Anêmonas de Adônis #03 — monstros, deuses e filhos
Notas sobre criaturas portentosas, o mito de sucessão e a conclusão de ‘Teogonia’
Já faz bastante tempo desde que publiquei a primeira parte da leitura de Teogonia. Lá, falamos sobre quem era Hesíodo, o movimento de pan-helenismo em que estava inserido e discutimos a introdução da narrativa (o Proêmio com as musas).
Hoje, encerramos a leitura de Teogonia com uma edição mais expositiva sobre os acontecimentos que Hesíodo narra, mas vou me alongar em alguns assuntos — principalmente a tradução do termo monstro ao falar de determinadas criaturas e a ideia do mito de sucessão — sobre como os filhos destroem os pais, mas também como isso pode revelar um certo desencantamento/decaimento.
[116-232] Os primeiros deuses e os Titãs; primeiro estágio do mito de sucessão & Prole de Noite
Depois da introdução que devidamente agradece aos imortais, principalmente Musas e Zeus, começamos com o surgimento de tudo. O primeiro nascimento é de Abismo, praticamente autogerado. Abismo é também traduzido como Caos, mas, como o termo em grego está mais próximo de “um vazio sem forma, e não uma matéria indistinta”, Werner optou pelo primeiro termo.
Em seguida, surge a Terra, o Tártaro e Eros — “o mais belo entre os deuses imortais”. Depois do surgimento de Eros, temos a marcação das criações feitas de maneira quase “espontânea” e as que surgem quando “se deitam com amor”. Do Abismo, nascem Escuridão e Noite. Quando ambos se deitam “com amor”, surgem Éter e Dia. Com essas criações, temos o desejo-criador e a sucessão temporal.
Terra gerou sozinha o Céu e o Mar, as Ninfas e as Montanhas — que não são, necessariamente, montanhas, mas o alicerce das coisas, o firmamento. Ela gera tudo isso de si, “sem amor desejante”. Só depois, “deitou-se com Céu e pariu Oceano fundo-redemunho” e outros filhos.
Dos filhos que Terra e Céu colocam muitas divindades no mundo, “o mais novo nasceu, Crono curva-astúcia, o mais fero dos filhos; e odiou o viçoso pai” e aqui temos o começo do primeiro estágio do mito de sucessão.
Terra criou Céu para encobrir-se, mas Céu tinha ódio dos filhos e “a todos ocultava, não os deixava à luz subir”. Terra passou a odiá-lo. Como escrito, “ela dentro gemia, a portentosa Terra, constrita, e planejou nocivo estratagema”: fez uma foice e atiçou os filhos para uma vingança contra o progenitor. O único que aceitou a proposta foi Crono curva-astúcia. Terra “escondeu-o numa tocaia, colocou em suas mãos a foice serridêntea e instruiu-o em todo o ardil”.
A vingança de Crono é emascular o pai, ceifar as genitálias e jogá-las para longe — como é de se esperar, o próprio ato é responsável pela criação de diversas divindades. Do sangue que pinga na Terra, nascem as Erínias (comumente conhecidas pelo nome romano, as Fúrias). Curiosamente, são responsáveis por punir os mortais pelos crimes de sangue — e também são chamadas de as bondosas, um eufemismo para não atrair sua cólera.
Alguns outros nascimentos são citados, como o dos Gigantes (possíveis humanoides que viveram antes do roubo de Prometeu e são um assunto para depois), das Ninfas e das Mélias. Mas, além das Erínias, outro nascimento bastante interessante é Afrodite.
Se lembrarmos da postura de Hesíodo, sua teogonia procura unificar as narrativas regionais em uma estrutura única, padronizada. Aqui, temos uma explicação do surgimento de Afrodite que não só justifica a etimologia do nome, mas também mantém a origem estrangeira da deusa, surgida das genitálias jogadas ao mar, envolta em espuma — espumogênita porque, em grego, aphros significa espuma.
Afrodita sai do mar já promovida: “Eros acompanhou-a e Desejo a seguiu, belo, quando ela nasceu e dirigiu-se à tribo dos deuses. Tem esta honra desde o início e granjeou quinhão entre homens e deuses imortais, flertes de meninas, sorrisos e farsas, delicioso prazer, amor e afeto”.
(A quem interessar possa, o podcast Mitografias tem um episódio todo dedicado à deusa, está no fim da edição.)
