Anemonações #13 — Como desejar sem fé?
Os limites do humano, a crença no futuro e o desejo em 'Piquenique na Estrada', dos Irmãos Strugátski, e 'Stalker', de Andrei Tarkovsky
(Texto publicado em 25.08.2023, primeiro para os apoiadores da Ponto Nemo. O texto ficará aberto no dia 17.11.2023. Se quiser receber esses textos em primeira mão e apoiar a continuidade do projeto, considere apoiar via Substack ou Catarse)
Há algum tempo, tento atualizar textos que escrevi para a Escotilha e que ainda me parecem relevantes. Como nem sempre há uma sintonia entre o que rolava lá e o que escrevo aqui, com tantos anos de distância, é uma tarefa um pouco complicada.
No entanto, revi Stalker esses dias. O longa-metragem foi lançado em 1979, dirigido por Andrei Tarkovsky, e é baseado em Piquenique na Estrada, romance escrito pelos irmãos Arkádi e Boris Strugátski.
Como quis escrever sobre eles, acabei tendo a oportunidade perfeita para revisitar dois textos: Relações possíveis entre o desastre de Tchernóbil e a ficção científica e Os limites da compreensão humana em ‘Piquenique na Estrada’ — e acrescentar a isso minha visão sobre o filme, fé, esperança e assombrologia.
Se quiser assistir antes de continuar a leitura, o filme está disponível no streaming À la carte e gratuitamente no YouTube, no canal de filmes russos Mosfilm, mas com legendas em inglês ou em espanhol (e com uma imprecisão, mas falaremos disso).
Ficção Científica & Realidade
Uma das coisas que me marcaram quando li Vozes de Tchernóbil, romance escrito por Svetlana Aleksiévitch sobre as testemunhas da catástrofe nuclear citada no título, foi a importância das narrativas literárias na vida das pessoas — e como essa relação entre vida e arte ficou abalada depois da tragédia.
Vozes de Tchernóbil, entre outras coisas, apresenta uma catástrofe temporal & cosmológica. Em seu diário de escrita, Svetlana Aleksiévitch afirma não saber se ela é uma testemunha do passado ou do futuro. Aqui, “o tempo mordeu o próprio rabo, o início e o fim se tocaram”. Em Tchernóbil, a tragédia não tem propósito e não aponta rumos para um futuro. Tampouco as experiências passadas oferecem auxílio nos novos rumos. “Rompeu-se o fio do tempo…”, ela escreve.
O confronto com essa realidade “monstruosa” revela uma dimensão humana impotente, instantânea. Questionamos nossa capacidade de compreensão ao comparar nossas vidas com a perspectiva da tragédia:
Quando falamos do passado e futuro, imiscuímos nessas palavras a nossa concepção de tempo, mas Tchernóbil é antes de tudo uma catástrofe do tempo. Os radionuclídeos espalhados sobre a nossa terra viverão cinquenta, cem, 200 mil anos. Ou mais. Do ponto de vista da vida humana, são eternos. Então, o que somos capazes de entender?
(…)
Nos últimos cem anos, o homem passou a viver mais, mas o seu tempo de vida continua ser minúsculo e insignificante se comparado à vida dos radionuclídeos instalados na nossa terra. Muitos deles viverão mil anos. Impossível atingirmos tamanha dimensão! Diante disso, experimenta-se uma nova sensação de tempo.
…e, entre essas crises, surgem relatos que apontam a ineficácia da literatura realista como representativa daquela realidade, principalmente quando contraposta com a ficção científica.
Diversos personagens citam uma dificuldade em encarar a crise instaurada porque os romances de autores clássicos, que eles sabiam de cor e consultavam para se guiar na vida, não fazem mais sentido. A forma de escrever a realidade até então foi confrontada com um acontecimento de nova ordem… mas, pelo bem e pelo mal, a ficção científica supriu parte da angústia.
É bastante conhecida a reflexão de Ursula K. Le Guin no começo de A Mão Esquerda da Escuridão, quando a escritora aponta que “espera-se que o escritor de ficção científica tome uma tendência ou fenômeno do presente, purifique-o e intensifique-o para efeito dramático e estenda-o ao futuro. ‘Se isto continuar, eis o que acontecerá’”. No entanto, Ursula afirma que o que a ficção científica faz é descrever e analisar o presente, intensificando questões atuais.
Outros dois escritores do campo, Robert Heinlein e John Campbell, estão em sintonia com Le Guin. O primeiro afirma que a ficção científica “é o único meio ficcional capaz de interpretar a mudança, a precipitação impetuosa da vida moderna”; Campbell aponta que, diferentemente de outros gêneros narrativos, “ela [a ficção científica] assume que a mudança é a ordem natural das coisas, que há objetivos à frente maiores do que aqueles que conhecemos” — ambos os pensamentos destacados em um episódio do podcast O Estado da Arte.
