Anemonações #7 — Redenção em Revachol
Caminhando pelas ruas de Revachol, em 'Disco Elysium', e refletindo sobre espectros & redenções
Na linha do que foi discutido no texto de Mark Fisher e Ruptura, lançado mês passado, os próximos textos serão sobre Kentucky Route Zero e Disco Elysium, dois jogos em que podemos relacionar a trama com o colapso econômico. Caso você não seja uma pessoa muito ligada em jogos, não se preocupe: a ideia é analisar as narrativas e percursos, sem tocar muito nas mecânicas.
Tanto Disco Elysium quanto Kentucky Route Zero seguem um percurso não-linear e constroem um mundo repleto de momentos estranhos que podemos entender como formas de revelar o Real que se esconde atrás da sensação de realidade do realismo capitalista — e fazem isso combinando o processo de fragmentação da percepção com a crítica aos sistemas políticos e econômicos dos mundos que habitam.
Além disso, distante da questão social e política, acrescentaria também que ambos são lindos no campo visual e auditivo. Para quem quiser conhecer, a trilha sonora deles está disponível em vários aplicativos de streaming. Você pode procurar o álbum Disco Elysium OST, da banda Sea Power, ou o álbum Kentucky Route Zero (Original Soundtrack), por Ben Babbitt.
Mesmo que você não jogue, a ambientação sonora reflete bem os universos… e os dois jogos são bem diferentes entre si. Enquanto Disco Elysium parece mais cru e concreto, focado nas investigações & na cidade, Kentucky Route Zero tem tons poéticos e filosóficos, quase etéreo… mas há um fator regional que deve ser considerado nessa equação — o primeiro, tem um passado soviético; o segundo, convive com o alto indíce estadunidense de endividamento.
Hoje, ficaremos com Disco Elysium.
Disco Elysium
Lançado em 2019 pelo estúdio independente ZA/UM, Disco Elysium chegou chamando atenção. Lembro de ter visto o jogo quando saiu, em outubro, e comprado em janeiro, ainda antes das traduções em vários idiomas, e me arriscado algumas vezes pelas ruas da cidade antes de criar coragem e jogar ele do começo ao fim em janeiro desse ano.
Nesse tempo entre lançamento e texto, Disco Elysium levou alguns prêmios. Doze estatuetas no total. Entre elas estão os prêmios de “Melhor narrativa”, “Melhor RPG”, “Melhor jogo independente” e “Melhor jogo independente de estreia” na The Game Awards. No ano seguinte, recebeu da British Academy Film Awards (BAFTA) os prêmios de “Melhor música”, “Melhor narrativa” e “Melhor jogo de estreia”. Venceu e foi indicado para algumas outras categorias ao longo do caminho.
Parte do sucesso do jogo vem da trajetória artística e experimental de Robert Kurvitz, um dos principais idealizadores e roteiristas do jogo. Como descrito em um artigo no The Gamer, Kurvitz era escritor e seu primeiro romance, Ar Sagrado e Terrível, foi um sucesso de crítica e um fracasso de vendas.
Para diminuir o baque emocional sentido por Kurvitz, os amigos fizeram uma proposta: vamos transformar esse livro em um jogo. Aleksander Rostov, diretor de arte responsável que caracterizou a produção, disse “meu amigo, já falhamos em tantas coisas. Vamos falhar fazendo um jogo”. Então, nasceu Disco Elysium.
Vale dizer que o jogo não é uma adaptação do livro, mas ambos se passam em Elysium — cenário apresentado pela primeira vez nas linhas do romance. Em Disco Elysium, estamos no distrito de Martinaise de uma cidade portuária chamada Revachol… e ela está em um ponto crítico.
Tudo está parado. As ruas estão fechadas, repletas de caminhões. O porto está em greve e o sindicato reivindica não só melhores condições de trabalho, mas igualdade: todo funcionário deve ser acionista da empresa, ter poder de decisão e participar dos lucros. A empresa responsável enviou representates para conter a situação — e há suspeitas de que ela tenha enviado mercenários infiltrados para terminar com a greve de maneira brutal e imediata.
Para piorar a situação, um dos mercenários foi encontrado e linchado. O corpo está pendurado há uma semana, atrás de um hotel & cafeteria da cidade e você, um dos membros da Milícia Cidadã de Revachol (RCM, no original), foi enviado para investigar o crime e punir os culpados.
O único porém é que você é um detetive alcóolico e traumatizado e, nos primeiros dias em Revachol, você bebeu e usou drogas a ponto de esquecer tudo. Tudo mesmo. Você não sabe quem é, onde está e o que deve fazer e precisa resolver o caso enquanto tem que lidar com os próprios demônios internos — e já que vai embarcar nessa jornada, porque não ajudar um ou outro morador de Revachol pelo caminho?
