haja presente para ser compreendido e articulado.
E, com essa percepção do momento atual, Fisher faz alguns destaques que me parecem necessários. O primeiro deles é que, sim, a assombrologia tem um caráter melancólico, mas não sucumbe à “melancolia de esquerda”, diagnosticada por Wendy Brown como uma resignação depressiva ligada às conquistas passadas da social-democracia. Tampouco se identifica com “melancolia pós-colonial”, definida por Paul Gilroy, ligada a um conservadorismo que evita lidar com as consequências de um passado imperial e colonialista. Pelo contrário, Fisher faz leituras que relacionam assombrologia e afrofuturismo.
Nesse caminho, Fisher invoca Freud para falar que, talvez, a assombrologia não seja melancólica, mas faça parte de um processo de luto fracassado. Tentamos afastar a libido do objeto perdido, mas não conseguimos. “Trata-se de se recusar a desistir do fantasma ou — e isso às vezes pode significar a mesma coisa — à recusa do fantasma em desistir de nós”.
Evocamos, com frequência, os futuros perdidos, as possibilidades daquilo que não pode mais ser, mas sem ceder a uma nostalgia clínica, porque o presente é saboroso e intensificado. O passado não é idealizado e idolatrado como uma nostalgia comum, mas circulamos ao redor do que Frederic Jameson chamou de “modo nostalgia”. É um desmanche de um senso coerente do tempo histórico, um “apego formal às técnicas e fórmulas do passado” e um consequente recuo “no desafio modernista de inovar formas culturais adequadas para a experiência contemporânea”.
A banda Arctic Monkeys é um dos exemplos citados como “retrô pós-moderno anacrônico”. Fisher escreve que “enquanto eles soam suficientemente ‘históricos’ — parecendo pertencer ao período imitado quando ouvidos pela primeira vez — alguma coisa ali não parece certa. As discrepâncias nas texturas — resultado de estúdios e técnicas modernas de gravação — significam que eles não pertencem ao presente nem ao passado, mas a alguma era ‘atemporal’ implícita, os eternos anos 1960 ou 1980”.
Para Fisher, o movimento é de que “o modo nostalgia subordinou a tecnologia à tarefa de repaginar o velho. O efeito foi dissimular o desaparecimento do futuro com seu oposto”. Star Wars, por exemplo, não cede a um ideal de passado, mas reestrutura as aventuras de Buck Rogers com seus efeitos especiais.
Claro que existem motivos bastante materiais para essa situação. Com a ascensão do capitalismo neoliberal pós-fordista, a destruição da solidariedade e da segurança, a precariedade do trabalho, o estado de estimulação e exaustação frequentes, a precarização do trabalho e o cerco de atenção promovido pela cultura digital prejudica o consumo das obras de arte (“com a falta de tempo, energia e atenção, exigimos desesperadamente soluções rápidas”, escreve Fisher) e também sua criação. Em uma situação econômica e social frágeis, os artistas são prejudicados na busca de um ideal modernista. Fisher escreve:
Produzir o novo depende de certos tipos de afastamento — da sociabilidade, de formas culturais pré-existentes —, mas a forma atualmente dominante de sociabilidade em redes no ciberespaço, com suas infinitas oportunidades de microcontatos e seu dilúvio de links do YouTube, tornou esse afastamento mais difícil que nunca.
(Aline Valek, do Uma Palavra, e Rodrigo Ghedin, do Manual do Usuário, têm comentado sobre como o Substack tem incorporado esse ritmo dentro da produção supostamente mais lenta das newsletters e ameaçado devorar sua produção. Vale a reflexão.)
Mas o que o caminho na apresentação do livro nos mostra é que Mark Fisher aponta para um desestranhamento da cultura. Especificamente, de como o “desestranhamento da cultura musical no século XXI (...) desempenhou um papel importante em nos condicionar a aceitar o modelo de normalidade do capitalismo no consumo”. De maneira ligeira, em outro ensaio na coletânea, Fisher afirma que “a marca do pós-modernismo é a extirpação do estranho, a substituição do formigante desconforto do desconhecido por um conhecido presunçoso e hiperconsciente”.
