Anemonações #11 — Areia & carne
Sobre inquietações em 'O homem da areia', de E.T.A. Hoffmann, e 'A Vegetariana', de Han Kang — e uma breve nota para não dizer que não falei das moscas
(Texto publicado em 30.06.2023, primeiro para os apoiadores da Ponto Nemo. Se quiser receber esses textos em primeira mão e apoiar a continuidade do projeto, considere apoiar via Substack ou Catarse)
Hoje, quero falar brevemente de duas narrativas. Vou unir O Homem da Areia, de E.T.A. Hoffman, e A vegetariana, de Han Kang, pela leitura do infamiliar [das Unheimliche], de Sigmund Freud.
O efeito de estranhamento daquilo que é familiar/cotidiano é recorrente em diversos textos de horror, ficção estranha, etc. — mas a definição do infamiliar é um tanto mais complexa do que a definição comum, de bonecos de cera ou autômatos que parecem ter vida.
É uma leitura que abre uma janela para as Anemonações #12, um texto que foi praticamente expelido depois de assistir ao filme A Mosca (1986). O motivo é que, apesar de usar um conceito que surge com os estudos psicanalíticos, não pretendo “psicologizar” uma narrativa fantástica, mas valorizar o que ela traz por si própria — tema que será discutido em profundidade na próxima edição.
O homem da areia
Há alguns meses, a editora Ubu lançou uma versão nova e ilustrada de O homem da areia, de E.T.A. Hoffman. Além do conto alemão, o livro traz o projeto artístico de Eduardo Berliner, tradução de José Feres Sabino e Marcella Marino M. Silva e um posfácio de Márcio Suzuki. Uso as fotos de divulgação da editora para ilustrar a edição.
Em suas páginas, acompanhamos o jovem Nathanael e o desenrolar de suas perturbações provenientes de uma figura assustadora: o homem da areia. Quando pequeno, ouvia as histórias de sua cuidadora. Segundo ela, o Homem da Areia é
um homem mau que aparece para as crianças que não querem ir para a cama e joga um punhado de areia nos olhos delas, com isso, seus olhos saltam para fora, sangrando, e ele então os coloca no saco e leva à lua crescente para alimentar suas criancinhas, que estão no ninho e têm bicos curvos, como os de coruja, para bicar os olhos das criancinhas travessas.
Assustado, Nathanael corre para o colo materno em busca de conforto. Sua mãe afirma que apenas uma mentira que os adultos contam. Mas é em vão. O personagem já impressionou o menino. Numa das noites, Nathanael foge da cama e se esconde no escritório do pai para observar os experimentos feitos com Coppelius, um homem sombrio que aparecia na casa pela noite.
Nessa ocasião, os experimentos dão errado: o cômodo é atingido por uma explosão e seu pai morre bem na sua frente. Chocado pelo falecimento do pai, Nathanael é descoberto por Coppelius tem uma visão assombrosa que envolve cegueira, as brasas explosivas e une para sempre a figura de Coppelius à do homem da areia.
Anos depois, Nathanael parte da cidade para continuar seus estudos e esbarra em um vendedor de barômetros e óculos chamado Coppola. Esse encontro fortalece suas memórias e revolve todos os traumas que o estudante pensava ter esquecido e superado… porque Coppola, o Homem da Areia, é, também, Coppelius. Ou será que não?
E.T.A. Hoffman permeia a trama com uma névoa de incerteza, entre a veracidade e a alucinação, a razão e a loucura. Parte dessa construção surge da habilidade de mesclar diversos tipos de narrativas, como a epistolar e as que se aproximam dos estudos de caso clínico, vistas no contato que teve com pacientes de um hospital psiquiátrico durante sua estadia em Bamberg.
Portanto, não é à toa que O homem da areia chama a atenção de Sigmund Freud, que usa o texto como base para destrinchar uma das várias sensações que suscitam angústia e horror: o infamiliar.
olhos, fogo & bonecas
Já traduzido como estranho, inquietante ou infamiliar, o Unheimliche é um termo alemão que visa descrever uma sensação específica relacionada àquilo que suscita angústia e horror. A dificuldade em encontrar um termo traduzido que contemple a ideia original surge de uma pluralidade de sentidos do termo seu oposto-complementar, o heimliche (ou familiar). Na língua nativa, o termo envolve não só aquilo presente na esfera do cotidiano, confiável e conhecido, mas também aquilo que está oculto, que é sigiloso.
