Anemonações #5 — Cirurgia é o novo sexo?
Observações sobre o grotesco, o sublime e o filme 'Crimes do Futuro', de David Cronenberg
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Eu sempre li mais do que assisti.
Isso significa que, quando vejo pessoas empolgadas com anúncios de filmes de diretores que não conheço, sempre vou ver do que se trata. Foi o que aconteceu quando rolou o primeiro trailer de Crimes do Futuro, filme de David Cronenberg lançado no meio do ano — e, quando descobri que era um filme cheio de body horror, coisas grotescas e esquisitices, fiquei curioso.
Aproveitei um dos fins de semana de dezembro para assistir. Basicamente, a sinopse do filme é a seguinte:
Crimes do Futuro acontece em um mundo distópico — devastado, esvaziado, artificial — no qual a humanidade precisa lidar com evoluções/adaptações corporais em diversas frentes. Em primeiro lugar, uma Síndrome da Evolução Acelerada se espalhou rapidamente e diversas pessoas começaram a desenvolver novos órgãos de forma espontânea, o que gera, por exemplo, a demanda de instauração de um Cartório Nacional de Registro de Órgãos cujas funções ainda são desconhecidas.
Além disso, alguns têm abraçado as mudanças e defendem a manipulação ativa do corpo humano, trocando órgãos e se adaptando ao futuro iminente. A polícia, por outro lado, suprime tais manifestações políticas corporais sob o argumento de que eles se afastam do que é a humanidade — uma unidade contra o Novo Vício é apresentada como a responsável por lidar com esses… crimes do futuro. Por fim, incapazes de sentir dor, os humanos procuram prazer em outras fontes, como nas mutilações que acontecem ao ar livre, em todos os becos. Agonia & tesão se confundem com frequência.
Acompanhamos esse mundo sob a visão dos artistas Saul Tenser e Caprice. Os dois são bastante conhecidos por suas performances: as remoções dos órgãos produzidos por Tenser (afetado pela Síndrome) em cirurgias abertas e performáticas. Envolvendo violência e erotismo, ao fim de uma das performances, uma das espectadoras pergunta a Tenser: “Cirurgia é o novo sexo, não é?”.
Ao longo do filme, algumas questões se destacaram: o evidente clima de catástrofe ambiental/política; o grotesco & o sublime; fazer artístico real e superficial; erotismo & violência; a limitação da linguagem (e a conclusão nada catártica da narrativa). Desenvolvi um pouco desses incômodos e, para não falar besteira, também procurei um pouco do que disseram sobre o Cronenberg por aí.
Deixo aqui o registro desse percurso.
Crimes do Futuro
Filmes e séries têm um efeito muito curioso, ao menos nos dias de hoje, que é o de gerar vídeos e textos de “entenda o final” & “diretor explica filme”. Na maioria dos casos, essas entrevistas achatam a experiência do filme com uma cartilha — de cabeça, lembro que, pouco tempo depois que mãe! entrou em exibição, o diretor do filme Darren Aronofsky explicou em entrevista toda a concepção do filme e a cobertura cultural tratou as afirmações como um guia para entender corretamente o filme.
(Mas penso também no meme do David Lynch que, em uma entrevista, afirma que Eraserhead é seu filme mais espiritual. O entrevistador pede para ele desenvolver e ele diz: não. Lynch também recusou a oferecer explicações sobre o filme Mulholland Drive, diversas vezes).
Quando Crimes do Futuro saiu, alguns portais (principalmente gringos) compartilharam uma entrevista com David Cronenbrg explicando “o que a obra realmente diz”. Ali, o diretor comentou sobre o protagonista enquanto modelo de artista: a criação interna como a produção de órgãos; o momento da cirurgia como o de performance cirúrgica; a vulnerabilidade de ter as entranhas expostas para uma plateia como a de mostrar sua obra para uma plateia.
Entendo a leitura. Matthew Mahler, em Crimes of the future, explained: Dissecting David Cronenberg’s New Movie [Crimes do futuro, explicado: dissecando o novo filme de David Cronenberg], faz um apanhado das leituras que surgiram depois do lançamento do filme. No texto, ele apresenta alguns temas que aparecem, como (a) a própria questão da evolução humana; (b) as tecnologias do eu — ou seja, como a tecnologia se torna uma extensão do corpo e as as mudanças corporais/sociais/ambientais que surgem desse contato; (c) o filme como uma crônica do colapso climático; e, finalmente, (d) a própria questão do processo artístico, acrescentando outros elementos, como os espectadores e as TVs que transmitem a performance, os concursos, os profissionais que analisam e catalogam as obras-órgãos, etc.
