uma pausa; interlúdio
[eu me digo que não é preciso descrever o mergulho para o peixe, mas não consigo evitar a vontade de dizer sobre a morte, o caos, o isolamento, a apreensão…]
Há momentos de crise & momentos de crise. Entre os tremores, arrefecimento. Uma pausa.
Nos breves momentos de monotonia, penso sobre a vida, os destroços, as veredas que se traçam nessas ruínas. E, inevitavelmente, sobre literatura. (Aliás, não é uma de suas funções, como diz Umberto Eco, ensinar a morrer, mostrar que há um caminho inexorável que leva ao fim iminente?)
DESTROÇOS
A linguagem é uma membrana frágil, viscosa — a ilusão do toque & os elétrons repelentes. Em The Body in Pain [O corpo na dor], Elaine Scarry diz que a dor física não só escapa à linguagem, mas a destrói. Ela é incapaz de ser compartilhada; resiste aos sons, aos verbos, às imagens. Penso que o mesmo pode ser dito sobre lutos, ansiedades, amores: a incomunicabilidade da experiência, a solidão do subjetivo — como te dizer as cores que vejo? os gostos e cheiros que sinto? como contar a você que, apesar de tudo, não sinto os micélios crescendo debaixo em minha derme, procurando um espaço para frutificar?
No fundo, é a tentativa de caminhar ao lado da linguagem, sem precisar domá-la; sem carregar a ideia de dominação e submissão. Como nos tornar companheiros, sintonizar sua potência com minhas intenções? A Ficção Estranha (ou Weird (ou esquisita)) é o que tem me jogado os petiscos mais saborosos e que, aos poucos, me domestica e forrageia.
Como abarcar as crises narrativas & humanas & ambientais que vivemos? Escrever vozes sem passar que eu precise dominá-las, enformá-las em uma suposta voz autoral? Na ânsia de experimentar outras potencialidades da escrita que me façam fugir um pouco das resenhas & dos guias de consumo, inaugurei a newsletter como um laboratório de escrita, para exercitar esses questionamentos.
Mesmo que sem saber ainda como gerenciar a periodicidade, suas temporadas e episódios, convido vocês a participar dessa trajetória comigo.
PONTO NEMO
O nome da newsletter, inspirado pela minha companheira Mara, vem do “ponto oceânico de inacessibilidade”. O Ponto Nemo é o lugar mais isolado e distante de qualquer vida humana (e, consequentemente, de terra firme) no planeta. Dentro de uma circunferência de quase 20 mil metros, ele está equidistante de três lugares pouco habitados, como a costa da Antártida, a ilha de Páscoa e a ilha Ducie — uma ilha paradisíaca minúscula, em forma de C.
Ele é um ponto no sul do Oceano Pacífico, em algum lugar entre o Chile, a Nova Zelândia e o Polo Sul. São praticamente 3 mil quilômetros de distância até o próximo ser humano. Dependendo do momento do dia, é mais fácil encontrar alguém em uma Estação Espacial, vários metros acima. De tão isolado, o espaço virou um cemitério de naves: enquanto o titânio não é substituído pelo alumínio, os destroços que sobrevivem à reentrada na atmosfera são programados — na medida do possível — para cair dentro da área.
Os restos destas naves criam um novos refúgios para seres vivos, ainda que a região seja, também, a menos biologicamente ativa no mundo. O lugar é tão ermo que quase não abriga vida: nutrientes não chegam por correntes marítimas nem pelo vento. Apenas algumas bactérias conseguem sobreviver ali, graças ao magma que circula nas fissuras das placas tectônicas, e elas acabam servindo de alimento para alguns caranguejos e animais do tipo.
Esta é toda a atividade que existe por ali. O lugar é um antidestino — o que me faz pensar que a escolha do nome seja, também, uma maneira de abarcar as dificuldades do meu processo de escrita; de avisar aos leitores que fujam, nadem sem olhar para trás, até encontrar outro ser humano & admirem a beleza.
AOS QUE CAÍRAM DAS NAVES POR ACIDENTE
Se você caiu aqui por acaso e não sabe muito bem quem eu sou ou o que fazemos aqui, uma breve apresentação: eu sou Arthur Marchetto, tenho 27 anos, sou jornalista e estou um pouco por aí: colaboro no jornal Rascunho, tenho uma publicação no Medium chamada Estantário e faço parte do podcast 30:MIN.
Também tive a honra de participar da mesa do Relampeio com o Vic Vieira, a Ana Meira e a Ann VanderMeer — conversamos sobre Ficção Weird. Se você não sabe muito bem o que é isso, tudo bem. Fique por aqui, vamos conversando!
Aos que chegaram até aqui, obrigado!
Na próxima edição: contos estranhos, antologia “The Weird: A Compendium of Strange and Dark Stories”, Ann e Jeff VanderMeer…
(P.S.: O Ponto Nemo também é bastante perto do que, há décadas, Lovecraft marcou ser a cidade de R'lyeh, onde Cthulhu dorme, esperando o momento de trazer os Grandes Antigos para dominar a humanidade. É também onde a banda britânica Gorillaz, em seu universo, criou um estúdio musical na ilha de lixo oceânico formada no Ponto Nemo — parte infelizmente verdadeira também no nosso universo — para gravar o álbum Plastic Beach.)