Unheimliche então, não constrói uma oposição direta, mas uma variação da sensação, um “estranho familiar” — aquele incômodo gerado por apontar aquilo que é conhecido, mas que deveria permanecer oculto; a sensação estranha de não reconhecer aquilo que lhe é próximo. Por isso, a opção escolhida para seguir no texto é a mesma da tradução de Ernani Chaves, Pedro Heliodoro Tavares e Gilson Iannini (ed. Autêntica, 2019): o infamiliar.
Freud parte de Ernst Jentsch, psiquiatra alemão, para discorrer sobre o infamiliar. Em seu ensaio, escreve:
Ernst Jentsch destacou como caso exemplar a ‘dúvida quanto a se um ser aparentemente vivo está inanimado e, ao contrário, se um objeto sem vida seria animado’, invocando, nesse caso, figuras de cera, bonecas artificiais e autômatos.
No entanto, o psiquiatra austríaco destaca: muito mais do que a paixão e o envolvimento de Nathanael com Olímpia, relação entre o homem e a boneca artificial que parece viva, sempre destacada nos estudos sobre o assunto, o infamiliar surge na recorrência do homem da areia e, principalmente, na fixação dessa figura na dupla Coppelius/Coppola.
Freud lembra que a autômata foi elaborada por Spalanzani e seus olhos criados por Coppola. Em uma determinada cena, os dois homens brigam e disputam a boneca bem quando Nathanael se aproxima. Os olhos de Olímpia caem, ensanguentados, e Coppola foge com os globos. Observando essa cena, Nathanael entra em crise. Ele vê, novamente, a morte do pai, a perda dos olhos e a figura do homem da areia.
A descrição dessa cena é importante para evidenciar que “o sentimento de infamilar está diretamente colado à figura do Homem da Areia” e não, necessariamente, à “incerteza intelectual” de saber se os bonecos inanimados estão vivos.
Freud propõe essa mudança porque acredita que a sensação do infamiliar emerge de uma intrincada trama de fatores. Um deles é o medo e processo de castração infantil (processo bem explicado nesse vídeo) — por isso, a perda dos olhos, a morte do pai e o desejo em relação ao objeto inanimado são tão presentes em O homem da areia.
Além disso, é importante a presença do elemento dos duplos (ou doppelgängers): personagens que devem ser considerados os mesmos, já que passam por um processo de mescla. Vale ressaltar, muitas vezes essas figuras trocam conhecimentos; sentimentos; vivências para indicar uma alteração nos limites do domínio do Eu, seja pela duplicação, divisão ou confusão. Soma-se a isso a indicação de uma lei de retorno: sempre as mesmas pessoas, com traços repetidos, como fisionomia, nome, corpo, ações, símbolos, etc.
Outros pontos para a configuração desse infamiliar dizem respeito a uma crença ingênua no funcionamento de forças espirituais. Tenho a impressão de que esses dois pontos estão permeados por uma visão bastante cristã e eurocêntrica, dividindo as crenças entre a Certa e as Outras, mas podemos pensa-la relacionada com (1) aquele horror cósmico experimentado frente aos deuses, que deixaram de servir de consolo para a preservação da vida após a morte; (2) da ilusão de poder interferir na realidade a partir daquilo que pensamos; e (3) a sensação de inevitabilidade que surge quando organizamos uma série de coincidências em uma narrativa de fatídica — por exemplo, ver diversas vezes um mesmo número ao longo do dia e interpretá-lo como mensagem divina.
Para concluir, “com o animismo, a magia e a feitiçaria, a onipotência de pensamentos, a relação com a morte, a repetição involuntária e o complexo de castração”, escreve Freud, “já se esgotou razoavelmente a extensão dos fatores a partir dos quais o angustiante se torna infamiliar”. O último ponto a destacar e, talvez, o responsável por grande parte da sensação de infamiliar, é que a origem dessa angústia é “algo recalcado que retorna”.