O que nos interessa aqui é a faceta menos otimista dessas narrativas. Quando Mary Shelley cria as bases da ficção científica moderna com Frankenstein (1818), evidencia também a questão: o que vamos fazer com o conhecimento científico que detemos? Quais mudanças ele, afinal de contas, trará e quais serão suas consequências?
Ao longo dos depoimentos transcritos em Vozes de Tchernóbil, é possível construir uma paisagem de descrença quando o futuro bem-estar alcançado pelo progresso se revela inalcançável. Tchernóbil deveria ser o átomo da paz, diferente daquele usado para a bomba de Hiroshima. A fé no conhecimento científico, presente nos dois lados da Guerra Fria, se despedaça em uma paisagem espectral.
Em um dos depoimentos do livro, a professora e filóloga Nina Konstantínovna diz que o que preocupa seus alunos “é o que acontecerá depois da bomba atômica. Deixaram de amar os clássicos, eu recito Púchkin de cor para eles e vejo seus olhares frios, ausentes. Há um vazio… O mundo em torno deles é outro. Leem ficção científica, é isso que os atrai, ver como o homem se afasta da Terra, como opera com o tempo cósmico, como vive em mundos distintos”.
‘Piquenique na Estrada’
Uma das obras citadas tanto por uma das testemunhas como por Svetlana Aleksiévitch é Piquenique na Estrada (1971), de Arkádi e Boris Strugátsky (ed. Aleph, traduzido por Tatiana Larkina), lançado 15 anos antes do desastre na usina. No romance, alienígenas pousam na Terra por um breve período de tempo — sem estabelecer contato com os humanos — e partem.
No entanto, nos locais que tocaram, surgem diversas anomalias físicas e entulhos extraterrestres, objetos com funções e funcionamentos desconhecidos. Nós, extremamente afetados pela passagem, ficamos sem entender nada. Essas áreas perturbadas são chamadas de Zonas.
É essa a palavra que Svetlana Aleksiévitch usa para se referir aos lugares afetados pela radiação de Tchernóbil quando escreve que “a zona é um mundo à parte. Outro mundo em meio ao restante da Terra. Primeiro foi inventada pelos escritores de ficção científica, mas a literatura cedeu passo à realidade. Agora já não podemos mais crer, como os heróis de Tchekhov, que dentro de cem anos o ser humano será maravilhoso. Que a vida será maravilhosa! Esse futuro nós já perdemos”.
Os efeitos são bastante similares. No livro, os filhos das pessoas que se aventuram nas zonas nascem com deformidades. Lá, a natureza e a física obedecem a uma lógica diferente. Diversos caçadores morrem esmagados por uma zona de gravidade concentrada, chamada popularmente de careca de mosquito; ou tem seu corpo trucidado por um gás denso, o caldo de bruxa.
As Zonas são perigosas e não funcionam de acordo com a percepção humana.
Por isso, uma rede de tráfico do material das Zonas para os laboratórios do Instituto Internacional de Cultura Extraterrestre (e para outros criminosos do submundo) se estabelece: há, entre os pesquisadores, uma demanda de estudos daquela sucata em busca de compreensão e conhecimento. Os que se arriscam nas travessias e vendem os objetos aos cientistas recebem o nome de stalkers e procuram as tralhas em pares ou trios, devido ao perigo da tarefa.
Apesar dos utensílios trazidos serem úteis e adaptáveis para o cotidiano humano, e do constante estudo científico, nada daquilo torna compreensível. Por exemplo: um dos objetos que os stalkers trazem são pedras negras, gotas que compactam a matéria escura do espaço e quebram as regras físicas da trajetória da luz, mas que são usadas como bijuterias. Outro objeto energizado é adaptado para o uso em automóveis e, apesar do conhecimento científico conseguir replicá-lo, não é possível entendê-lo.
É o que leva um dos personagens a dizer que, muito provavelmente, estamos martelando pregos com microscópios:
Eu diria o seguinte: existem objetos para os quais achamos uma aplicação. Nós os usamos, embora, quase com certeza, não do jeito como os alienígenas os usavam. Estou convicto de que, na maioria dos casos, batemos pregos com microscópio. (…) Conhecemos e explicamos, mais ou menos, as habilidades de cada objeto benéfico. E, no momento, o que trava tudo é nosso atraso tecnológico, mas dentro de cinquenta anos aprenderemos a reproduzir os microscópios deles e então poderemos martelar à vontade com eles, desculpe a metáfora. Mas as coisas se complicam com o outro grupo de objetos. E se complicam precisamente porque não achamos nenhuma aplicação para eles, e, além disso, suas características e manifestações permanecem fora da nossa compreensão, pelo menos dentro de nossa atual compreensão do mundo.
