Monstros no espelho — a ficção ‘New Weird’ de T.P. Mira-Echeverría
Entrevista com T.P. Mira-Echeverría
Os autores de língua inglesa são quase unanimidade quando o assunto é discutir a Ficção Estranha. Estação Perdido, de China Miéville, é uma das obras mais referenciadas, seguida pela Trilogia do Comando Sul, de Jeff VanderMeer. Até os termos são mais utilizados em língua estrangeira: Weird Fiction e New Weird.
Para valorizamos o que é feito também no hemisfério sul, conversei com T.P. Mira-Echeverría escritore nascide na Argentina, com obras voltadas para o campo da Ficção Científica e do Neoestranho (ou New Weird). Elu tem um doutorado em filosofia e estudou astrofísica por uns anos já que, como me diz, se interessa bastante pelo aspecto estético da astronomia, da física e da matemática.
Aqui no Brasil, a editora Monomito publicou os livros Alvorada em Almagesto e À sua imagem, ambos traduzidos por Toni Moraes e disponíveis pelo programa Kindle Unlimited. À sua imagem tem uma versão gratuita disponível no site da editora.
Convidei T.P para uma conversa para auxiliar alguns ouvintes do podcast 30:MIN que estavam começando a leitura de Alvorada em Almagesto para nosso Clube de Leitura. Aproveitei a oportunidade para entender um pouco sobre a visão de Mira-Echeverría sobre as ficções estranhas e o próprio processo criativo — assim, além de aprofundar a leitura dos ouvintes, começo a planejar a segunda parte do texto Afinal… o que é Weird Ficção (Ficção Estranha)?.
Mira-Echeverría e eu conversamos sobre assuntos como a mudança de tratamento no elemento monstruoso, a busca pela beleza e por questionamentos filosóficos na literatura, sobre as concepções do amor e, também, sobre como uma “orgia de mortos” gerou um incômodo tremendo em uma leitora. Abaixo, tentei esmiuçar como T.P. enxergava a movimentação do Estranho para o Neoestranho, seu processo criativo e as principais inspirações literárias.
No fim, T.P. Mira-Echeverría me diz “meus mundos são meio estranhos, mas não tão ruins para viver. Uma vez, me disseram que eu tinha os mundos mais bonitos que destroem universos. Não termina muito bem quando o céu se abre e me engole, mas também não me parece tão terrível”. Concordo. Afinal, já que teremos um fim, que ao menos seja belo.
Arthur Marchetto: Vamos começar falando sobre a mudança no tratamento do elemento Estranho e do Outro do Weird para o New Weird. Como você apontaria esse movimento?
T.P. Mira-Echeverría: Tem uma mudança bastante importante. Se começar pelo Weird lovecraftiano, a ideia do antropocêntrico descentralizado se mantém. O humano não é mais o centro do universo, mas acredito que é justamente a questão do que é denominado como monstruoso que se modificou. Aquilo era visto como algo terrível se inverte e se torna algo com que posso me identificar. Ao invés do outro, o monstruoso se torna eu… ou o grupo que não é assimilado pelo status quo do momento social.
Tenho pensado que, em um, o elemento é alheio, estrangeiro; no outro, temos várias mesclas, hibridismos e simbiogênesis. Acha que vai por esse caminho?
Sim.
Como vemos esses elementos na construção de mundo? Jeff e Ann VanderMeer falam da presença forte de um mundo fictício, secundário, mas acredito que você fez essa definição de outra forma em um artigo que escreveu em 2018. Ainda pensa assim, como definiria hoje?
Há, obviamente, a construção de um mundo que não é aquilo que chamamos de “real”, partindo de uma visão ingênua, como se pudéssemos dizer que há algo que é a realidade e que é a mesma para todos.
Mas, justamente, não existe uma coisa como a realidade. E aí entra um ponto de vista filosófico porque, se a realidade não tem um fundo, ela é aquilo que nós convencionamos a dizer que é a realidade, e, na verdade, é uma questão subjetiva.
Então, a construção do mundo no New Weird gira ao redor do subjetivo, não do objetivo. Se volta para um espaço híbrido, porque não há regras para ver o que é a realidade, e também para questões simbólicas, ou seja, não é só um mundo estranho, mas com significados e conexões.
Em A cidade & a cidade, de China Miéville, temos duas cidades que dividem um mesmo espaço geográfico, mas que são, na verdade, distintas. É um bom exemplo para descrever esse processo?