É claro que o personagem com amnésia é um clichê bastante conhecido, mas é na forma de reconstruir suas memórias que o jogo apresenta o que tem de melhor — e é importante evidenciar o fato de que reconstruímos e não relembramos porque vamos retomar isso depois.
Podemos pensar nessa reconstrução em dois eixos: externo e interno. No quesito externo, nos relacionamos com o mundo e as pessoas que habitam por ali. Paredes com marcas de bala ou estátuas que homenageiam reis retratam cenas de fuzilamento ou regimes de horror que transcorreram na região. Espaços abandonados contam histórias de acordo com o que as pessoas deixaram para trás.
Um dos espaços mais interessantes, e que você tem acesso logo no começo, é a chamada Área Comercial Amaldiçoada: um complexo de prédios tem diversos espaços abandonados, registrando empreendimentos que faliram, como um estúdio de jogos, um salão de cabeleireiro, uma academia, uma empresa de sorvetes…
Você pode investigar a construção. A senhora Plaisance é a responsável pela livraria Crimes, Romances e Biografias de Pessoas Famosas (e você pode se perguntar: qual será o tipo de livro que eles vendem?). Ávida para implementar todas as dicas que recebeu de livros de autoajuda e fazer o negócio decolar, Plaisance coloca a culpa da insegurança econômica nas energias espirituais. Outros personagens, no entanto, são mais céticos e apresentam motivos plausíveis para o colapso econômico.
Aqui, vemos como o jogo é bem escrito. Cada um dos personagens descobertos tem uma visão política e econômica bem definida e a discussão é feita sem a cautela atrapalhada de diversos materiais estadunidenses que, até hoje, têm medo da palavra comunismo. Em Disco Elysium, a história tem um papel importante na vida cotidiana: depois de um regime monarquista conturbado, a revolução comunista foi instaurada e, devido a problemas internos e interferências externas, foi dissolvido. Atualmente, são intensamente explorado pelas empresas capitalistas.
Cada um dos personagens tem uma visão sobre o assunto — além da parcela poderosa, que atua como alguém que pode modificar esse sistema, como a representante da empresa responsável pelo porto ou os gêmeos líderes do sindicato. Cada um dos lados têm suas falhas e imperfeições e, dentro daquela narrativa, você pode se posicionar da melhor forma que preferir (mas espere críticas da voz narrativa se optar pela exploração capitalista desenfreada. Quer dizer, você acorda sem dinheiro e provavelmente vai passar uma noite ou duas dormindo no banco da rua, sabe?).
Mas, por mais que você não lembre ativamente de nada, você conta com algumas intuições. Ecos da vida antiga que surgem por acaso. Ao criar seu personagem, você deve fazer uma seleção de atributos, dividos em quatro categorias. De acordo com o jogo, elas são:
Intelecto: “Poder cerebral bruto, quão inteligente você é” ou “sua capacidade de raciocionar”;
Psique: “Sensibilidade, o quão emocionalmente inteligente você é” ou “seu poder de influenciar a si mesmo e outros”;
Físico: “Sua musculatura, o quão forte você é” ou “quão boa é sua constituição física”;
Motor: “Seus sentidos, o quão ágil você é” ou “quão bem você move seu corpo”.
É daí que suas capacidades e habilidades são derivadas, como a amplitude da sua capacidade de Cálculo Visual ou Percepção. Qual a sua Velocidade de Reação? Quão bem você mostra sua Autoridade ou tem Empatia? De forma direta, essas potencialidades mostram quais vozes aparecem com mais frequência na sua cabeça e por quais filtros você vai enxergar o mundo.
Além disso, existem duas vozes (sinistras e primitivas) que não podem ser influenciadas — são as vozes do inconsciente, que surgem nos seus sonhos e são chamadas de Sistema Límbico e Cérebro Reptiliano Ancestral.
Gosto da dualidade Calafrios versus Enciclopédia e as diferentes formas de conhecer a cidade. A informação das duas habilidades é a seguinte:
Enciclopédia
Convoque todo o seu conhecimento. Produza trivialidades fascinantes.
BOM PARA: PENSADORES. HISTORIADORES. FANÁTICOS POR TRÍVIA.
Enciclopédia te transforma em um sabe-tudo, convertendo sua mente em um banco de dados de fatos. Ela lhe permite navegar nesses fatos instintivamente, oferecendo uma gama de conhecimentos ocultos sobre todas as coisas relacionadas e não relacionadas com o seu caso. Quem sabe quando a história das marcas de cigarro vai fornecer a revelação que você precisa para capturar um assassino — ou quando o conhecimento de armamento pré-Revolucionário pode salvar sua vida?