Esse trecho faz parte de uma conversa filosófica entre dois cientistas que discutem o propósito dos alienígenas em sua invasão/visita. Um deles, Richard Noonan, se mostra mais otimista, pensa que o contato ocorreu como um aviso, um incentivo para o desenvolvimento das capacidades humanas. Seu colega, Valentin Pillman, é um tanto mais cético.
A hipótese de Pillman sobre o Dia da Invasão é o que dá nome ao romance. Ele pede para Noonan imaginar uma viagem de família, cortando o país pelas rodovias. Em um determinado momento, cansado de ver a paisagem passar, eles param em um local refrescante para fazer um piquenique.
Eles estacionam, estendem a toalha na grama. Colocam comida, fumam, brincam, vão ao banheiro, fazem uma revisão no carro, recolhem as coisas e vão embora. Provavelmente, deixaram algumas bitucas de cigarro, guardanapos sujos, manchas de óleo, talvez alguma criança tenha até esquecido uma boneca, daquelas que fala e anda sozinha… quem sabe?
O lixo esquecido fica ali para ser descoberto pelas formigas e abelhas, entre a grama amassada e deformada. Você não conta aos insetos que passou, que esteve por ali e o que significa cada objeto. Talvez, nem ao menos note a presença deles. Assim foi conosco e com a visita de seres “mais avançados”.
Noonan discorda: fala que é impossível passarmos despercebidos porque somos vida inteligente. Mas Pillman diverge, apontando a imprecisão na definição e como, a partir de certo limiar, se torna uma questão irrelevante. Os alienígenas podem ter outras estruturas mentais, corporais e consciências. A comunicação se torna impossível.
É o caso, por exemplo, dos filhos dos stalkers ou dos cadáveres que voltam a viver. Não são simples deformações, mas hibridizações. São humanos, sim, mas algo dentro deles faz com que eles estejam sintonizados com a Zona e os outros seres, pensem de forma mais próxima deles (e, quando isso acontece, é impossível compreendê-los).
Para Pillman, os humanos simplesmente não despertaram nenhum interesse.
Quando percebe a retirada do pedestal e nota que a suposta imensidão da racionalidade e cognição humana foi posta em xeque, Noonan diz a Pillman: “– Como o senhor consegue fazer tudo parecer… tão humilhante?”. Se não estivermos no centro do mundo, o que nos sobra?
Stalker
Quando Andrei Tarkovsky faz sua adaptação do romance, intensifica essa questão existencial. Em Stalker (1979), ao invés de acompanharmos a dura realidade dos catadores de lixo extraterrestre, temos uma narrativa que fala sobre fé, desejo e futuro.
No filme, acompanhamos três homens sem nome: o guia, que dá nome ao filme, leva um Escritor e um Professor para dentro da Zona, rumo ao Quarto: um cômodo que escuta e realiza seus desejos. Para o Stalker, o destino é conhecido, mas a Zona é fluída. É preciso ficar de olho: nem sempre o caminho mais perto é o caminho mais curto, perigos se escondem em cada trilha.
Ali dentro, não há apetrechos ou anomalias, mas a existência de uma área mística que parece pulsar & pensar, como o planeta de Solaris ou a Área X de Aniquilação. É a isso que me referia quando falei da imprecisão da legenda. Em determinado momento, o Escritor pergunta se os soldados vão persegui-los para dentro da Zona. O guia fala que não, porque eles morrem de medo DELA como do fogo. O Escritor, confuso, pergunta DE QUEM? e é respondido pelo silêncio.
A legenda, no entanto, traduz o diálogo com os termos DAQUILO e DO QUE?. É uma mudança de sentido Na fala em russo, a Zona é compreendida como um ser vivo, consciente; não como um objeto ou lugar, desprovido de subjetividade. São dois pontos de vista opostos.
Quando correm as histórias de que um quarto realizava desejos, muitas pessoas correm para a Zona — e, em sua maioria, nunca mais voltaram. Por isso, a região é protegida por muros e guardas. Stalkers são os responsáveis por furar as guardas e guiar as pessoas; são os que conhecem os segredos e os caprichos, como pastores guiando pessoas em sua fé porque conseguem ouvir as palavras sagradas.
No começo do filme, quando os três se encontram pela primeira vez, ocorre um diálogo que parece sintetizar os temas que serão apresentados pelo filme. Como algumas discussões de romances do Dostoiévski, em que personagens criticam ou refletem sobre o pensamento racional e matemático concentrado, o Escritor critica a busca pela verdade empregada pela ciência, como se fosse possível transformar a realidade em equações matemáticas.