No entanto, o que fica para mim é a artificialidade desses novos tempos. O que parece guiar as criações artísticas é uma busca desesperada por sentido. Em uma das performances que Saul Tenser assiste, um homem costura seus olhos e bocas, se guiando na dança pelas diversas orelhas que foram instaladas por todo seu corpo. Tenser avalia a obra como boa, se você gostar de artes escapistas, já que as orelhas não são nem funcionais.
Tudo parece superficial, sintético, estéril.
Ainda que protagonistas da trama, Caprice e Saul Tenser não se distanciam dessa régua. O que significam os órgãos de Saul? Quais suas funções, como mudam o funcionamento corporal? No mundo de Crimes do futuro, evoluir é um crime. O que mantém Saul Tenser como um artista relevante é sua indisposição para mudar — ele gera, cataloga & remove.
O movimento que o filme faz, adotando a metáfora que Mahler emprega no texto, é de valorizar a “evolução” que habita a palavra “revolução” — e o emprego que fazemos aqui da evolução é o mais próximo da concepção real mesmo. As mudanças não têm uma melhoria implícita. Evoluir não é um sinônimo de progresso, é um processo caótico e aleatório. Tudo que aponta é que as coisas têm uma natureza maleável e adaptativa.
No caso de Crimes do Futuro, o corpo passa a se sintonizar com o mundo sintético e suas tecnologias, mas essa harmonia não carrega necessariamente uma vida com mais qualidade ou mais chances de sobrevivência enquanto espécie.
Por exemplo, grande parte dos seres humanos perdeu a capacidade de sentir dor. Como um dos personagens do filme afirma, a dor é um sistema de avisos. Sem a dor, cruzamos um limiar perigoso rumo a um cenário incerto. O tédio e a insensibilidade dessa condição gera a busca incessante por algo que possa nos afetar novamente. O que importa é a busca pelo prazer — Mark Fisher caracterizou um estado parecido com este como depressão hedonista.
Com essa inversão, o prazer sexual se mistura com a mutilação. As facadas nas ruas, as cenas de carícias e sexo com bisturis. Ao longo do filme, os gemidos de tesão são próximos aos de dor. A atração dos personagens envolvem não apenas outros humanos, mas a sintonia com as tecnologias é tão forte que até as máquinas geram excitação.
No campo político, as coisas também desmoronam. Em O hedonismo substitui a política em ‘Crimes do Futuro’, Marcelo Hessel escreve que
da política organizada como a conhecemos hoje restam apenas relíquias analógicas, como as burocracias kafkianas de um departamento de registros de órgãos humanos, ou então o classismo implícito nas escolhas étnicas do elenco (o policial é negro, os anarquistas são latinos, os ricos e os artistas são os brancos de sempre, com cara de gente rica e cansada).
Os espaços públicos também parecem esvaziados. As performances, por mais sucesso que tenham, reúnem um pequeno punhado de gente. Os lugares são escuros, sujos, vazios, abandonados. A polícia quase não tem poder. O cartório é irrelevante e fútil.
Inclusive, a ambientação do filme foi algo que chamou bastante minha atenção. No episódio “Crimes do Futuro” e a inquietação da carne, do podcast Cinematório Café, os participantes citaram as obras do período Barroco como inspirações visuais — principalmente pelo contraste entre claro e escuro na composição das luzes. Além das obras de Caravaggio, é acertada a lembrança do quadro A Lição de Anatomia do Dr. Tulp (1632), de Rembrandt.
Enquanto ouvia os paralelos, me lembrei da construção sonora. São frequentes o uso de sons que causam desconforto, seja de respiração difícil de Saul Tenser — que sofre de asfixia em vários momentos do filme —, seja das moscas que frequentemente dividem os cômodos com os personagens.
Como um mundo repleto de moscas, sujeira e escuridão não tem relatos de infecção? E, se houver, como saberiam das doenças sem as dores avisando? Me parece que é a constatação da esterilidade e do domínio do sintético. Nada apodrece, não há vida. Nessa inversão de valores, penso também em dois elementos específicos: o grotesco & o sublime (e em como eles se relacionam com o final do filme).
Grotesco e sublime
Em primeiro lugar, acho que o filme carrega consigo alguns valores da Ficção Estranha, um tipo de narrativa que retira a consciência humana do centro dos processos de interpretação dos fatos. É um tipo de história que sobrepõe diferentes camadas de existência — camadas que, muitas vezes, são conflitantes.
Pensar no próprio corpo é algo estranho. É tirar de cena a sua unidade enquanto sujeito e notar os processos & outras identidades que habitam seu corpo. Visualizar o fluxo dos fluídos, as entranhas e dejetos.
Podemos pensar nessa experiência sob dois pontos de vista. Em primeiro lugar, num contato com o sublime — que diz respeito a uma reação estética voltada para os aspectos grandiosos e os mistérios da natureza, que gera uma sensação de fascínio & solidão, como olhar para uma paisagem gigantesca e ficar sem palavras.