Exato. Em A cidade & a cidade o jogo constante é entre o subjetivo e o objetivo. Há uma objetividade construída por uma subjetividade consensual, ou seja, não é que eles precisam deixar de ver, mas fazer com que o visto não tenha sido visto.
É um conceito que me parece vir do existencialismo, essa ideia de que, depois de ser jogado no mundo, não se pode “desexistir” ou “desnascer”. O que a ideologia dessa sociedade propõe é desfazer algo que não pode ser desfeito. Como construção do mundo é espetacular, mas é uma condição básica de qualquer sistema fascista do mundo. Todos vão te dizer que você não viu o que viu, que é melhor que você não tenha visto e então supõe-se que ali não havia nada.
Mas, parece interessante que sempre exista um terceiro elemento mediador entre os dois pontos, como a sociedade. No final de A cidade & a cidade, tem um elemento que não é nem uma cidade e nem outra. Por isso, penso na questão simbólica. Você tem essas duas extremidades, mas sempre há um elemento mediador.
A crítica estadunidense às vezes afirma que o New Weird foi um movimento curto e específico, mas não me parece que seja. O que você acha?
Vou usar um exemplo do Borges, o famoso conto do Funes, o memorioso. O problema do Funes é que ele não pode esquecer, mas isso faz parte do conhecimento, não? Ele não consegue fazer a conexão entre as coisas. O cachorro das 4h10, visto de frente, não é o mesmo que o cachorro das 4h25, visto de lado. Para Funes, são dois cachorros distintos, porque são duas situações distintas.
Acho que a crítica literária, baseada nesses sistemas prontos, acreditam que, cada vez que percebem um salto no New Weird, estão vendo o cachorro das 4h25, de perfil, que não é o mesmo cachorro das 4h10 visto de frente. Sendo assim, claro, como o New Weird mudou, parece que não é mais New Weird. O problema é que é maleável, não dá para agarrar. Então, não passou, é que segue mudando.
O problema, eu diria, é que é um pouco do problema que Darwin teve com a evolução: “eu separo as espécies à olho”. Quer dizer, não tem um conceito preciso de espécie e na literatura é a mesma coisa. Que tantas mudanças aconteceram para que se tenha acabado, ou que seja um outro modo de pensar.
O New Weird se define como plástico e, por isso mesmo, como disse China Miéville, é indefinível. Não só temos ainda muito New Weird como, quem sabe, talvez desde antes do nome.
PROCESSO CRIATIVO
Eu tenho alguns palpites, mas queria saber quais temas te interessam mais na escrita?
(Risos) Um dos temas que mais me traz problemas é o do amor, é de onde surgiram as críticas mais fortes. Nem estou falando de questões de gênero, mas da definição pura e simples, da terminologia… quer dizer, para mim o amor não é definível, mas o tratamento genérico do amor.
Além disso, por uma questão pessoal, me interessa a questão do gênero, mas no sentido mais amplo, incluindo todos os grupos sociais que não são considerados normais, consuetudinários, por uma sociedade. Depois, alguns outros acabam sempre surgindo sozinhos, como o tema do fim, da morte e da vida.
Mas acredito que o tema principal, em última instância, é o da mudança e o quão relutante somos a elas — e, para mim, elas são imprescindíveis.
Um dos meus palpites era de como, também, as relações afetivas mostravam relações de poder. Nesse caminho, você fala bastante em desnaturalizar aquilo que é naturalizado na literatura. Como você faz esse movimento?
Dentro dos sistemas de dominação e de engenharia social, um dos processos mais antigos é o de definir aquilo que é natural. Mas acho que, como dizia Foucault, uma das poucas coisas que a passagem da modernidade para a pós-modernidade nos trouxeram de interessante é a ideia de que não existe algo normal ou natural, mas a noção de que essa normalidade e essa naturalidade são construções sociais.
É muito difícil para nós, presos dentro de um espaço, saber quais coisas são uma construção e quais parecem ser naturais. Às vezes, a gente se empenha muito para mostrar que algumas coisas também acontecem na natureza, são naturais, para validar coisas. Mas a questão que me interessa é que não precisa validar nada!
Bom, eu tenho meus problemas com Kant, porque tive que ensinar por muito tempo, mas tem algo que me parece fascinante na Crítica da Razão Pura que é quando ele diz: eu não quero, com a minha obra, provar que existem conhecimentos sem experiência. Esses conhecimentos já existem, quero saber como são possíveis.
