Anemonações #8 — Reconstrução & comunidade
Algumas divagações sobre comunidades e reconstruções com 'Kentucky Route Zero'
(Texto publicado há alguns meses, primeiro para os apoiadores da Ponto Nemo. Se quiser receber esses textos em primeira mão e apoiar a continuidade do projeto, considere apoiar via Substack ou Catarse.)
Mês passado, comentei que gostaria de manter uma tríade de textos do Mark Fisher: a série Ruptura e os jogos Disco Elysium e Kentucky Route Zero. Mas assumo que a distância de mais de três meses do último jogo arrefeceu a disposição para um texto extenso do assunto.
(O que me lembra que uma das coisas que me aterrorizava era sentir a minúcias das coisas se esvaindo & se metamorfoseando num pequeno calafrio de uma sensação atravessada. Uma vez, ouvi minha irmã dizendo que esqueceu como era o próprio pé. Como saber o que esqueci? Como procurar as chaves numa gaveta vazia? Foi Alberto Manguel e seu A biblioteca à noite que me apresentou a tranquilidade melancólica do esquecer.)
Por achar as considerações interessantes e pela cena retrada abaixo ser uma das mais bonitas que já joguei, resolvi trabalhar no rascunho do texto e enviar as considerações ainda assim, em uma versão mais compacta.
Se na edição passada comentamos sobre redenção em Disco Elysium, hoje falaremos de esperança, reconstrução e comunidades.
Kentucky Route Zero
Kentucky Route Zero, desenvolvido pela Cardboard Computer e distribuído pela Annapurna Interactive, começou a ser lançado para computador em 2013 e recebeu seu quinto e último em 2020 — junto com a versão completa para diversos consoles.
É difícil categorizar o que é Kentucky Route Zero, mas o que parece de ser destacado para o público leitor, jogadores ou não, é que é um jogo bastante focado na história contada e no desenvolvimento dos seus personagens.
Quando o jogo saiu, os paralelos mais destacados foram com obras mais surrealistas ou de realismo mágico. Um dos primeiros personagens que conhecemos, por exemplo, faz parte da família Márquez e temos referências à Macondo, de Cem Anos de Solidão, escrito por Gabriel García Márquez. O espaço mítico da obra latino americana se une ao da estrada misteriosa da América do Norte.
Começamos o jogo acompanhando Conway, um caminhoneiro funcionário de um antiquário que está na rota da sua última entrega, e seu cachorro. Porém, para concluir a viagem, o motorista precisa atravessar a estranha Rota Zero, em Kentucky — uma estrada difícil de definir, em que alguns destinos só surgem quando você passa por eles e volta de ré.
Ao longo do jogo, Conway faz novos companheiros e passa por lugares estranhos para tentar concluir a entrega. Uma das coisas mais interessantes por ali, é um tipo de departamento que resolve reorganizar ruínas e mantê-las produtivas, chamado Agência de Espaços Reivindicados. É assim que um setor de arquivistas é realocado para trabalhar no escuro de uma estação de trem abandonada (& tudo bem, eles se acostumaram a forçar a vista e enxergar no escuro).
Tal estranhamento parece permear os primeiros atos da narrativa. Os espaços liminares — aqueles que ficam entre uma coisa e outra — são importantes na narrativa. Aqui, não falamos de ruínas, mas de fantasmas, ecos e deterioração. As memórias que os lugares carregam parecem indicar que o que há é uma perda de energia, de potência.
Cenas reproduzem momentos passados. Personagens desabafam sobre as assombrações do passado. Em determinado momento, dois personagens conversam sobre o espaço liminal da vida que um fantasma ocupa:
— Você acha que isso importa?
— Nah. Vivo ou morto, um fantasma é só o que acontece quando uma pessoa se foi mas ainda ocupa algum espaço.
