Temporada 01 - Episódio Extra 02: Trufas!
Depois de ler a edição sobre fungos micorrízicos, Josi, uma amiga, me pediu para falar sobre trufas. Ela me disse que “jurava que trufas eram só chocolate” — impressão reforçada pelo Google Imagens dela. Por isso, temos um novo Episódio Extra.
É a segunda vez que começo a edição de hoje. Apesar do stress e da frustração que sempre surge ao perder um documento, a reclamação nas redes serviu para me lembrar de um causo que toquei só por cima na primeira versão.
Eu tinha escrito que meu primeiro contato com as trufas aconteceu quando adolescente, marcado pela relação entre a iguaria e os porcos — mas o que Kaio, um amigo meu da época, me lembrou é que parte dessa ligação surgiu das perguntas de uma criança sagaz, durante uma apresentação de trabalhos:
— Quanto custa uma trufa?
— Muito.
— E quanto custa um porco?
— …menos que uma trufa.
Caso esse menino tenha seguido os empreendimentos que claramente calculou enquanto perguntava, é possível que ele esteja em algum país europeu, caçando trufas com cachorros treinados e trabalhando contra o relógio para que o alimento permaneça fresco a tempo de chegar nos pratos dos clientes dos restaurantes (acumulando os custos de suas etapas de produção de maneira absurda).
E os valores são altos mesmo. Achei um site italiano, Tartufo, que funciona como uma cotação de trufas. A clássica trufa branca aparece com cerca de 6 mil euros o quilo. Outra, mil euros. As que estão fora da estação variam entre 700 e 170 euros.
Nos Estados Unidos, é possível encontrar pedaços de 56 gramas a partir de cem dólares no Urbani Truffles. Já em São Paulo, 72 gramas de uma trufa branca italiana inteira em conserva sai pela bagatela de R$1.200,00 na Banca do Ramon (via PIX, você pode pagar apenas R$1.140,00. Uma pechincha.) Até em Stardew Valley, um jogo de fazenda, a trufa é um item bastante caro e rende valores de quatro dígitos.
O que me leva a perguntar: afinal, o que a trufa tem de especial?
T01 EE02: Trufas!
As trufas acompanham a humanidade há um bom tempo. No Egito, eram servidas por Quéops, o faraó. Bosquímanos do Kalahari e aborígenes australianos buscavam-nas para sua alimentação. Em uma das teorias, o maná, alimento que permitiu a sobrevivência dos israelitas durante sua passagem pelo deserto, era uma trufa-do-deserto — presente em grande parte do solo árido do Oriente Médio. Romanos, acreditando que eram esses fungos produzidos por trovões, consumiam espécies da Grécia, África e Líbia.
Como mostra a reportagem Trufa: a história e receitas com o ingrediente, esses fungos estão nas dietas dos sumérios desde 3500 a.C., aproximadamente. Acompanham nossa dieta desde então, mas só por volta de 1780 que as trufas passam a se tornar objeto de luxo. Raras em Paris, o peru trufado era o item cobiçado das mesas de nobres e cortesãs. A partir daí, o preço da iguaria só aumentou e, hoje, perde apenas para o caviar.
É curioso pensar que trufas não são cogumelos, já que são frutificações que aparecem abaixo do solo. Como nos conta Merlin Sheldrake em A Trama da Vida, “na maior parte do ano elas existem como redes miceliais, sustentadas parcialmente pelos nutrientes que obtêm do solo e pelos açúcares que retiram das raízes das plantas”, até que duas hifas diferentes se encontram.
A trufa é fruto de uma união sexual fúngica. Você precisa que o micélio de uma hifa (+) e de uma hifa (-), sexualmente compatíveis, se fundam. Os dois fungos fornecem material genético, mas um deles se torna responsável pelo crescimento do corpo das trufas e esporos (Acho interessante que os papeis são intercambiáveis: qualquer um dos dois pode ser o gerador do corpo de frutificação, um pouco mais distante das noções de parte masculina e feminina na biologia tradicional).
Em A vida secreta das trufas, reportagem da Scientific American Brasil, James Trappe e Andrew Claridge explicam que, em termos morfológicos e de sequenciamento genético, tudo indica que a maioria das trufas evoluiu dos cogumelos.
Com pouca defesa contra perigos ambientais, cogumelos geralmente tem a produção de esporos interrompida pelo tempo seco ou congelante. Por isso, ao frutificar no subsolo úmido, a trufa está mais protegida.
