Anemonações #10 — Fungos de um futuro assombrado
Sobre os espectros fúngicos que Joel e Ellie encaram em 'The Last of Us'
(Texto publicado em 26.05.2023, primeiro para os apoiadores da Ponto Nemo. O texto ficará aberto no dia 25.08.2023. Se quiser receber esses textos em primeira mão e apoiar a continuidade do projeto, considere apoiar via Substack ou Catarse)
Depois de assistir a adaptação de The Last of Us, feita pela HBO, resolvi dar mais uma chance para o jogo. Gostei. Acabei me inspirando para um texto, principalmente da construção de um futuro pós-apocalíptico assombrado pelo passado.
Ter jogado próximo das leituras que fiz de Mark Fisher, tema das últimas edições, fez com que apitassem algumas questões da assombrologia e do realismo capitalista.
Por isso, separei o texto em duas partes: (1) reflexões sobre a construção desse futuro pós-apocalíptico e (2) como Joel e Ellie, os protagonistas, evocam os espectros do passado em suas trajetórias, principalmente envolvendo uma cultura midiática e a impossibilidade de fugir do passado.
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Fungos de um futuro assombrado
Caso você não tenha esbarrado com esses cogumelos por aí antes, saiba que The Last of Us foi originalmente lançado como um jogo para PlayStation 3 em meados de 2013, quase dez anos antes da adaptação da história em série pela HBO, com Pedro Pascal e Bella Ramsey.
Entre os dois formatos, alguns detalhes foram alterados, como o ano em que a narrativa se passa, peculiaridades dos inimigos que se enfrentam ou aprofundamentos de alguns personagens. Mas o principal se manteve: o mundo colapsou depois que o fungo do tipo Cordyceps — famoso por transformar insetos em mortos-vivos — passou a ocupar os cérebros humanos e os transformar em feras canibais.
Começamos no dia do colapso, quando a infecção atinge um ponto crítico. Acompanhamos o ponto de vista do núcleo familiar de Joel, que tenta sobreviver com seu irmão Tommy e sua filha adolescente Sarah. Enquanto eles correm pela cidade, aviões caem, carros explodem, pessoas são atacadas e o exército dos EUA age rapidamente para conter a cidade em uma zona de quarentena.
Depois de escapar dos infectados na cidade, a família alcança as fronteiras e pede refúgio ao exército. Em vão. As ordens são de eliminar os que tiveram na zona de surto e, durante um confronto, Sarah morre.
… vinte anos depois, encontramos Joel vivendo como um contrabandista em um mundo pós-apocalíptico. Dessa vez, a carga que ele precisa levar é Ellie, uma adolescente mal-humorada — e imune à infecção do Cordyceps.
Como dito na introdução, The Last of Us marcou a produção de jogos. Ao longo dos dez anos de existência, os fãs jogaram e rejogaram, escreveram e discutiram sobre o jogo na internet. Então, para não chover no molhado, quero focar em dois tópicos que me chamaram a atenção, já que joguei enquanto estudava o Mark Fisher para a edição anterior: (1) a construção do mundo pós-apocalíptico (consequentemente, após o colapso do capitalismo) como algo tenebroso e (2) a presença desse passado na mentalidade e no trajeto das personagens principais, Joel e Ellie.
1. Espectros fúngicos
“É mais fácil imaginar o fim do mundo do que o fim do capitalismo”. É por isso que a famosa frase, atribuída a Jameson, se difundiu tanto. Em narrativas como essa, o elemento estrangeiro é o porta-voz da mudança pelo confronto do status quo com outras cosmovisões. No entanto, quando se trata de uma mudança que destrói o funcionamento do sistema econômico, a alteração é catastrófica e apocalíptica.
A presença do elemento fúngico na equação é sugestiva. Fungos são objetos de diversos estudos recentes que problematizam as questões climáticas, o antropoceno e o capitalismo. Um dos nomes que sempre surgem é o de Anna Tsing e seu estudo sobre o cogumelo matsutake, publicado como o livro Cogumelo no fim do mundo: sobre a possiblidade de vida nas ruínas do capitalismo.
O subtítulo do livro origina-se do fato de que as ruínas são um espaço frutífero para fungos. Tsing aponta que essa paisagem, apesar de ser taxada como improdutiva pelo ritmo capitalista de produção, está pulsando de vida e possibilidades. Há vida naquilo que parece descartado.