Com um vislumbre do futuro, Céu disse que os Titãs haveriam de ser devidamente punidos pelo ataque e, daí, surgem as medonhas proles da Noite, como Sina e Perdição, mas também Morte, Sono, a tribo dos Sonhos, as Moiras — Fiandeira, Sorteadora e Inflexível —, Velhice, Briga, Farsa, Fome, Indignação (também conhecida por Nêmesis), entre muitos outros (por diversas vezes, a narrativa se assemelha a um compêndio de nomes e criações).
[233-452] Prole de Mar, incluindo as Nereidas; Prole de Oceano, incluindo as Oceânides; União de outros Titãs e o episódio de Estige; e de Hécate
Depois de catalogar as crias da Noite, temos quatro seções do texto dedicados aos chamados “monstros”, com destaque para as Nereidas, as Oceanides, Estige e Hécate. O trecho em si é ora cansativo, por listar cerca de cem divindades (e às vezes em lista corrida); ora confuso, por citar nascimentos e criações sem uma filiação clara.
Nos últimos meses, descobri a pesquisa de Camila Aline Zanon sobre a adoção do termo monstro na tradução de textos gregos. Como evidenciado na introdução do livro, escrita pelo tradutor Christian Werner, também orientador de Zanon,
o que caracteriza tais criaturas [os monstros] como uma coletividade é que elas não se assemelham nem aos deuses, nem aos homens, nem aos animais, mas são sempre seres estranhamente mistos, dotados — assim como sua ancestral primeira [a Terra] — de um inominável, enorme poder, algo que faz deles seres incapazes de serem conquistados pelos mortais, ou seja, “impossíveis”.
De maneira sucinta, Zanon notou que deuses, feras, bestas, grandes animais marinhos, objetos e outras criaturas eram descritos por termos iguais, como pelor ou teras, mas recebiam traduções diferentes — para divindades, eram traduzidos como prodigiosos, portentosos, enormes... para outras criaturas, monstro.
Achei interessante a pesquisa porque a conclusão que ela chega é que a opção pelo monstro aponta para uma classificação feita pelo observador e não pelos gregos. Nós, durante as leituras modernas, colocamos um juízo de valor na existência da criatura em questão e definimos o adjetivo correspondente — e abandonam o caráter de criatura, acontecimento ou objeto extraordinário e híbrido, meio terreno/meio divino.
Em busca de um substituto aceitável, Zanon evidencia um problema de transformação das línguas. As palavras que partem de alguns termos gregos se perderam ou se transformaram no meio do caminho. Teras, por exemplo, é o que está por trás de palavras como teratofilia ou teratologia, mas quase não aparece no português.
Já monstro, ainda que monstrum, em latim, a ideia de acontecimento prodigioso, extraordinário, que seria interpretado por um adivinho como uma mensagem dos deuses para os mortais, está desprovido da categoria divina. Por isso, sua proposta é de usar criaturas prodigiosas (ou apenas prodígios), retirando a concepção atual de quem são os monstros.
(Em um breve parênteses, fiquei refletindo. Será que a categoria do monstruoso não carrega, até hoje, a ideia da interpretação reestruturante da realidade, mesmo que sem o divino? O monstro moderno por excelência talvez seja a criatura de Frankenstein — e há ali uma fagulha forte do poder de criação. Na entrevista com T.P., falamos sobre corpos dissonantes e o monstruoso na literatura neoestranho. O monstro não acaba por abalar as categorias que definem a realidade mediana, que rejeitam algumas existências? Enfim, combustível para futuras reflexões...)
No que concerne à Teogonia de Hesíodo, como escreve Werner, “pela lógica da narrativa, as criaturas prodigiosas parecem ser uma espécie de tentativa mal-sucedida de continuar o desenvolvimento do cosmo (Clay 20003), já que, em sua maioria, não têm função alguma salvo contribuírem para a fama do herói que os derrotou”. A proposta funciona como se pudéssemos visualizar pares: dos mortais comuns, surgem heróis. Das criaturas prodigiosas, surgem deuses. Deixo uma lista de links para a pesquisa de Zanon no fim da edição.
Por fim, podemos retomar a substituição de uma visão matriarcal e plural para uma narrativa patriarcal e unificada. Em outra linha de interpretação, Werner sugere que “os monstros presentes no poema indicam, para o leitor do presente, que, por ora, a fertilidade feminina consubstanciada em Terra e que, na sua forma mais frenética e disforme, gerou tais criaturas — veja que nos versos 319 e 326 não fica claro quem é a mãe do respectivo monstro, o que parece acentuar o desregramento —, foi dominada e regrada por um elemento masculino”.