Me parece que essa é uma das questões mais importantes: há coisas que já existem. Não me importa se acham que é natural, ou que não pode existir, ou que uma autora muito famosa diga “essas pessoas aqui não existem”. Existem. Estão aqui. Sinto muito, você não gosta, mas somos, e estamos, e existimos. No fundo, tudo se resume à questão de quão amplo é o seu horizonte. Isto é, até onde chega sua categorização.
É parte do que conversávamos sobre a mudança e a resistência à mudança. Todos nós queremos segurança. Quer dizer, se tem uma escritura que diz que algumas coisas são eternas, eu posso ficar tranquilo porque nunca mais vou me preocupar. Nós precisamos de segurança, mas a segurança é uma ilusão. Esse é o problema, porque se tenta marcar um cânone preciso, físico e fácil de manejar. Qualquer coisa que saia disso é um atentado, é subversivo. Não é à toa que a bandeira dos partidos conservadores seja a segurança. E aí, retomando Foucault, enquanto se fortalece a segurança, desaparece a liberdade.
O caminho pelo New Weird, então, me parece uma escolha consciente para valorizar esse posicionamento, então, não?
Como é um gênero que trabalha com a liberdade e, justamente, o que tenta, dentro do possível, é não estar restrito a uma definição textual fechada, é o caminho mais provável. Mas é um ciclo. Terão outros nomes, novos autores, talvez mude, adote um subestilo ou algo do tipo. Não é o mesmo New Weird que o [Jeff] VanderMeer com toda sua pegada biológica e mais próximo do Lovecraft. Miéville quis fazer uma ficção científica, uma fantasia, um noir… para ver como o Weird se encaixava em cada âmbito para depois subvertê-los, também. Por isso me interessa tanto.
Sua trajetória em filosofia se relaciona com sua literatura, de alguma forma?
Quando escrevi a tese do doutorado, o que eu queria era pensar a ficção científica, a fantasia, a escrita como uma outra forma de mitologia. Então, trabalhei com H.P. Lovecraft, com Philip K. Dick, com Frank Herbert… uma das minhas postulações era de que me parece mais interessante a filosofia como um sistema alternativo de ficção. Na filosofia, sempre temos que trabalhar com “o que aconteceria se…” ou “como seria isto, se…”, porque a ideia central da filosofia é romper a estrutura do pensamento instituído e dar um passo adiante. Estamos perdendo isso ultimamente, mas, sem isso, não é filosofia, é história da filosofia.
No entanto, a literatura como uma declamação filosófica me incomoda muito, porque tenho medo de que se converta numa espécie de tratado. Não se trata disso. Gosto quando sai de forma inconsciente. Não há como fazer isso conscientemente, senão em um tratado. Talvez, você tenha que primeiro pensar na questão, assimilar a ideia e esquecer. Depois, como costuma acontecer com as coisas que saem mais ou menos melhor, essas coisas aparecem. Sempre acontece.
OBRAS
Interessante termos caído nesse caminho, porque a próxima pergunta era justamente sobre À sua imagem. Parece ter ali um caminho de oposição a uma ideia platônica da essencialidade… como se o mundo real e as identidades fossem necessariamente híbridas, um autorreconhecimento no outro… talvez, também um pouco de Unheimliche. O que acha?
Bom, a primeira referência óbvia no meu processo é a da criação divina, da Gêneses. A criação à imagem semelhante, a ideia de que há na obra a imagem semelhança do autor, ou do artista. Além disso, e é um tema que eu sempre tenho presente, há a construção da identidade em comunidade. A necessidade do outro para que eu também possa ser.
No livro há, de certo modo, uma busca pelo amor como oposição ao sistema que estamos mais acostumado, de definição por oposição ao outro. Geralmente, as pessoas procuram identificar-se dizendo “eu não sou o outro”, “eu não sou você” ou “minha equipe é o contrário da sua”, mas eu gosto da ideia de inverter isso, isto é, a definição de um com o outro. A questão acaba indo também pelo genético, na mescla. Eu acho que há um tabu universal que adquire mil aspectos distintos, que é o da autogeração ou da autocriação. Ele também passa pelo incesto, mas é um aspecto que não me interessa muito discutir. O que eu queria era falar da autocriação e autogeração. Quando escrevi, estava pensando em Vocês, zumbis, de [Robert A.] Heinlein.