Em níveis mais elevados, Enciclopédia compartilha essa gama de conhecimento em um nível quase avassalador — apesar de ela lhe propiciar revelações cruciais, com maior frequência irá entupir sua mente com guloseimas inúteis. Com baixos níveis de Enciclopédia, porém, você será forçado a trabalhar apenas com as pistas à sua frente. Sem nenhum conhecimento oculto, ser policial vai se tornar barra pesada.
Calafrios
Erga os pelos do seu pescoço. Sintonize com a cidade.
BOM PARA: AMANTES DAS CIDADES. OS MAIS SÁBIOS DOS MALANDROS. OS MAIS GENUINAMENTE SUPRANATURAIS.
Calafrios vêm quando a temperatura cai e você se torna mais aguçadamente cônscio dos seus arredores. Eles permitem a você ouvir a própria cidade, pertencer verdadeiramente às ruas. É uma habilidade supra-natural; erros antigos influenciando o tempo presente, cenas de toda a cidade acontecendo à sua frente. Mas, quem está falando com você?
Em níveis mais elevados, Calafrios talvez o façam parecer maluco para o mundo exterior — enquanto você escuta a cidade, você não ouve os outros. Seus superiores talvez comecem a se preocupar. Com Calafrios atenuados, você raramente ouvirá a cidade falando com você — e, se você não pode ouvi-la, como você poderá salvá-la?
Isso reflete diretamente sobre como você navega pela cidade. Ao passar por uma parede crivada de balas, o que salta é a sensibilidade para as ruínas violentas ou o conhecimento histórico da revolução? Quando vê a estátua de um rei, lembra-se de quem ele foi ou vê um retrato da desigualdade e daquilo que aconteceu no cotidiano da cidade? Seus pelos se arrepiam porque você vê a história pelo que é próximo ou você procura visualizar o quadro todo, pelos livros?
(Como é possível imaginar, fui permeado de conhecimentos inúteis da Enciclopédia e quase não senti Calafrios ao caminhar pelas ruas.)
Não há resposta certa. Soma-se a isso o fato de que, ao marcar esses campos como filtros da sua realidade, estamos lidando com a presença de narradores não-confiáveis, vários deles. Em uma determinada cena, depois de muitas reflexões sobre a inocência de uma suspeita, a voz da Volição entra em conflito com o que dizem a Lógica, o Drama, a Eletroquímica e a Sugestão. Ela diz algo como “você sabe quem são esses caras? Estão todos comprometidos, eles estão apaixonados por ela e estão distorcendo a realidade. Não acredite neles”.
Cada conjunto de valores conta uma história diferente, enxerga a cidade de uma forma e molda um detetive novo.
Por fim, temos outro mecanismo interno. É a Cabine de Pensamento: em determinados pontos da história, você pode passar um tempo refletindo sobre sua vida e gerar epifanias sobre seu passado — descobrindo seu nome ou data de nascimento, teorias socio-econômicas ou hipóteses de investigação.
Redenção em Revachol
Retomando o que dissemos na introdução, a sensação de navegar por Elysium foi tocada de maneira suave pela assombrologia, tema da coletânea Fantasmas da minha vida: escritos sobre assombrologia e futuros perdidos, de Mark Fisher.
A sensação foi leve porque não consegui ler o bastante sobre a temática, mas gosto da ideia que ele pega dos estudos de Derrida — da assombrologia que nos coloca em um tempo deslocado, desconjuntado. São fantasmas do passado e daquilo que poderia ter sido; fantasmas do futuro, daquilo que não é. O tom nostálgico dos passados e futuros perdidos.
Enquanto jogamos, há a sensação de que estamos em um local congelado. Uma das localidades é uma Vila de Pescadores onde moram uma velha, uma mãe solteira e seus três filhos e outros três homens que não tem casa e ficam ao redor de uma fogueira, bebendo.
Como um favor para o líder do sindicato, você precisa ter a autorização das duas mulheres para a construção de um centro na Vila de Pescadores. Ser a favor ou contra é uma questão complexa: as pessoas da região serão perturbadas pelo maquinário e a construção por um período longo de tempo; existe uma forte possibilidade que a conclusão da obra gere um movimento de gentrificação e expulse a população vulnerável dali. Uma das moradoras, a velha, é contra a construção. A mãe, é a favor pelo futuro dos seus filhos e a promessa da escola que virá.