Héracles e Perseu, heróis famosos por seu combate aos ditos monstros e à destruição de elementos simbólicos outrora designados ao campo do feminino, aparecem aqui em recapitulações e sugestões de outras narrativas.
Ela gerou outro ser portentoso, impossível, nem parecido com homens mortais nem com deuses imortais, em cava gruta, a divina Équidna juízo-forte, metade moça olhar-luzente, bela-face, metade serpente portentosa, terrível e grande, dardejante come-cru sobre os confins da numinosa terra. — Hesíodo, Teogonia
[453-880] Nascimento de Zeus, suas provações e o segundo estágio do mito de sucessão
Ainda que Zeus apareça e seja mencionado ao longo de todo o poema, é nessa segunda metade em que temos a união de Reia com Crono, o nascimento e a ascensão de Zeus como deus soberano.
Se a astúcia de Terra castra Céu, a de Reia salva Zeus de ser devorado por Crono, que engoliu todas as suas proles na tentativa de escapar do destino. Hesíodo diz que
a esses [seus filhos] engolia o grande Crono, quando cada um se dirigisse do sacro ventre aos joelhos da mãe, pensando isso para nenhum ilustre celeste, um outro entre os imortais, obter a honraria real. Pois escutara de Terra e do estrelado Céu que lhe estava destinado ser subjugado por seu filho.
Reia, aflita, pede ajuda a Terra e Céu quando vai parir Zeus, e planeja um “ardil para, sem ser notada, parir o caro filho e fazer Crono pagar às erínias do pai e dos filhos que ele engolia”.
Tão logo Crono engole a pedra, pensando ser Zeus, o caçula passa a adquirir características das duas forças regentes na Grécia: Astúcia e Força. Se a primeira permite seu nascimento, tão logo vem ao mundo, recebe de presentes dos Ciclopes raios e trovões, armas que auxiliam na sua demonstração de força e também estabelecem o céu como seu domínio. O desenvolvimento da sua astúcia surge no episódio seguinte, quando resolve seu conflito com Prometeu, filho de Jápeto.
Como conta a famosa história, Prometeu engana Zeus num episódio em que as carnes de um boi abatidos são separadas. Dividindo as porções em duas pilhas: em uma, esconde as carnes saborosas entre entranhas e no estômago de um boi; na outra, deixa ossos escondido nos pratos com gorduras brancas e mais vistosas.
Zeus, ludibriado, escolhe a porção dos ossos (por isso, os homens deixam ossos nos altares, em tributo aos deuses). Mas ainda que a escolha tenha sido astuciosa, porque a carne evidencia a necessidade da alimentação e a perenidade da vida (além da condição de escravos do estômago, discutidas na edição anterior), Zeus se enfurece. Não dá aos homens o poder do fogo, e os obriga a comer carne crua.
Prometeu, insatisfeito com essa escolha, rouba o fogo e dá aos homens: e ambos são prontamente punidos. O filho de Jápeto, acorrentado ao Cáucaso, tinha seu fígado devorado todos os dias por uma águia. Aos homens... a mulher. Aqui a misoginia de Hesíodo fica evidente. As mulheres foram criadas como castigo: assim como o fogo, elas precisariam ser alimentadas com o fruto do trabalho do homem, quase como um peso. A condição é fatal. Os que não casarem, morrem sozinhos, sem amparo e sem herdeiro. Os que casam, se não encontram a mulher ideal, vivem com a mente e o coração incessantemente irritados — quase uma versão arcaica do stand-up com as piadas de “hã, mulheres... sogras...”.
Com a astúcia provada, Zeus parte para a demonstração de força no episódio conhecido como Titanomaquia: a batalha com os Titãs e a separação da geração de Zeus da de Cronos. Além de liberar os Cem-Braços, criaturas que auxiliam na derrota dos Titãs e são responsáveis pela vigília dos castigos, Zeus aparece como organizador de todos os espaços. Não há um lugar que escapa de sua ira.