A trufa pode parecer uma forma simples e pouco sofisticada. Sua forma é menos complexa que a de um cogumelo. Em seu desenvolvimento, não demanda do custo energético para empurrar as estruturas para fora da terra. Mas, enterrada, a trufa encontra problemas na dispersão de seus esporos sem o auxílio das correntes de ar e (na maioria dos casos) incapaz de seduzir visualmente os animais.
A solução desenvolvida pelas trufas foi aromática — e é nesse ponto que a complexidade da trufa se destaca, como nos explica Merlin Sheldrake:
Exalar um odor mais potente que o rebuliço olfativo de uma floresta não é tarefa fácil. (…) As trufas devem ser pungentes o suficiente para que atravessem as camadas do solo e cheguem ao ar, distintas o bastante para que sejam notadas em meio à paisagem de aromas e tão deliciosas que o animal as encontre, desenterre e coma. Todas as desvantagens visuais que as trufas enfrentam — sepultadas no solo, difíceis de localizar e visualmente desinteressantes quando descobertas —, elas compensam com o odor.
Cada espécie de trufa desenvolve aromas particulares que afloram quando as frutificações atingem a maturidade, mas sua base química ainda é incerta. “O cheiro de uma trufa é formado por uma abundância de moléculas diferentes vagando em uma certa formação — mais de cem nas trufas brancas e cerca de cinquenta nas outras espécies mais comuns”, explica Sheldrake.
Merlin explica que, apesar de alguns elementos já identificados, ainda não é possível descrever com precisão os aromas e os efeitos que eles estimulam em outros animais. Parte da questão vem da abundância, já destaca acima, mas outra parte vem do seu terroir.
Aos que leram a Trilogia do Comando Sul, de Jeff VanderMeer, o terroir da Área X é um componente importante na equação de transformações nos seres. É o relacionamento com todos os elementos daquele ecossistema que modifica percepções e existências individuais.
Da mesma forma, “o aroma de uma trufa é uma característica complexa e parece emergir das relações que o fungo mantém com a comunidade de microrganismos e com o solo e o clima em que vive — seu terroir”, escreve Sheldrake.
Das milhares de possibilidades conhecidas hoje, apenas algumas dezenas agradam nosso paladar. Certas trufas são pequenas ou duras demais para o nosso gosto. Outras podem ter um cheiro repugnante, ou até mesmo serem imperceptíveis. Outras, inclusive, são venenosas. Mas o paladar dos animais é variável — e o lixo de um é o tesouro de outro.
No texto de Trappe e Clardige vemos que pequenos mamíferos são grandes apreciadores de trufas (no hemisfério norte, ratos, esquilos e coelhos; no hemisfério sul, cangurus-ratos, suricatos e tatus). Veados, ursos, babuínos e wallabies, um animal parecido com um canguru, também caçam trufas por aí.
Mas possibilidades são ainda maiores. Moluscos são atraídos por trufas. Insetos se alimentam ou colocam ovos dentro dessas “bolotas” para que suas larvas tenham uma fonte de alimento ao nascer. Algumas trufas apostam no cheiro que exalam depois de apodrecer, atraindo e sendo consumidas por larvas e outros invertebrados — que espalham seus esporos conforme passeiam pelo solo. Por fim, na Nova Zelândia, algumas trufas evoluíram com tons de arco-íris, imitando as frutas comidas pelas aves locais — já que estavam num sistema com poucos mamíferos terrestres.
A sedução das trufas é, portanto, o resultado de centenas de milhares de anos de enredamento evolucionário com o paladar dos animais — Merlin Sheldrake
Exportação e cultivo
Pela força do aroma, alguns animais são ótimos em caçar trufas. Porcos, por exemplo. O problema é que os suínos eram tão atraídos pelos fungos que, ao invés de entregá-los, devoravam. Por isso, os cachorros se tornaram a opção preferida dos caçadores de trufa — principalmente os da raça lagotto romagnolo.
Além de serem mais abertos à possibilidade de troca das trufas por outras recompensas, os cachorros podem ser treinados. Por exemplo, existem cães de diversidade, que seguem qualquer cheiro que os atraia, e existem cães de produção, especializados em procurar grandes quantidades de uma espécie só. Os caninos também fazem trocas pela linguagem corporal — cavar com uma pata ou cavar com duas patas, na relação entre caçador e cão, pode ter significados distintos.
A partir dessas particularidades na caça e coleta, podemos começar a entender a complexidade na coleta das trufas. Trappe e Clardige explicam que, “embora em décadas recentes pesquisadores tenham aprendido muito sobre a ecologia das trufas, a ciência de seu plantio pouco mudou desde os anos 60, quando os cientistas franceses desenvolveram uma técnica de estufa para adicionar esporos da trufa negra de Périgord ao composto de mudas de carvalho e de aveleiras”.