Em À sua imagem, o protagonista está criando Íris, mas também está se modificando. É uma mudança dupla, mas não de forma romântica. É uma coisa que, como você disse, envolve um jogo de poder, uma queda de braço constante entre os dois personagens. Há, também, a ideia do invasor, porque os humanos se meteram ali e fizerem um mundo artificial como quiseram, mas nem tiveram o trabalho de se perguntar se era o mundo de mais alguém.
O que me incomoda e me interessa muito é a questão da aparência e do fundo, porque me parece que subestimar o que aparece, dizendo que é superficial, é crer que o verdadeiro está sempre oculto e escondido, quando, na verdade, o verdadeiro, do meu ponto de vista, não é algo que se oculta, mas o que está a vista. O problema não é o que se mostra, mas importa se os outros querem ver ou não. Por isso, às vezes me criticam que eu descrevo as roupas nas minhas obras, ou a cara, ou as coisas, mas eu insisto e vou continuar insistindo, porque o que eu acho é que se vê o profundo na superfície. Precisamos nos familiar em ver que o superficial não é superficial.
Me interessa esse jogo inicial: alguém se mostrando com uma ou outra aparência. Foi daí que comecei a organizar o conto. Por isso a questão da aparência e do ser de Íris andam de mãos dadas. Ela estava mudando a aparência, então estava mudando o que ela era. É outro modo de encontrar e ver a beleza, de outro ponto de vista. Não como uma beleza estética, no sentido contemporâneo, mas nesse sentido de estético de ser, de existência, de ser revelador, mas sem se enganar com o que há debaixo.
Eu não tenho que buscar a essência do mundo que se esconde, o mundo já me mostra sua essência. A questão é deixar de querer que o mundo revele algo escondido, mas começar a olhá-lo de outra maneira. Me parece que essa questão da transmutação do olhar é a coisa mais importante, e faz parte de uma tradição muito antiga, mística.
E sobre Alvorada em Almagesto, como surgiu a escrita?
Em primeiro lugar, eu geralmente parto de uma imagem, de uma canção ou de algo do tipo. Obviamente, aqui eram as músicas da banda Cream e, especificamente, de Jack Bruce, o baixista. Eu estava escutando White Room um dia desses e percebi uma poesia tão espetacular, tão delicada e bem-organizada que gostei. No livro apareceu outra canção, Sunshine of your love, mas foi o que gostei.
Me interessa, também trabalhar a linguagem e a forma, além do conteúdo, o que fez com que meus textos fossem chamados de barrocos algumas vezes. Além disso, alguns elementos autobiográficos acabam entrando. O personagem principal, Weller, tem um problema de autocrítica e questão da “jovem promessa”. O que acontece com uma pessoa quando se espera que ela seja um grande gênio ou sucesso? O que acontece depois de um determinado momento, quando deixou de ser jovem e parece que a promessa não se cumpriu? Até que ponto isso não é uma armadilha?
No meu caso, tive muito disso. Por mais que fosse um caso particular, também é uma questão humana. Isso é algo que acontece nas minhas obras, um problema humano, uma relação que parece muito pequena, unida a um sucesso universal. O específico acaba afetando o universo inteiro porque, em última instância, para cada ser humano os problemas são universais, ou seja, são seu próprio universo, não? Além disso… estudei quase quatro anos de astrofísica e me interessa muito a questão da astronomia enquanto estético, não como matemática.
Por fim, como estávamos dizendo, essa questão de poder e, em última instância, de dominação. Eu pensava enquanto escrevia: “por qual motivo essa gente, que podem ser sóis, estariam sob a dominação de algo como nós?”. Esse sistema é muito humano, então, a única maneira era colocá-los na nossa pele e que se sentissem como nós. Essa ideia de obrigá-los a ser humanos, incubando-os em cadáveres, clones, ou o que seja, e apressando-os dentro de uma humanidade é como uma espécie de espelho de quando rebaixam nossa humanidade, nos colocando abaixo do padrão do que é o ser humano. Não é assim como nos sentimos todos? Por isso, um ponto que me interessa.