Mas também podemos visualizar a coisa toda pelo espectro do grotesco — que nasce da descoberta de figuras, estátuas e deidades híbridas de gente, animal e figuras míticas. Hoje em dia, podemos pensar no grotesco também nas imagens esguias e distorcidas ou de acordo com os termos de carnavalização de Bakhtin: a instauração de uma nova ordem de mundo, invertida, em que o que periférico passa a ser centro e vice-versa. A distorção das imagens clássicas e elevadas, por exemplo, é um traço característico. O grotesco rebaixa o sublime.
No linkado acima, apresentei como esses valores se relacionam com a Ficção Estranha e trouxe os pensamentos de Istvan Csicsery-Ronay Jr. e de China Miéville sobre o assunto:
Um bom exemplo que tange as fronteiras nebulosas da Ficção Científica é descrito no trabalho de Istvan Csicsery-Ronay Jr., em seu livro The seven beauties of Science-Fiction (As sete maravilhas da Ficção Científica), em que ele apresenta a “Ficção Científica Sublime” e sua inversão, a “Ficção Científica Grotesca” em que as categorias ontológicas de percepção do mundo entram em colapso.
Enquanto a Sublime diz respeito à mente refletindo sobre seus próprios poderes e limitações, sobre a totalidade do mundo (um pouco como os personagens de Lovecraft tentam acomodar a nova ordem de existência que inclui novas dimensões e seus Antigos), a Grotesca tem a ver com a luta para acomodar o mutável, os objetos instáveis: “o grotesco traz o sublime para a Terra, o torna material e no nosso nível, forçando a atenção de volta para o corporal. Ele prende o sublime no corpo, parcialmente subvertendo-o”, escreve Csicsery-Ronay Jr. — em Estação Perdido, China Miéville trabalha bastante a questão do grotesco na arte e nos corpos alienígenas.
Além disso, Istvan também nos diz que “onde o tecnosublime [o sublime que surge de uma nova potencialidade tecnológica humana] é extenso, induzindo sentimentos de espanto e pavor em resposta a fenômenos criados ou revelados por técnicas humanas, o grotesco é implosivo, acompanhado de fascínio e horror com a perspectiva de fenômenos intimamente violadores de categorias descobertas pela ciência humana”. É um conhecimento que ataca a própria racionalidade que o permitiu nascer, um oximoro de ideias.
China Miéville também trabalha com questões do sublime e suas limitações. Para ele, o Weird faz uma transposição do sublime, da experiência numinosa para a esfera do cotidiano. “De acordo com Edmund Burke e outros teóricos do sublime, o belo e o sublime excluem-se mutuamente: em certa escala, enormidade e irrepresentabilidade (…), o sublime aparece. O Weird, porém, perfura a suposta membrana separando o sublime e permite a difusão desse espanto e horror do ‘além’ de volta ao cotidiano — em ângulos, arbustos, o toque de membros estranhos, ruídos, etc.”, escreve Miéville no capítulo Weird Fiction, do livro The Routledge Companion to Science Fiction.
O final do filme é bastante anticlimático. A epifania aparece para o personagem principal. Saul Tenser vive a conclusão do seu arco, enquanto os outros — imersos em suas próprias questões particulares — continuam suspensos.
Penso que o ponto esteja aí. Enquanto espectadores, vemos o que há de grotesco naquela realidade. Estamos distantes dos processos evolucionários vividos e daquela realidade indolor & estéril. A experiência sublime que Tenser vive no final do filme é uma experiência transcendental, sublime — e, portanto, inacessível aos que não viveram.
Até que estejamos lá, só nos resta o fascínio e assombro com aquilo que o filme nos lembra na primeira apresentação de Saul e Caprice: corpo é realidade.
Algumas leituras
Se você quiser saber um pouco mais sobre o filme, além das matérias linkadas, recomendo esses textos:
História da arte inspira novo filme de David Cronenberg, de Beta Germano (em Arte que acontece) — o texto é um ensaio que parte do filme para discutir o body horror e relacioná-lo com uma longa história das performances corporais no campo das artes;
Crimes do Futuro é anti-distopia da performance queer, de Thiago Gelli (em Esqueletos no armário) — o texto faz uma leitura do filme a partir de uma bibliografia queer, apontando como a trama apresenta uma tensão constante entre a natureza fluída do corpo e a tentativa do controle corporal pelo Estado;
How David Cronenberg Uses The Body Horror Genre intellectually [Como David Cronenberg usa o gênero do horror corporal intelectualmente], de Kenneth Bieber (em Movieweb) — o texto, em inglês, é uma análise sobre os temas, estilos e formas dos filmes de David Cronenberg e como ele usa o body horror pra apresentar suas questões.
Obrigado por ler e apoiar!
Como essa edição ficou maior do que o de costume, deixo para enviar avisos e anúncios na próxima edição.
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