Outro momento, as pessoas numa emissora de televisão comentam sobre uma transmissão fantasma que ocupa as linhas de vez em quando. As pessoas se perguntam se a mulher que aparece na transmissão é um fantasmas e um deles responde:
— Eu não sei. Às vezes, eu acho que é mais como se a própria gravação fosse um fantasma. Tipo, é isso o que fantasmas são. Gravações de acontecimentos que não aconteceram. Quando alguma coisa continua deixando marcas mesmo depois de ter partido. Memórias falsas.
Essa sensação é intensificada pela construção narrativa do jogo. Como é frequente em jogos dessa linha, o fluxo é explorar o cenário, ler diálogos e escolher respostas que mais sintonizam com você. No entanto, o texto não está construído para dar informações, planejar os melhores desdobramentos ou solucionar problemas.
Pelo contrário, é a partir das escolhas que a história é criada… e todas elas parecem igualmente estéreis. Não que elas sejam insignificantes, mas são construídas de modo a evidenciar o indivíduo como pequeno frente às estruturas ao redor — é o que faz com que Kafka surja como possível diálogo em diversos análises por aí.
Apesar do antagonismo disforme e incapacitante, a dificuldade que os protagonistas enfrentam é intensamente econômica. Um dos elementos estranhos transportados para o jogo é o cenário de endividamento crescente em larga escala global e com sintomas significativos nos EUA, onde o jogo foi desenvolvido.
A figura mais presente nesse sentido é a exploração de trabalhadores por uma cervejaria local. Quando endividados, os personagens desse mundo são transformados em esqueletos e passam a ser funcionários de uma destilaria chamada Hard Times (em tradução, Tempos Difíceis). Um dos personagens é “admitido” depois de criar uma divída enorme com a Consolidated Power Co. (em tradução, Empresa Poder Consolidado) por motivos urgentes de saúde — e por um passado & recaída no alcoolismo.
Dentro do cenário inóspito que descrevemos, a perda desse integrante é sentida de forma estranha, mas é o ponto de partida para a mudança. É quando os personagens refletem sobre os próximos passos e seguem com a conclusão da entrega. Juntos, chegam até o endereço final… e encontram uma comunidade devastada.
Uma enxurrada recente destruiu casas, móveis e matou os dois cavalos símbolos do povoado. Vocês ficam para a reconstrução do local e descobrem que a entrega era para a construção de um centro comunitário, um espaço vazio e com paredes vazadas.
Tenho uma relação complicada com o final do jogo. Metade de mim acha a construção emocionante e bonita. O hino religioso, que deixo abaixo, surge na cerimônia fúnebre dos animais e evoca um senso comunitário e de reconstrução utópica, contra o desenvolvimento opressor capitalista, que me parece bonito.
Mas penso se há uma construção reacionária em um subtexto que pode ter passado batido até pelos desenvolvedores. A construção do final pode evocar a narrativa do suposto desbravador, salvador e potente estadunidense colonizador podado pela pressão do capitalismo. Além disso, porque a reconstrução é feita com itens vindos de uma loja de antiguidades? É olhando para o passado que vamos construir a utopia comunitária?
Honestamente, não sei. Resolvi ficar com a simples afirmação de que precisamos mudar em direção ao coletivo e à solidariedade. Compartilho a performance no vídeo abaixo, para quem quiser checar:
Além disso, deixo o link para a cena mais bonita do jogo. Aqui, uma das personagens — Junebug, uma personagem robótica interessantíssima — resolve fazer uma performance musical com sua dupla e é incrível.
O clipe não reproduz a surpresa que sentida ao jogar pela primeira vez. Quando chegamos ali, somos levados a escolher algumas possíveis estrofes para a música. Pensei que escutaria a melodia e leria as letras geradas pelas minhas escolhas, mas quando descobri que todas as opções eram cantadas por uma voz tão bonita… me pegou de um jeito muito forte.
Enquanto pensam “nossa, que cara emocionado”, vocês podem assistir o vídeo abaixo:
Obrigado por ler e apoiar!
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