Como explica Freud, “se isso é mesmo a natureza secreta do infamiliar, então entendemos por que o uso da língua permitiu que o familiar deslizasse para seu oposto, o infamiliar, uma vez que esse infamiliar nada tem de realmente de novo ou de estranho, mas é algo íntimo à vida anímica desde muito tempo e que foi afastado pelo processo de recalcamento”.
Sua conclusão, então, é de que o infamiliar surge em O homem da areia justamente pela construção de um mundo sob um solo arenoso, em que uma situação coloca o personagem principal frente a um trauma recalcado em relação à morte do pai e a recorrência da figura do Homem de Areia junto aos olhos e à castração. Não sabemos até onde o relato nos permite confiar em Nathanael, enquanto sujeito que diz a verdade, ou nas regras de nosso mundo, em que o estudante seria visto como um louco.
Importante ressaltar que adotar esse ponto de vista como o que “explica” a narrativa é o que digo quando falo da postura psicologizante que planifica a leitura. Ela condiciona toda a leitura de uma narrativa à explicação de um processo ou efeito psicológico.
No entanto, a análise do possível emprego do infamiliar por Hoffman abre portas para novas interpretações e amplifica as nuances de Nathanael. Até hoje, tempos depois da leitura, ainda encontro as frases desesperadas de Nathanael ecoando na minha cabeça:
Gira, boneca de pau, gira… gira, boneca de pau, gira
(…)
Gira, roda de fogo, gira… gira, roda de fogo, gira
A vegetariana
Outro livro que tira bastante proveito da reflexão sobre o infamiliar é A Vegetariana, romance escrito pela autora sul-coreana Han Kang. Ao contrário do que indica o título, a trama não é uma discussão profundida sobre vegetarianismo, mas conta a história de Yeonghye, uma mulher que passa a ter sonhos perturbadores e um desejo peculiar: transformar-se em árvore para escapar da violência da existência.
Cada capítulo do livro tem um personagem para guiar a narrativa. O primeiro, A vegetariana, é escrito em primeira pessoa pelo ponto de vista do marido de Yeonghye. A mancha mongólica e Árvores em chama são segundo e o terceiro capítulos que, respectivamente, acompanham a visão do cunhado e da irmã de Yeonghye, em terceira pessoa.
Os pontos de vista de cada um desses personagens oferece uma visão diferente da situação de Yeonghye e nos auxilia a ver a construção da sensação de infamiliar. Na primeira parte, a narração do marido nos coloca dentro do ambiente doméstico e cotidiano... até a rotina ser alterada pela irrupção dos sonhos perturbadores de Yeonghye.
São os pesadelos que trabalham o recalcado para Yeonghye. Aos poucos, trazem os elementos do trauma suprimido: são narrativas simbólicas de violência, morte e sangue — relacionados a um ritual alimentício, motivo pelo qual Yeonghye primeiramente associa ao consumo de carne.
Aqui, temos o vislumbre da castração e uma reflexão sobre o próprio corpo. Yeonghye aponta seu gosto pelos peitos que possui, já que eles não podem agredir ou servir como arma, diferente de suas unhas e dentes — elementos importantes no corpos de outros animais e do seu pai.
A percepção de um duplo também aparece com força. Em determinado momento, o marido pensa:
Por duas vezes ela disse que tudo aquilo foi por causa do sonho que tivera. Fiquei com a impressão de ter visto de relance seu rosto do outro lado da janela do vagão, em meio à profunda escuridão do túnel. E não a reconheci, como se a estivesse vendo pela primeira vez. Mas como só tinha meia hora para elaborar a desculpa pelo atraso e repassar o projeto que iria apresentar para um de nossos clientes, não tinha mais tempo para ficar pensando nela.
Em outro momento, Yeonghye conta de seu sonho:
Foi tudo tão real. A sensação de mastigar carne crua, o meu rosto, o brilho dos meus olhos. Parecia o de alguém que conheci pela primeira vez, mas com certeza era meu rosto. Quero dizer, pelo contrário, parecia tê-lo visto tantas vezes, mas não era meu rosto. Difícil explicar. Era familiar e desconhecido ao mesmo tempo… Essa sensação real e esquisita, terrivelmente estranha.