Importante ressaltar que Fisher usa termos como weird, strange, uncanny, eerie e unheimlich ao longo do livro, mostrando uma variedade de acepções possíveis, não necessariamente o da Ficção Estranha, mas a evidência do termo ecoa a relação com o desvelamento do Real e suas possibilidades narrativas… e, a partir daqui, Fisher parece compreender o que estava construindo.
O Estranho e o Misterioso
The Weird and the Eerie, ou O Estranho e o Misterioso, foi o último livro publicado por Fisher ainda em vida. Em sua introdução, aponta que se lembra de sempre estar “assombrado” e “fascinado” pelas narrativas estranhas e misteriosas, mas que não havia identificado essas silhuetas por muito tempo — principalmente por habitarem o espaço de intersecção entre a Ficção Científica e o Horror.
Retomando a citação destacada acima, o Estranho [Weird] e o Misterioso [Eerie] estão relacioandos com o elemento estranho que escapa da nossa percepção, cognição e experiência comuns. O que Fisher evidencia em seu trajeto é que ambos os modos de trabalhar o elemento estranho são bem distintos do Unheimlich freudiano, apesar de terem sido erroneamente aproximados em outras situações.
Ao falar sobre o Unheimlich, Fisher aponta que a intenção de Freud é entender o que há de estranho no familiar & o que há de familiar no estranho — “a maneira com a qual o mundo familiar não coincide com ele mesmo”. O percurso do Unheimlich, descrito no famoso ensaio homônimo, é permeado pela recursividade, duplicidade e ambiguidade comum ao pensamento de Freud e a confusão entre os três termos é “sintomâtica de um retiro secular do exterior”.
Curiosamente, vimos na segunda temporada da Ponto Nemo como a psicanálise de Freud está centrada no indivíduo e as análises geram um percursos de processamento do exterior pelas lacunas e dilemas internos. Fisher aponta que “o Estranho e o Misterioso fazem o movimento oposto: permitem ver o interior a partir da perspectiva do exterior”.
(Podemos exemplificar com os episódios da segunda temporada: Freud aponta a análise dos sonhos pela análise individual, o sonho é um produto externo que precisa ser visualizado de acordo com as questões internas; para os Yanomami, não. Os sonhos são originados pelo desejo de outras pessoas. É o relacionamento com o exterior que permite a interpretação daquilo que é interior. Fisher cita Lacan como outra alternativa possível ao modelo freudiano.)
De maneira sintética, Fisher aponta como pertencente ao Estranho aquilo que não pertence; o elemento que é incorporado ao familiar, mas que está tão além dessa esfera que não pode incorporar a esfera cotidiana nem como negação. É como uma montagem, “a junção de duas ou mais coisas que não pertencem uma à outra”. (Um exemplo interessante é o aparecimento da figura misteriosa e sombria atrás da lanchonete em Mulholland Drive, de David Lynch. Quando ela surge, não estamos contrapondo realidade/sonho, mas estamos na esfera do “que porra é essa?”, sem uma forma segura de incorporar essa existência em qualquer nível.)
Também podemos visualizar aqui um seguimento dos estudos assombrológicos de Fisher: a mescla de elementos do passado que se recusa a ir embora, do presente intensificado e do futuro perdido não compõe, de alguma forma, uma paisagem com elementos estranhos e que não pertecem ao mesmo conjunto? Uma das formas de visualizar o anacronismo é por esse viés completamente Estranho.
Por outro lado, ao invés de mostrar um externo/interno incompatível em uma colagem, o Misterioso pode ser resumido em outro perscurso. Trabalhado o elemento externo tanto no viés concreto quanto no transcendental-abstrato, a “sensação do Misterioso raramente se apega a espaços domésticos fechados e habitados; encontramos o misterioso mais facilmente em paisagens parcialmente vazias do humano”, ligado com uma sensação do sublime — de admirar a natureza e sentir diminuir a presença e força humana.
Por isso, Fisher explica que “o Misterioso diz respeito às questões metafísicas mais fundamentais que alguém poderia colocar, questões relacionadas à existência e não existência: por que há algo aqui quando não deveria haver nada? Por que não há nada aqui quando deveria haver alguma coisa? Os olhos cegos dos mortos; os olhos perplexos de um amnésico — estes provocam uma sensação estranha, tão certamente quanto uma vila abandonada ou um círculo de pedras.”