Não só pelo ponto de vista do protagonista, mas também dos outros seres. Há um movimento de identificar-se com o que é rebaixado e como esses seres, apesar de estarem em um molde que não os pertencem, se organizam e se ajudam para rompê-lo, sem sair dele. Acho que o tema segue sendo o amor. Me parece que esse é o único tema libertados, mas porque o conceito que eu trabalho, e que pode não ser o mesmo para todos, é o conceito de entrega. Para mim, o amor é um movimento para fora. Isto é, ao invés de ser o oposto de ódio, para mim é o oposto de apropriação. O querer é como uma vontade de ter e o amor é como se entregar, por isso é tão perigoso e tão difícil, porque aquele que ama se entrega, mas nem sempre tem alguém recebendo, é um salto no vazio. É também uma questão de confiança.
Aliás, me interessa de tratar desse tema que ninguém quer: por que diabos vamos separar o sexo do amor? Eu acho que o amor é algo muito mais complexo e universal, e eu não gosto desses compartimentos. Queria brincar com isso. O sexo e o amor não são equivalentes, mas também não são excludentes. Como se o amor puro fosse uma coisa de seres desencarnados, e os seres humanos têm outra dimensão. Mas a dimensão física é isso o que nós temos. Não necessariamente tem que ser sexual, mas tem que ser físico também.
Mais uma vez, outra forma de ver a falsa dualidade do profundo e do superficial…
Sim, claro! Mais uma vez! Já dizia Paul Klee: se eu não posso ver a beleza em um botão de plástico brilhando ou a olho nu, não me peçam para vê-la em algo sublime. Ou seja, se não posso ver a beleza naquilo que é cotidiano, comum, vulgar… Um dos diálogos de Platão mostra que há ideias do bem e da justiça, mas também há ideias de cabelo e sujeira, do que é oscilante, do lixo. Há aí, também, coisas sublimes. O que é mutável, volúvel, o não-profundo também é importante.
Isso é um resumo de como eu penso a escrita, mas, agora, como eu consegui publicá-lo, foi um milagre. Tenho que agradecer muito à Monomito, aqui no Brasil, e, na Espanha, à editora Cerbero, de Israel Alonso. Era uma obra que ninguém queria se meter. Era um texto que parecia problemático e que poderia ter muito repúdio.
Por curiosidade, como foi a receptividade sobre a forma com que tratou os temas sexuais?
Apareceram três comentários de que era sublime, maravilhoso, incrível e que eu pensei, estão exagerando um pouco, mas agradeço. Mas teve uma pessoa que me disse: “pode enfiar essa orgia de mortos onde quiser”. Literalmente. Estou citando, quero fazer um letreiro disso. Ou usar como nome do meu próximo livro…
No fundo, não é que seja um leitor terrível ou nada do tipo. Era isso que eu queria. Se não se sentir mal, ou bem, se não se sentir comovido com o que está dito, não funciona. Se a leitura é cômoda, como um par de pantufas, não é nada. Não faço uma busca pelo escândalo, mas, quem sabe, uma reavaliação diante das possibilidades. Algo tocou muito essa pessoa para que tenha se enfurecido dessa maneira. Por que se enfureceu tanto? Para me escrever isso é porque algo ressonou nele. Não gostou de como ressoou e entrou na defensiva. Então acho que a obra funcionou. Não me interessa simplesmente ser lido, me interessa que ressoe.
Vou fazer uma comparação absolutamente fora de lugar. Não quero que saia amanhã “T.P. Mira-Echeverría se compara com Shakespeare”. Não, por Deus. Mas lembro da primeira vez que li Muito barulho por nada, de Shakespeare, e odiei. “Isso é horrível, é ridículo, não tem sentido…”, mas vejo agora que o que me incomodou eram os vários personagens que iam fazer grandes coisas e nunca faziam nada. Vinganças que nunca aconteciam, amores que nunca se concretizavam, grandes reclamações que não chegavam a nenhuma parte. Quando me dei conta de que estava tocando em um ponto crucial de algo que não gostava na sociedade, aí eu disse “É uma maravilha de homem! Como escreve…”.
Me dei conta que algumas coisas ressoam porque são sublimes, charmosas e belíssimas e outras ressoam porque te incomodam muito. Levi-Strauss dizia que uma das coisas mais efetivas dos mitos é que são perturbadores. Se o mito não for perturbador, se não tiver momentos em que eles te perturbam e te deixam mal, não cumprem sua função. Uma das movimentações do mito, de quando começa a se converter em lenda, em um conto amigável, é que abandona o terrível das coisas. Por isso os contos clássicos infantis são tão terríveis. Tem mortes, estripamentos, canibalismo, tudo.