Na entrevista com Yama Chiodi, publicada na Ponto Nemo, falamos sobre como cogumelos não conseguem ser totalmente domesticados pelo nosso ritmo de produção. Eles não funcionam na mesma lógica. Primeiro, pelo funcionamento da sua estrutura. Eles não são hierárquicos, sua ramificação não obedece ao padrão centro-periferia. Cada intersecção é autônoma, potente, horizontal.
Além disso, o fungo é um decompositor. Você não consegue domesticar o apodrecimento no solo. Você pode tentar burlar e transformar a matéria de outras formas, mas o apodrecimento tem um ritmo próprio. É o oposto da produtividade, do ritmo acelerado. As trufas, por exemplo, que nascem das redes de fungos nas raízes das árvores, não são domesticáveis. Por isso, tal escolha de antagonista parece certeira.
Impossibilitados de lidar com essa concepção, os seres humanos que sobrevivem não conseguem se organizar. O mito do estado selvagem da natureza, completamente bélico e competitivo, entra em cena. Como se a forma mais reconhecida de sobrevivência fosse a violência. Como inimigos do jogador, tão presentes quanto os infectados, estão saqueadores ferozes, bestiais e armados.
Praticamente qualquer organização social que o jogo nos propõe está repleta desses elementos. Em alguns acampamentos, saqueadores, contrabandistas, grupos revolucionários e o exército corrupto estão em constante conflito. Outros locais, onde o exército era tirano, o grupo que ascende é sanguinário e vingativo. Em pequenas comunidades onde a existência é isolada e pacífica, os ataques de outros sobreviventes são constantes — assim como as hordas de zumbis. Tudo por um fio.
A ideia é que a queda da sociedade ocidental como conhecemos só pode nos levar a um estado de brutalidade e primitivismo violento. Uma incapacidade de lidar com o planejamento futuro. A adaptação televisiva brinca com essa solução. Em determinado momento, Joel visita uma colônia que está segura, protegida e em funcionamento. Observando a rotina de colaboração e apoio entre os sobreviventes, Joel pergunta “vocês vivem no comunismo?”, porque o mundo como ele entende é estéril de soluções.
2. Assombrações pessoais
Um dos motivos pelo qual The Last of Us ganhou destaque na história das narrativas interativas é porque deu aos personagens Joel e Ellie uma profundidade e conexão que era pouco vista nos jogos do gênero.
É pelo ponto de vista dos dois que podemos aprofundar a discussão de como a sociedade até então se apresentava. Joel e Ellie são assombrados não só por problemas pessoais, mas pelas promessas de um futuro inalcançável — principalmente se lembrarmos que foi escrito em um EUA tão marcado pela crise econômica de poucos anos antes.
Ellie é uma híbrida. Dentro de si, carrega uma porção fúngica e outra humana. É a possibilidade de um futuro de convivência. Mas o tom da narrativa é o outro. Ellie se relaciona com a sociedade de consumo e a cultura midiática como uma perda. Procura quadrinhos de herói, lê as piadas de um livro de banca, apaixona-se em um shopping center e, mesmo sem nunca ter pisado em um avião, sonha que está voando. Além de uma raiva violenta que parece adormecida em seu corpo.
Joel, por outro lado, é assombrado pelo espectro da filha, o duplo de Sarah personificado em Ellie. Em sua jornada, despreza e rejeita sua companhia até que, por fim, praticamente adota a adolescente. Não fica claro se Joel sente saudades do mundo antigo, mas tampouco consegue se desprender dele.
Ao longo do caminho, vemos como Joel explica o mundo para Ellie. Em um determinado momento, a adolescente questiona sobre os padrões de beleza e o corpo das modelos que vê nas propagandas. Outra vez, falam sobre cafés e hotéis luxuosos inacessíveis.
Como a relação de Joel e Sarah, a dupla não conseguem processar o luto das promessas impossíveis e inalcançáveis da sociedade antiga: uma vida confortável e equilibrada por meio do consumo desenfreado. O espectro desse compromisso inatingível permeia a jornada como um espectro, impedindo que novas possibilidades sejam criadas.
A lembrança que Joel guarda da filha, e mantém até o fim do jogo, dialoga com essa reflexão. Joel tem um relógio quebrado, um presente parado no tempo, conectado ao dia em que Sarah morre.
Perto do fim do jogo, ao receber uma fotografia de pai e filhas juntos, depois de tanto se esquivar sobre o assunto, Joel diz que “não podemos escapar do passado”. É a sensação assombrológica que o jogo passa: estamos presos. O passado é o fim da linha. Sem cura, vacina ou sacrifícios.
Não há futuro.
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