Soma-se a isso uma questão de agenciamento, questões como “o que aconteceu para produzir essas ruínas, esse desaparecimento? Que tipo de entidade estava envolvida? Que tipo de coisa era aquela que emitia um canto tão sinistro? (…) Que tipo de agente está agindo aqui? Existe algum agente?”.
Como dito, o Realismo capitalista apresenta muitas questões caras ao Fisher, porque ele também apresenta o Capital como uma entidade do Misterioso: Sendo uma das forças que governam a sociedade capitalista, o Capital é conjurado do nada, mas “exerce mais influência do que qualquer entidade alegadamente substancial”.
“Não há interior senão como dobra do exterior; o espelho racha, eu sou um outro, e sempre fui.” — Mark Fisher, The Werid and the Eerie
O Misterioso nos desloca do espaço familiar, mas não com o choque e o impacto característicos do Estranho. É uma serenidade relacionada ao desapego das urgências cotidiana. Visualizando as forças obscuras que regem a realidade, podemos acessar um espaço além da realidade mundana e fugir dos limites daquilo que é normalmente considerado a realidade pura: “é essa libertação do mundano, essa fuga dos limites do que normalmente é considerado realidade, que explica de alguma forma o apelo peculiar que o Misterioso possui”, explica Mark Fisher.
O livro Piquenique na Estrada, dos irmãos Strugátski, trabalha bastante com essa sensação ao apresentar um mundo completamente alterado pela presença de alienígenas… que nem ao menos notaram a existência humana — passaram pela Terra como uma família fazendo um piquenique na estrada e nós somos formigas revirando o lixo esquecido.
Fisher apresenta a adaptação do romance por Andrei Tarkovsky, o filme Stalker, como outro exemplo possível de sensação do Misterioso. Em suas apresentações, visualizamos como a Assombrologia proposta em Fantasmas da Minha Vida dialoga profundamente com o Misterioso por esse deslocamento temporal, é um estranhamento possível pela permanência da imagem de futuros perdidos ou passados ainda presentesi.
Fisher escreve que
folhear as fotos de família de outras pessoas, ver momentos que foram de intenso significado emocional para elas, mas que nada significam para você é, necessariamente, refletir sobre os momentos de grande drama em sua própria vida, e alcançar uma espécie de distanciamento que é, ao mesmo tempo, desapaixonado e poderosamente comovente. É por isso que o momento — lindamente, dolorosamente — dilatado em Stalker de Tarkovsky, onde a câmera se detém sobre objetos talismânicos que antes estavam embebidos de significado, mas que agora estão encharcados de água, é para mim a cena mais comovente do cinema contemporâneo. É como se estivéssemos assistindo às urgências de nossas vidas por meio dos olhos de um deus alienígenas. (…) Ao contrário da psicologia atual do ego, que nos coage a reforçar nosso senso de identidade (para ‘nos vendermos’ melhor), a consciência de nosso próprio nada é, obviamente, um pré-requisito para um sentimento de graça. Há precisamente uma dimensão melancólica nesta graça porque envolve um distanciamento radical daquilo que normalmente nos importa mais.
Ao enxergar o cotidiano pelo olho do agente externo, temos uma nova compreensão da dimensão humana. O estranhamento surge da percepção de uma nova perspectiva, nesse caso, menos antropocentrada. Ao observar a vida humana pelo ponto de vista dos deuses alienígenas, o interno e o cotidiano se transformam profundamente, se tornam estranhos e deslocados. As narrativas da catástrofe ecológica, também citadas no Realismo capitalista, são outros exemplos retomados em The Weird and the Eerie:
O trabalho de filósofos como Ray Brassier e Tim Morton reconstituem o antigo confronto entre a finitude humana e o sublime que foi o primeiro tema de um certo tipo de arte paisagística. Mas onde o sublime mais antigo se concentrava em fenômenos naturais locais, como o oceano ou erupções vulcânicas que poderiam subjugar e destruir o organismo individual ou cidades inteiras, o realismo especulativo contempla a extinção, não apenas do mundo humano, mas da vida e, de fato, da própria matéria. A perspectiva de uma catástrofe ecológica significa que a disjunção entre o tempo vivido pela experiência humana e as durações mais longas agora não é apenas uma questão de contemplação metafísica, mas uma questão urgente de preocupação política.