O trecho é bastante forte e, apesar de longo, destaquei abaixo:
Zeus não mais conteve seu ímpeto, mas dele agora de pronto o peito se encheu de ímpeto, e toda a força mostrou. Ao mesmo tempo, do céu e do Olimpo relampejando, progrediu sem parar, e os raios em profusão, com trovão e relâmpago, voavam de sua mão robusta, revolvendo a sagrada chama, em massa. Em volta, ribombava a terra traz-víveres, queimando, e, no entorno, alto chiava mato incontável. Todo o solo fervia, as correntes do Oceano e o mar ruidoso; a eles rodeava o bafo quente, aos terrestres Titãs, e chama alcançou a bruma divina, indizível, e aos olhos deles, embora altivos, cegou a luz a luz cintilante do raio e do relâmpago. Prodigiosa queimada ocupou o abismo; parecia, em face olhando-se com olhos e com ouvidos ouvindo-se o rumor, assim como quando Terra e o amplo Céu acima se reuniram: tal ressoo, enorme, subiu, ela pressionada a ele, do alto, pressionando — tamanho baque quando os deuses se chocaram na briga. Junto, ventos engrossavam o tremor, a poeira, trovão, raio e relâmpago em fogo, setas do grande Zeus, e levaram grito e assuada ao meio de ambas as partes: veio imenso clangor da briga aterrorizante, e o feito do poder se mostrou.
Como punição, todos os Titãs são levados para o Tártaro, nos confins do mundo. Como escrito, “lá da terra escura, do Tártaro brumoso, do mar ruidoso e do céu estrelado as raízes e limites, de tudo, em ordem estão, aflitivos, bolorentos, aos quais até os deuses odeiam”.
Entre as paisagens odiosas, próximas da morada de Hades e Perséfone, de Sono e Morte, há uma grande fenda, que você não atinge o fim mesmo depois de um ano caindo, e com rajadas de vento que te jogam de um lado para o outro. É onde Atlas segura o céu e onde estão os portões em que Dia e Noite se cruzam.
Além disso, o Tártaro adquire um estatuto pleno e passa a ser descrito também como ser. Terra e ele geram um filho, Tifeu, último inimigo verdadeiro de Zeus que serve para consagrá-lo. Tifeu é forte, com várias cabeças com olhos que soltam fogo, e astuto, já que elas também produzem vários sons e a metamorfose é uma característica da astúcia, Tifeu é um adversário facilmente sobrepujado. Zeus reina soberano.
Além disso, é a conclusão desse combate que faz com que a fertilidade monstruosa da Terra, pensando nos termos descritos acima, seja esterilizada pelo poder patriarcal de Zeus, pois gera os metais manipulados pelos artesãos machos.
[881-929 (?)] Nascimento de Zeus, suas provações e o segundo estágio do mito de sucessão
Em um processo de incorporação de diversas características em um deus único e soberano, Zeus começa a absorver atributos a partir dos seus casamentos. O processo começa por sua união com a Astúcia.
Zeus, rei dos deuses, fez de Astúcia a primeira esposa, a mais inteligente entre os deuses e homens mortais. Mas quando ela iria à deusa, Atena olhos-de-coruja, parir, nisso, com um truque, ele enganou seu juízo e com contos solertes depositou-a em seu ventre graças ao plano de Terra e do estrelado Céu: assim lhe aconselharam, para honraria real outro dos deuses sempiternos, salvo Zeus, não ter.
Zeus não é emasculado, como Céu, tampouco um devorador de filhos, como Crono, mas um homem completo que absorveu a essência feminina. A filha produzida por ele, além de não ser um filho homem que ameaça seu legado, é também virgem — incapaz de gerar ameaças ao status quo. Mesmo Hera, gerando um filho como Zeus gera Atena, cria Hefesto, que não é um adversário que ameaça sua posição.
Entre as diversas proles e uniões descritas no que supõe-se ser a parte final do poema, vemos um foco maior recair para a união entre deusas e mortais, sugerindo que, como o mito de sucessão está estanque no Olimpo, é o momento dos filhos humanos serem mais fortes que seus pais: é o momento em que a história abre espaço aos heróis.
A primeira interpretação que surge nesse espaço é a da conclusão do mito de sucessão, dos filhos superando mais. Mas gosto de ver aqui também uma outra possibilidade: o decaimento de uma era. É quando nós, humanos, nos tornamos ainda mais afastados do divino.
Se antes o espaço era habitado por deuses, homens & outras criaturas portentosas em igualdade, agora os imortais estão reclusos em seu espaço. O espaço terreno decaiu, perdemos contato com o divino e o fantástico. Aos poucos, heróis destruirão os monstros que restarem sob a terra e mais uma era de decaimento surgirá, afastando-nos cada vez mais do espaço encantado/sagrado e fortalecendo nossa condição terrena.
Onde parece haver atos heróicos, visualizo enfraquecimentos. Cada vez menos criaturas portentosos, cada vez mais condenados a sermos o verme que rói as carnes.
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