Perto da conclusão do capítulo, descobrimos a narrativa traumática. Em um incidente de infância, Yeonghye é atacada por um cachorro e a memória traumática e violenta de como seu pai lida com esse incidente — envolvendo um jantar e o consumo de carne — persegue a filha até os dias de hoje.
Como um ciclo, o capítulo termina em um trágico acidente que ocorre no âmbito familiar e somos levados ao segundo capítulo, guiado pelo cunhado de Yeonghye. O movimento nos leva para fora do espaço cotidiano do casal e passa para o da arte e dos fetiches e desejos reprimidos do cunhado.
O motivo pelo qual o capítulo é chamado de A Mancha Mongólica se deve à marca que Yeonghye carrega em sua nádega e desperta a curiosidade de seu cunhado. O mais interessante aqui me parece a mescla da qualidade humana de Yeonghye com a essência vegetal por meio da arte. Os sonhos do cunhado são eróticos, mas não só — revelam as qualidades arboríferas de Yeonghye, confunde fluídos de sexo com seiva verde; ao olhar para sua cunhada, tem uma recorrente visão de “uma mescla de flores, animais selvagens e humanos”.
Em seu projeto artístico, “vendo-a aceitar sem resistência todo aquele processo, [o cunhado] considerou-a um ser sagrado, nem humano nem animal, ou talvez um ser entre o vegetal, o animal e o humano, tudo ao mesmo tempo”.
O cunhado dá para a narrativa a mesma solidez incerta de Hoffman. Ao valorizar, de peito aberto, as percepções e pensamentos de Yeonghye, diz: “Ela é uma mulher normal. (...) O louco sou eu”. Além disso, é pelo olhar do cunhado que damos início ao processo de construção de um duplo: temos a constatação de uma semelhança física entre as duas.
O processo se completa no último capítulo, quando descobrimos experiências próximas de violência em seus casamentos e na família, além do mesmo padecimento por doenças depressivas. O ponto alto dessa união se dá quando em um compartilhamento das vivências e memórias vividas por Yeonghye em sua última crise.
Nesse momento, Yeonghye corre para a floresta com o intuito de completar seu processo de transformação — guiada por vozes, conforme o instinto ingênuo de creditar os deuses as ações mundanas do pensamento, descrito acima por Freud. Ao mesmo tempo, sua irmã recebe as memórias desse acontecimento por meio dos seus sonhos, como forma de mesclar esse Eu entre Yeonghye-Irmã.
A voz de Yeonghye, a floresta com a chuva negra e seu próprio rosto sangrando no espelho estilhaçavam as longas noites, como uma porcelana que se quebra em mil pedaços.
seios & árvores em chamas
Quando Freud disseca a insurgência do infamiliar diferencia os momentos em que ele ocorre na vida — que são raros — com aqueles que podem acontecer na ficção. Segundo o psicanalista, parte da justificativa surge do nosso abandono às questões mais “primitivas”, mas penso que, em uma contextualização que não pensa outras epistemologias e religiões como culturalmente inferiores, talvez seja melhor descrito como um desencantamento no processo de crescimento. Paramos de acreditar em algumas forças místicas e pensamos em processos mais concretos.
Além disso, o desenvolvimento estético de uma narrativa como essas nos deixa em suspensão: quais são as regras que regem esse mundo proposto pelos escritores? Será que são as mesmas do nosso mundo ou, realmente, as pessoas podem se tornar árvores? Muitas vezes, antes de encontrarmos uma resposta (isso se ela for possível), já caímos na artimanha da ficção.
Como o final de A vegetariana indica, já estamos acusando as árvores e exigindo delas a justificativa para toda a violência.
“Como são esses rostos? De quem são?”
“É sempre diferente. Às vezes é de alguém conhecido; outros, de alguém que nunca vi. Há vezes em que aparece um rosto todo ensanguentado, ou um cadáver em decomposição.” (…) “Achei que fosse por causa da carne”, ela continuou. “Achei que eu me livraria desses rostos se parasse de comer carne. Mas não foi assim.”
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