A liderança do sindicato também apresenta motivos claros de ganho imediato e corrupção, mas tem um desejo genuíno de melhorar a vida da população vulnerável de maneira permanente com obras públicas e garantias a longo prazo longe da exploração predatória da empresa. Como você, um detetive com amnésia, vindo de Jamrock, distrito ainda mais violento e precário, se posicionaria?
É possível que tenha ficado claro a influência histórica do século XX na construção do cenário de Disco Elysium. Os paralelos com as duas Guerras Mundias, com a história da Rússia e a Guerra Fria são bem visíveis ao longo dos diálogos com os personagens — somaria a isso o fato dos criadores serem da Estônia, região que sofreu com ocupações de diversas nações e alinhamentos políticos ao longo dos anos.
Revachol, a cidade que conhecemos, é severamente segregada. Martinaise é o bairro pobre que conhecemos e, como dito acima, descobrimos que Jamrock é ainda mais violento e precário. Outros bairros servem de abrigo para elites. Para cada parcela da população, um poder de controle é instaurado. Os ricos possuem suas polícias privadas. Os pobres, se organizam entre forças sindicais autogeradas. Ao acordar em Martinaise, você percebe que sua autoridade não é reconhecida e não há nenhuma animosidade em colaborar com sua investigação. A população já sofreu o bastante com a violência para acreditar em agentes da ordem.
(Inclusive, uma das discussões entre os fãs do jogo é a problemática de colocar um policial como protagonista da trama que veremos abaixo. De um lado, alguns evidenciam a brutalidade e violência policial que conhecemos; do outro, o repertório evidencia o papel da milícia revolucionária presente em países soviéticos que é ligeiramente diferente do autoritarismo policial que vemos, trabalhando para a libertação do povo e que é possível que ecoe na organização da RCM. Eu não sei o bastante, mas penso que a discussão é importante e merece ser evidenciada.)
Mas, apesar de tudo isso, penso que a conclusão do jogo é um tanto esperançosa. Depois de sua jornada e da resolução do(s) caso(s) que você encontra em Revachol, você passa por uma espécie de julgamento. Seu passado, presente e futuro são colocados discutidos entre diversos personagens e entendemos que… o fracasso foi necessário. Por isso, caso sirva de dica durante a jogatina, resista à tentação e não use pontos salvos para moldar a narrativa.
Você passou por um trauma. Atingiu o fundo do poço. Se tornou Tequila Sunset, o homem bêbado que grita pela cidade, dirigindo e bebendo. Até que acordou, praticamente nascendo de novo. O que você fez a partir daí? Quais foram suas ações? Talvez, haja esperança para você. Para Revachol… quem sabe?
Bom, talvez nós nunca saibamos. Anos depois do lançamento do jogo, a equipe criativa e os acionistas do estúdio ZA/UM entraram em uma batalha jurídica. Grande parte da equipe responsável pela idealização e direção de Disco Elysium foi demitida (e do coletivo ZA/UM, antes que ele se tornasse a empresa que é hoje). Helen Hindpere, Aleksander Rostov e Robert Kurvitz (junto com Martin Luiga) afirmam que foram obrigados a sair do estúdio — parte deles sob acusações de comportamento abusivo e descriminatório — depois de acusar os acionistas de se apropriar de um dinheiro que deveria ser do estúdio.
Atualmente, supõe-se que a quantia desviada tenha retornado, mas nenhum dos três voltou ao estúdio. A batalha pelos direitos de Disco Elysium ainda continua. Enquanto isso, todos os possíveis desdobramentos continuam congelados. A tradução do livro, prevista para 2020, não tem atualizações. Em um determinado período, a Prime Video manisfetou interesses em realizar uma adaptação da série, mas não foi para frente. É possível que uma provável continuação do jogo também seja esquecida.
Anúncios & Avisos
Bom, para ser sincero, fevereiro está sendo um mês bastante atribulado e ainda estou tentando organizar minha rotina. Como vocês viram, quebrei o texto duplo e passei Kentucky Route Zero para continuarmos mês que vem. Não há muitas mudanças em relação aos avisos enviados mês passado, então fica uma recomendação:
O álbum novo do Gorillaz, Cracker Island, saiu há pouco tempo. Recomendo bastante. Inclusive, MC Bin Laden gravou uma das faixas da versão Deluxe. Gorillaz e Ponto Nemo tem tudo a ver, como já contei na primeira edição: no universo da banda, o álbum Plastic Beach foi gravado em um estúdio musical na ilha de lixo oceânico formada no Ponto Nemo — parte infelizmente verdadeira também no nosso universo.
Obrigado por ler e apoiar!
Não deixe de conferir as últimas edições da Ponto Nemo.