Eu também procuro a verdade, o Escritor diz ao Professor, mas ela é instável. Fugidia. Quando pensa que está chegando perto, algo está sendo feito. Conta sobre um vaso, exposto em um museu e admirado por diversas pessoas, mas que antigamente era usado como lixeira — no entanto, ainda depois, o vaso é dado como falso, implantado no museu como uma brincadeira.
No fluxo da reflexão, o Escritor afirma que sua busca por inspiração é uma mentira. “Como eu posso saber que realmente não quero o que quero? Ou diremos que realmente não quero o que não quero?”, ele se pergunta. As coisas, quando nomeadas, derretem; perdem seu significado “como uma água-viva no sol”.
“Minha consciência deseja a vitória do vegetarianismo em todo o mundo”, o Escritor afirma, “e meu subconsciente anseia por um pedaço de carne suculenta. Então, o que eu quero?”. Penso que é aqui se encontra um dos cernes importantes do filme: a distância entre o espiritual e o concreto; o desejo físico e o metafísico.
A história de outro stalker ronda os personagens. Todos ouviram falar do Porco-Espinho, o guia que fez um pedido ao Quarto. Quando voltou para casa, descobriu que estava podre de rico e se enforcou. O que descobrimos adiante é que Porco-Espinho entrou na Zona com o irmão que, durante o trajeto, morreu. A hipótese que surge é que o guia foi até o Quarto desejando que seu irmão retornasse, mas teve outro desejo realizado — porque não são desejos manifestas que se realizam, mas aqueles profundos, inconscientes.
Temeroso pelos rumos da humanidade, o Professor defende a destruição do Quarto antes que ditadores, mafiosos e outros tiranos descubram seus caminhos até ali. Mas o Escritor rebate seu pensamento. Não se pode ter um amor ou um ódio que alcança toda a humanidade, ele diz. Você pode desejar dinheiro, amor, vingança. Mas poder sobre o mundo, uma sociedade justa, o reino de Deus na Terra... essas coisas não são desejos. São ideologias, conceitos, ações. Mas desejos íntimos e instintivos? Não.
O Stalker também é contra a destruição do quarto, mas por outro motivo: fé. É o que se revela depois de um confronto violento entre os três personagens. O guia não explora o desespero dos outros como um charlatão, mas quer compartilhar esperança. No conflito entre o íntimo da alma e o mundo concreto, o que a Zona pode oferecer é a completude.
Proibidos de entrar no Quarto e ter desejos realizados, a fé é tudo que os stalkers têm. Mas existe fé nos dias de hoje? As pessoas ainda acreditam? Em determinado momento, o Stalker diz que “o futuro era uma continuação do presente. As coisas se descortinavam no horizonte, mas agora o futuro é uma parte do presente”.
Uma crise no tempo, como em Svetlana. Em casa, o Stalker chora com sua esposa. Deitado, em um estado de vulnerabilidade, ele sente pena da humanidade. Diz que a capacidade de ter fé atrofiou por falta de uso. Ninguém mais precisa do Quarto porque ninguém mais acredita no quarto.
É possível desejar sem ter fé?
Quando Mark Fisher escreve sobre a assombrologia e Realismo Capitalista, aponta para a sensação de um mundo estagnado, sem perspectiva, mas assombrado pelas promessas de um futuro perdido e por um passado-sempre-presente. A temporalidade dá um nó, a fé esvazia.
Em Vozes de Tchernóbil, Piotr, um psicólogo, afirma: “Não reconheço este mundo. Tudo nele mudou. Até o mal é outro. O passado não me protege. Não me tranquiliza. Não dá respostas. Antes sempre dava, agora não mais. O futuro me arruína, não o passado”.
Outra fala, da professora Lília Kuzmenkova, também me parece bastante significativa. Ela fala que “o mundo mudou, já não parece mais eterno, como até pouco tempo atrás. A terra se tornou pequena. Nós fomos privados da imortalidade, foi isso que aconteceu conosco. Perdemos o sentido da eternidade. Pela televisão, eu vejo como as pessoas matam, todos os dias. Atiram. Hoje são pessoas sem imortalidade que matam”.
Privados do futuro e da imortalidade, como saber o desejo mais íntimo da alma? Como buscar a completude? É possível ter fé?
Antes de tudo, em Tchernóbil, se recorda a vida ‘depois de tudo’: objetos sem o homem, paisagem sem o homem. Estradas para lugar nenhum cabos para parte alguma. Você se pergunta o que é isso: passado ou futuro?
Algumas vezes, parece que estou escrevendo o futuro… — Svetlana Aleksiévitch, Vozes de Tchernóbil
Obrigado por ler e apoiar!
Não deixe de conferir as últimas edições da Ponto Nemo ou acessar o Arquivo Interativo.
Se você apoiou no último mês, talvez tenha perdido: