Anemonações #12 — ...e para não dizer que não falei das moscas
Sobre hibridismos, fusões e 'A Mosca' (1986), de David Cronenberg
Por duas vezes, em momentos distintos de uma mesma semana, me recomendaram assistir A Mosca (1986), de David Cronenberg. Aceitei as sugestões. Assisti pela noite e, de manhã, o texto estava pronto — antes mesmo do sobre A Vegetariana e O homem de areia.
Aproveitei para começar a refletir sobre questões envolvendo a interpretação de narrativas fantásticas (ou, pelo menos, não realistas) que têm permeado minha mente nos últimos dias.
Depois de ver Crimes do Futuro e A Mosca, acho que vocês devem ler mais coisas sobre os filmes do Cronenberg assim que eu terminar os do Studio Ghibli. Apesar de ser antigo, A Mosca está disponível no Star+ (no momento em que esse texto foi escrito, pelo menos).
A Mosca
Assisti, finalmente, A Mosca (1986), de David Cronenberg. Já conhecia a história do cientista e da mosca que se fundem em uma entidade única, nova, híbrida durante uma tentativa impura de teletransporte — assumo que descobri por causa da paródia do personagem Dr. Barata no filme Monstros vs. Alienígenas (2009).
Pensei que seria algo bastante Dr. Jekyll & Mr. Hyde, de O médico e o monstro, mas Cronenberg faz outro caminho: uma discussão sobre carne pedindo por mais carne.
No começo do filme, o cientista Seth Brundle (Jeff Goldblum) está desenvolvendo uma revolucionária tecnologia: consegue teletransportar qualquer coisa a partir da desintegração/reintegração dos átomos entre duas cabines chamadas de telepods.
No entanto, recluso e isolado, não consegue fazer com que sua máquina compreenda a composição da matéria viva. Em uma das tentativas frustradas, faz um teste com um babuíno. Ao ser teletransportado, o animal é reconstruído do avesso, com os órgãos todos expostos, agonizando até a morte.
É só quando se apaixona pela jornalista Veronica Quaife (Geena Davis) que entende o que falta: seu computador, responsável por fazer o processo de reconstrução dos átomos de um lado para o outro, estava perdendo um elemento importante ao interpretar & traduzir seres vivos.
Quando experimentam um filé que passou pela máquina, Veronica diz sentir um gosto “sintético”. Seth, então, resolve o problema: ensina para o computador a poesia da carne e o teletransporte de matéria viva se torna um sucesso.
Penso que escrevi tão rápido sobre o filme porque ativou questões que já estão aqui há bastante tempo. Pouco tempo antes de assistir, li a introdução do livro Tênebra: narrativas brasileiras de horror [1839-1899], organizado por Júlio França e Oscar Nestarez, e reacendi um dilema: como analisar uma narrativa que não é realista?
Para contextualizar o que quero dizer: recentemente gravamos um episódio sobre Literatura e Censura no 30:MIN com Marçal Aquino e, em determinado momento, a literatura de fantasia foi levantada como uma forma de escapismo; de se esconder da dura realidade que nos assola. Assim como disse no podcast, discordo veementemente dessa posição. Parece ser mais prejudicial, nesse sentido, uma literatura moralista ou que simplifica e planifica a realidade.
Em casos assim, gosto de citar o texto Marxismo e Fantasia, de China Miéville, em que discute os potenciais estéticos e políticos da literatura da fantasia, envolvendo a representação da luta de classes e proposições de utopias, questões que são ignoradas pelos pensadores marxistas.
Mas pensar que a literatura fantástica é válida apenas por ser alegórica do mundo real não é, também, reduzir a potencialidade? Precisamos ancorar essas narrativas na sua relação com a realidade? Explico o que quero dizer em um percurso de três paradas.
Insetos, malditos insetos
Em Bugging Out, artigo escrito por Ian Rose para o JSTOR Daily, temos um breve registro da relação de inimizade entre a humanidade e os insetos. Em síntese, o recorte proposto apresenta como os insetos deixaram de ser vistos como um incômodo natural e mortífero e passaram a ser uma peste que deve ser eliminada — principalmente depois da invenção e disseminação de tecnologias pesticidas, como o DDT.
Segue um trecho do texto (minha tradução):
DDT também teve um impacto cultural e psicológico. Os insetos não eram mais uma força da natureza que precisava ser tolerada até que fossem embora. Eram uma peste que poderia ser eliminada, e a atitude avançou a cultura popular do pós-Segunda Guerra Mundial. Nos anos 1950 e 1960, a nossa guerra contra os insetos chegou nos telões.