E a possibilidade de domesticar trufas fica, mais ou menos, por aí. As trufas brancas, tão cobiçadas, e outros fungos micorrízicos, como porcini, chanterlle ou matsutake, nunca obtiveram sucesso no cultivo e domesticação. Em comparação com outras áreas agriculturais, a truficultura é bastante incipiente — principalmente porque as trufas exigem conhecimentos complexos, interdisciplinares e sistêmicos. A ciência não parece saber lidar muito com isso.
“Para cultivar trufas efetivamente, você precisa entender as peculiaridades e necessidades não apenas dos fungos — com seus sistemas reprodutivos idiossincráticos —, mas também das árvores e bactérias com as quais eles vivem. Além disso, precisa entender a importância das variações sutis no solo, na estação e no clima da região”, escreveu Sheldrake.
Como descrito nas outras edições de Ponto Nemo, os fungos nascem muitas vezes em locais fronteiriços & perturbados. A produção de trufas durante o século 20 despenca na Europa à medida que espaços de cultivo de trufa dão lugar à agricultura ou ao abandono, transformando-se em florestas maduras. Atualmente, são poucos os espaços que conseguem produzir trufas o bastante para consumo humano.
Merlin Sheldrake viajou até a Itália, um dos países tradicionais da truficultura, e acompanhou caçadores de trufas brancas. O contato foi um golpe de sorte, porque a caça das iguarias é um costume reservado (com direito a traje de camuflagem) e que envolve muito dinheiro e paixões. O assunto é tão sério que inclui tráfico de trufas baratas tingidas para se assimilarem a espécies raras; cães farejadores roubados ou até envenenados; e assassinatos realizados em defesa da trufa que contaram com o apoio massivo da população.
No contato com os caçadores, o pesquisador viu a relação deles com os cães, as maneiras de guardar, pesar e receber as trufas. Os cuidados para não revelarem locais conhecidos de coletas de trufas para seus caçadores rivais e o complexo fluxo de comercialização de trufas.
Todo esse sistema funciona contra o relógio. Sheldrake explica que “os exportadores desenvolveram sistemas sofisticados de embalagem resfriada para manter as trufas em ótimas condições quando são lavadas, embaladas, entregues em mãos no aeroporto, transportadas ao redor do mundo, retiradas no aeroporto, passadas pela alfândega, reembaladas e distribuídas aos consumidores — tudo em 48 horas”.
É principalmente por esses custos que o preço chega tão alto no consumidor final. O aroma das trufas é produzido pelo metabolismo das células vivas. Quando a trufa é retirada do seu buraco, ela começa a morrer — e, consequentemente, seu odor. Não é possível desidratar uma trufa e comê-la mais tarde. É preciso correr o mais rápido possível.
Trufas no Brasil
O acesso ao consumo das trufas seria muito menos dispendioso caso encontrássemos espécies por aqui… Mas encontramos! Nessa matéria da piauí, Caça às trufas, Rafael Tonon conta que o centro do Rio Grande do Sul tem um clima próximo ao de outros locais de extração de trufas. Por isso, ao encontrarem trufas nas raízes de nogueiras em Santa Maria e Cachoeira do Sul, a surpresa foi grande, mas esperado.
As trufas são de uma espécie nativa dos Estados Unidos e, provavelmente, vieram junto com as raízes das mudas de nogueiras-pecã. Elas foram identificadas pelo professor Marcelo Sulzbacher, da Universidade Federal de Santa Maria, e batizada de Trufa Sapucaya pelo chef sul-matogrosensse Paulo Machado.
Em uma matéria intitulada Trufa brasileira existe, mas ainda não pode ser consumida, Sulzbracher explica que ela é uma “prima distante” da trufa branca, com a sazonalidade ideal entre novembro e dezembro. O problema, como sugere o título, é que ainda não podíamos consumir a iguaria.
Apesar da descoberta de árvores, climas e solos propícios, as trufas estavam em um pomar convencional e as nogueiras utilizam muito agrotóxico para aumentar a produção das nozes — eles são absorvidos pelas trufas e inviabilizam o consumo.
Logo, a equipe iniciou o preparo de mudas para o desenvolvimento de trufas e árvores sem agrotóxicos. Na virada de 2019 para 2020, a trufa apareceu no cardápio de uma tartuferia em Curitiba. Nesse ano, o restaurante San Paolo pretende repetir a dose.
Só que, por aqui, sigo sem saber como são os sabores das trufas.
[O episódio de hoje é especial, portanto não temos conto ou indicações. Voltamos para a programação normal na próxima semana, com Psilocibina e "Cogumelos Mágicos".
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Obrigado por ler até aqui!
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