Em comparação com a extinção eminente, não parece estranho o cotidiano de consuo & exploração? Com a proximidade do fim, não temos um deslocamento da rotina banal & comum? Como visualizar os agentes envolvidos nessa catástrofe, sendo o Capital um agente Misterioso, como destacado acima? A percepção temporal que tínhamos ao observar o mar ou uma determinada formação rochosa, por exemplo, é completamente dilacerada como foram as sensações dos soviéticos que viveram a catástrofe de Tchernobíl, retratada por Svetlana Aleksiévitch: o que são dois mil anos de uma área isolada da vida humana? Estamos em contato com uma noção peculiar de eternidade, uma quebra na cosmovisão.
Por isso, o interno não existe, se torna estranho e deslocado. Somos agenciados por forças complexas, apenas um reflexo daquilo que é externo.
Para encerrar, em perspectiva, o Estranho segue por outro caminho. A “sensação de erro” ou a “conviccção de que isso não pertence” é o que aponta para a presença do novo e do externo na Ficção Estranha. Fisher explica que
O Estranho aqui é um sinal de que os conceitos e estruturas que empregamos anteriormente agora estão obsoletos. Se o encontro com o Estranho aqui não é diretamente prazeroso (o prazer remeteria sempre a formas anteriores de satisfação), também não é simplesmente desagradável: há um gozo em ver o familiar e o convencional tornarem-se antiquados — um gozo que, em sua mistura de prazer e dor, tem algo em comum com o que Lacan chamou de jouissance.
Ao ler os trabalhos de T.P. Mira-Echeverría, como Alvorada em Almagesto e À sua imagem, os tabus colocam rapimente a perspectiva de que as narrativas que organizaram a realidade até agora não são mais eficientes. A relação de Alastair com seu grupo aponta tal pungência porque nenhuma narrativa tida como natural pode servir de base para a reflexão do relacionamento dele com os seres-estrelas que habitam os corpos putrefatos.
A tentativa de compreender essa configuração Estranha aponta, justamente, que a forma com que vemos os relacionamentos é obsoleta, incompatível. A cena em que ele transa com o ser cujo corpo se mantém unido apenas pela rede eletrificada que o envolve traz uma imagem clara do elemento Estranho enquanto mistura de dor e prazer.
Outro exemplo visível é que os personagens de Lovecraft, ao encontrarem os Deuses Antigos, entram uma espécie de torpor & fascínio. A nova configuração da realidade é destrutiva e enlouquecedora, mas excerce uma forte atração. A força do Estranho.
E agora?
É curioso como escrever auxilia na organização do pensamento. Algumas questões se tornam mais claras depois de apresentadas & espero que seja acessível aos que lerem. Inclusive, uma questão que me parece importante é a tradução desses termos. Depois de muito refletir e aceitar o Weird como Estranho, Eerie me parece ainda mais complexo. Muitas vezes, aparece como algo Espectral ou Sinistro.
Penso que a chave de leitura do Estranho e do Misterioso pelo Mark Fisher apresenta uma possibilidade de visualizar esses elementos não apenas pela questão histórica e temática, mas também com perspectivas formais e políticas.
O Estranho e o Misterioso me parecem, aqui, duas faces da mesma moeda: enquanto o primeiro lida com o deslocamento lateral, a colagem & a sobreposição; o Misterioso lida com o deslocamento temporal, a perspectiva & a dimensão. Em ambos os casos, aquilo que é interno e cotidiano se apresenta como inadequado para compreender o externo e estranho — se tal compreensão for possível.
Inclusive, esse texto surgiu muito de uma reflexão sobre a edição do Eric Novello sobre O rugido da onça, de Micheliny Verunschk, e os espectros que rondam a literatura brasileira contemporânea — um deslocamento temporal Misterioso, um intenso exercício de assombrologia e de revelação da face insustentável e inumana do realismo capitalista e seus tentáculos colonialistas. Recomendo a leitura.
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O começo e o papo de Real/realidade me lembrou muito o conceito de espaço negativo e em obras que são criadas pro subtração (como esculturas de pedra ou madeira, por exemplo). Talvez seja um caminho que ajude a visualizar.