Entre os mais famosos e bem-sucedidos do gênero dos insetos gigantes mutantes, estava ‘Them!’ [‘O Mundo em Perigo’], um dos mais nojentos filmes da Warner Brothers de 1954. No filme, formigas são expostas à radiação nuclear e ficam gigantes, começando uma guerra contra o exército dos EUA. Tais produções de “Grandes Insetos” foram interpretadas por gerações de críticos de cinema como uma representação das ansiedades públicas sobre armas nucleares, radiações e a velocidade estonteante dos avanços científicos no geral. Mas o historiador William M. Tsutsui e outros acreditam que a explicação é mais simples: é apenas sobre os insetos.
“Nas duas décadas depois da Segunda Guerra Mundial, tanto a retórica da ameaça do inseto à América, como o arsenal disponível para controlar pestes de seis pernas, alcançaram um novo nível de intensidade”, escreveu Tsutsui em 2007. “A sensação de medo público de insetos destrutivos, alimentada por entomologistas, funcionários do governo, interesses agrícolas e a indústria de pesticidas atingiram seu auge na década de 1950, ao mesmo tempo em que insetos gigantes infestavam as telas de cinema em toda a América”.
A Mosca foge do recorte temporal, já que foi lançado décadas depois, no fim dos anos 1980, mas a representação do protagonista evoca essa mesma sensação: ao deixar de ser um humano puro, sua parte maligna e corrompida cresce conforme sua aparência se torna cada vez mais próxima a de um inseto.
Em determinado momento, Seth pergunta para Veronica: “você já ouviu falar em políticas de insetos?”. Conforme explica, insetos não são políticos. Não agem com compaixão. São movidos pela brutalidade dos seus instintos.
“Sou um inseto que sonhou ser um homem”, ele diz. “E adorou. Mas agora, o sonho acabou. E o inseto acordou”. Ele pede para Veronica fugir e nunca mais retornar. Ele não consegue mais garantir que não vai machucá-la. Ele é um monstro terrível… um homem-inseto!
O monstro interior
Por outro lado, podemos dizer que não seja apenas sobre moscas e insetos, mas também uma forma de trabalhar o despertar do que há de pior dentro de nós. Seth e a mosca não passaram por um processo de absorção ou assimilação, mas de fusão. Aqui, a dualidade corpo x mente é quebrada (como na ficção estranha de T.P. Mira-Echeverría) — consciência e corporeidade estão interligadas. É concreto.
Não é possível mais separar a alma da matéria, quebramos a tradicional divisão filosófica. Aquilo que Seth é por dentro está representado diretamente na carne. Se sua transformação envolve a incorporação de uma consciência de mosca, também seu corpo adquire características do inseto. Não apenas seus instintos se tornam agressivos e seu pensamento mais rápido, mas seus músculos se fortalecem e seus reflexos são aperfeiçoados.
Essas transformações afetam, principalmente, seu relacionamento com Veronica. A epifania de Seth surge durante um momento de intensa energia sexual. Depois de transarem, enquanto rolam na cama, um chip perfura as costas do cientista (uma primeira tentativa da mescla máquina/humano, talvez?). Veronica trata do machucado e, com desejo, diz: “Desculpa. Eu só quero devorar você”. É desse desejo pela carne que o experimento com o filé, citado no começo do texto, surge.
No entanto, enquanto Veronica e Seth se envolvem, o ex-namorado (e também chefe) da jornalista fecha o cerco. Começa a persegui-la, descobre onde é o laboratório de Seth e deixa correspondências para ele. Cansada desse passado, Veronica sai no meio da noite no intuito de atar as pontas soltas desse relacionamento.
Seth, por outro lado, fica em casa — sozinho com os teletransportadores, um babuíno, álcool e uma crise de ciúmes. Bravo e bêbado, entra na máquina para testar o experimento em si mesmo — e é quando se funde com a mosca. Nesse contexto, a fusão revela um Seth ciumento, agressivo e egoísta. Trai Veronica com outra mulher, ameaça e acusa a jornalista de ter inveja da invenção e da nova disposição física.
Também vislumbramos momentos de fragilidade. Não só o desejo carnal, mas o amor é trabalhado ao longo do filme — outra cisão quebrada, porque amor e sexo não são parte separadas de um mesmo desejo. Quando as mudanças corporais de Seth se tornam mais intensas e ele teme perder sua humanidade, encontra Veronica apenas para dizer que está com medo. Veronica, ao observar o corpo de um homem em agonia, repleto de secreções e que acabara de perder a orelha, o abraça.
Talvez, seja a impossibilidade de amar — ao menos o amor como compreendemos enquanto humanos — que leve o filme ao seu final trágico (oposto ao de Crimes do Futuro (2022), que escrevi aqui).
…e para não dizer que não falei das moscas
Claro, nenhuma obra tem uma interpretação única. “Entenda o final do filme” ou “O que essa obra realmente quis dizer?” são títulos escritos com a intenção única de chamar a atenção do leitor incauto. As hipóteses e leituras não são excludentes entre si — e essa é uma das belezas da arte.