Voltamos outra vez ao New Weird, ao monstruoso em toda sua força. Nesse caso, o modo como apresento as relações humanas sexuais ou amorosas é o monstruoso para muita gente. E já se queixaram de coisas menores que essas. Eu tenho uma primeira novela curta que se chama Memória e foi publicada na América do Norte, Memory. Uma das questões é que as pessoas que se comprometem arrancam um pedaço do dedo. Uma falange. Me lembro que uma das maiores críticas que alguém fez é: “se eu fosse arrancar um dedo por cada pessoa em que eu pensava estar apaixonado, eu não teria uma mão”. Eu pensei: “bom, então o conto funcionou”, até porque, se fossemos nos matar, como se mataram Romeu e Julieta, por cada pessoa que nós achávamos que amávamos, o que eu faria? Quantas vezes teríamos que nascer? (Risos.)
Para encerrar, quais inspirações te ajudam a escrever? Notei muitas referências mitológicas em Alvorada, no nome dos sóis, e talvez um pouco de Xenogenesis, Octavia Butler?
Sim, claro! Bom… a orientação de outros escritores é fundamental. Eu fui mudando o modo de ver a escrita e abrindo a cabeça, mas meu primeiro definidor foi Frank Herbert, quando li Duna aos quinze anos. Quando li Ubik, do Philip K. Dick, vi a construção assombrosa e fiquei em êxtase por um mês… Depois, eu li A intersecção de Einstein, de Samuel Delany. Foi outro “uau” que me enlouqueceu. Além disso, muito mais tarde, a Estação Perdido, de China Miéville que me abriu ao New Weird.
Mas, antes de ler Xenogenesis, li Filhos de Sangue, um conto da Octavia Butler. Tive que ler em inglês e me forçar a melhorar a língua, porque não tinha tradução na época. Acho que meus temos de amor sempre voltam para Filhos de Sangue e essa relação estranha entre T’Gatoi e seu companheiro humano. Me parece que esses são os guias… Ah, também Philip José Farmer, porque Farmer foi capaz de utilizar a mitologia e a literatura, fazer a mescla da mitologia com a alta literatura, Farmer não tem muito reconhecimento, mas tem histórias maravilhosas.
Agora, como eu penso a minha escrita, me interessa o destaque de algo. Quer dizer, parece que estou fazendo um exercício de psicanálise, mas no fundo da casa onde eu vivia na infância, tinha uma cerca baixa com flores muito bonitas. Do outro lado, tinha uma árvore grande e frondosa. Eu me sentava para escrever e a cerca tapava a paisagem do vizinho o suficiente para poder ver só a árvore e o céu. Eu imaginava que do outro lado tinha um bosque, outro mundo, outro universo. Eu gostava dessa parte. Aprendi a cortar pedaços das coisas.
Eu gosto assim. Pego uma imagem pequena, descontextualizo e trabalho com cara, cor, paisagem, música e, agora, olfato. Os perfumes, para mim, são muito evocadores, e são sentidos que nos conectam com a parte mais animal, com a parte mais originária que temos. Talvez, seja isso… uma espécie de alquimia, mesclo um som, uma música, uma imagem, uma referência olfativo e começo a escrever. Depois, eu acho que, sem me dar conta, no primeiro personagem que trabalho, coloco algo meu. No começo, eu tentava não colocar, acho que me dava um pouco de medo, não tanto de me expor, mas de tocar em pontos dolorosos. Depois, me dei conta que era melhor deixar que se mostrasse, que, se isso tinha que acontecer, era o que dava sustança.
Tem muitos autores que trabalham com outras pessoas, que se lembram ou conhecem. Eu nunca fiz isso, não trabalho assim. É algo autorreferencial. Parece um pouco egoísta, talvez, mas já que estamos falando de Miéville, algum dia perguntaram como ele escreveu Railsea, e ele disse “porque era o que eu gostaria de ter lido quanto tinha 13 anos”, ou seja, escrevo para mim, escrevo para meu eu de 13 anos. Quem sabe, também seja isso. Teria gostado muito de encontrar personagens não heterossexuais que não foram só comparsas ou coadjuvantes, mas o personagem principal. Teria gostado muito de um personagem que não era heterossexual e que terminasse bem, sem um destino trágico. Eu teria gostado que fosse algo normal, e não problemático.
Meus mundos são meio estranhos, mas não tão ruins para viver. Uma vez, me disseram que eu tinha os mundos mais bonitos que destroem universos. Não termina muito bem quando o céu se abre e me engole, mas também não me parece tão terrível.