No entanto, se pararmos aí, deixamos de lado as potencialidades de uma terceira complementação: a valorização de uma narrativa não-realista por aquilo que ela é e não por um potencial alegórico sobre nosso ódio por insetos ou nossas dificuldades de relacionamento.
Retomando o caso da entrevista com Marçal, uma obra de ficção especulativa não deixa de ser escapista porque nos ajuda a compreender o conflito da Rússia ou porque eleitores conservadores deveriam entender melhor Star Wars e Watchmen. Uma obra de ficção especulativa não é escapista porque a proposição de um mundo com algumas regras diferentes do mundo real — como a possibilidade de se transformar em uma mosca — exige a compreensão de um potencial simbólico da linguagem em um grau mais acentuado e, estranhando & descontextualizando a realidade, pode proporcionar um diálogo com questões profundas da existência.
Quero apontar aqui para a noção de literatura como filosofia que conheci em uma entrevista com T.P. Mira-Echeverría, autore de Ficção Estranha. Aproximar-se dessas narrativas e entendê-las como algo concreto gera uma reflexão pautada na simples pergunta: e se…? Se tudo isso fosse real… o que narrativas alienígenas nos dizem sobre a relação com os outros? Quais são os corpos que classificamos como monstruosos? O que distopias e utopias revelam sobre as possibilidades de coletividade humana?
A inversão da seta é importante: o especulativo deixa de ser a maquiagem da realidade — tanto no sentido de “esconder” a dor de viver o mundo real, quanto como um filtro que traduz processos psicológicos, políticos, sociais, econômicos, etc. O especulativo se torna uma possibilidade estética de reflexão sobre questões fundamentais da existência humana e que, eventualmente, vazam para o mundo real.
Ao analisar A Mosca, se parassemos na segunda etapa, perderíamos a discussão sobre a corporeidade e a individualidade. Em um texto da White Review chamado Guts [Entranhas], a escritora Julia Armfield usou filmes de horror corporal para refletir sobre a existência de um tumor que cresceu silenciosamente dentro do seu útero.
Julia cita A Mosca (1986), assim como Alien (1979), Blade Runner (1982) e outros filmes das décadas de 1970 e 80, como produções preocupadas com a discussão de o que é ser humano, suas fusões com as máquinas e a perda de uma integridade corporal. Para ela, Cronenberg aponta para um colapso total do corpo.
Depois de sua transformação, Seth Brundle tenta se comunicar com o computador. De acordo com a leitura do teletransporte, Seth Brundle e A Mosca não existem mais — não como indivíduos separados. Nem mesmo a voz daquele que era o cientista é reconhecida pelo sistema. A nova entidade afirma ser Brundlemosca: o filho dos dois.
Como se guardasse as tábuas rejeitadas do Navio de Teseu, o armário do banheiro se tornou um Museu de História do Brundle — Brundlemosca guarda ali todas as partes desprezadas de sua carne antiga: unhas, orelhas, dentes. Mas qual foi o momento exato em que Brundle e Mosca se tornaram um só?
Em paralelo, há uma aura entrópica de fusão e hibridismo. Cada vez mais elementos são assimilados pela carne. Carne clama por mais carne, orgânica ou sintética. Brundle funde-se com a Mosca, mas faz planos para absorver outras pessoas numa tentativa de “reintegrar-se com sua humanidade”. Mas o o fracasso da tentativa faz com que termine em uma existência agonizante, fundindo-se a pedaços de sua máquina de teletransporte. E Veronica também se vê contaminada.
O desfecho da narrativa me remete não só ao colapso corporal, mas, retomando a observação de que não há mais fronteiras entre externo e interno, o colapso do corpo indica um colapso da consciência — e da própria identidade. Me pergunto se a angústia não tem origem no limite material das consciências — sem hierarquias, mas sem compatibilidades. Como pode pensar como um homem como uma mosca como uma máquina? Existe uma carne pronta para essa coexistência-ciborgue?
Mas… não é isso que somos? Brundlesmoscas tecnológicos?
Até que ponto continuaremos humanos se perdermos nossas tecnologias e culturas — sem celulares, roupas, bengalas, óculos ou o conhecimento de plantio, coleta, caça? É real a cisão proposta pela filosofia ocidental, entre seres racionais e irracionais; animais, humanos e suas criações?
Com o que sonham os homens-insetos-máquinas? Com o que sonhamos?
Uma vez Chuang Tzu sonhou que ele era uma borboleta, uma borboleta a voar e flautear por aí, feliz consigo mesmo e fazendo o que desejava. Ela não sabia que era Chuang Tzu. De repente ele levantou-se e lá estava ele, o sólido e infalível Chuang Tzu. Mas ele não sabia se era Chuang Tzu que havia tido um sonho que era uma borboleta, ou era uma borboleta sonhando que era Chuang Tzu. — Chuang Tzu
Sou um inseto que sonhou ser um homem. E adorou. Mas agora, o sonho acabou. E o inseto acordou. — A Mosca
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