Temporada 02 — Episódio 05: Sonhos & Estrelas
Sobre um psicanalista austríaco e aqueles sonhos que contamos no divã
Sigmund Freud é um dos intelectuais mais populares até os dias de hoje. Seu rosto compõe diversas estampas; seu nome é chave para diversos trocadilhos; os termos que cunhou e as ideias que debateu são disseminadas aos quatro ventos. Não é difícil ouvir sobre complexo de Édipo, a força do inconsciente ou da relação entre id, ego e superego. A dualidade de eros e tânatos, de desejo e morte, aparece em diversas roupagens — como Desejo, Desespero e Morte, em Sandman — assim como a discussão sobre a centralidade da figura fálica na nossa sociedade.
No campo dos sonhos não foi diferente. Freud, neurologista e psiquiatra austríaco nascido em 1856, voltou os holofotes para uma área designada ao espaço do misticismo barato ou do paganismo. Até porque ainda faltava muito tempo até pensadores europeus voltarem o olhar para pensamentos que nunca desvalorizaram o espaço onírico, como o de diversas culturas indígenas. No entanto, com A interpretação dos sonhos (1900), Freud pavimentou um caminho para se pensar os sonhos que é percorrido até hoje.
Por exemplo, como vimos na edição de Dormir & Sonhar, é parafraseando Freud que Sidarta Ribeiro, pelo viés da neurociência, nos explica sobre a reverberação das memórias enquanto processo contínuo: “Os sonhos são como as estrelas: estão sempre lá, mas só podemos vê-los durante a noite”.
No entanto, antes de começarmos, dois anúncios: Em primeiro lugar, abaixei os valores de apoio à Ponto Nemo e ao Estantário. Quando fiz o primeiro cálculo, acrescentei a produção de livros anuais e outros projetos mais complexos. Mas como tenho aumentado minha dedicação ao espaço da newsletter, achei melhor reformular.
Então, se você é um assinante antigo, foi promovido para a faixa de apoio VIP (o que significa que vai participar das votações e receber as produções mais complexas, como o livro da Primeira Temporada). E, se você quiser apenas acessar as colunas exclusivas, agora tem um valor mais em conta.
Para conferir, é só checar a página do Financiamento Coletivo no Catarse e garantir a continuidade da Ponto Nemo. Você também pode se inscrever pelo próprio Substack, clicando aqui:
Se você gosta da newsletter, também pode contribuir de forma gratuita. É só compartilhar com alguém que pode curtir:
Por fim, o segundo anúncio é de um evento que vai acontecer no começo de novembro: O Texto & o Tempo. É um final de semana sobre newsletters, um evento online com escritores e leitores. Vai ter muita gente legal para conversar e muitas oficinas para fazer, então não deixe de conferir a programação do evento e garantir o ingresso — há vagas sociais disponíveis e o evento não será gravado.
T02 E05: Sonhos & Estrelas
Sigmund Freud nasceu em 1856 em um território que, hoje, pertence à República Tcheca, mas na época fazia parte do Império Austríaco. Nascido numa família judia, Freud foi para Viena ainda pequeno. Como nos explica Christian Dunker, em Freud e Breuer: o início da psicanálise, Viena era uma cidade cosmopolita e projetada para ser moderna, racional e ter seus espaços públicos ocupados.
Lá, Freud entra na Universidade de Viena e se dedica completamente aos estudos da medicina. Ele viveu um momento de grandes renovações e descobertas. Era a época, por exemplo, da descoberta do neurônio e dos estudos sobre o funcionamento de elementos como os axônios.
Movido pela época, o pesquisador austríaco se dedicou aos estudos de neurologia. Focado em sua carreira científica, Freud dissecava o sistema nervoso de enguias e fazia parte dos frequentadores do laboratório do fisiólogo Ernst Wilhelm von Brücke.
No entanto, já sentia as dificuldades de ser um judeu na Europa. Além de observar as constantes humilhações sofridas pelo pai desde a infância, quando adulto, Freud tem uma conversa franca com um dos diretores da Universidade e ali entende que não fará parte do corpo docente, já que os professores são indicados pelo imperador e ele, como judeu, não teria muitas chances de ser escolhido.
Seguindo os conselhos do colega e procurando um outro ganha-pão, Freud se encontra com um colega chamado Josef Breuer, médico e fisiologista austríaco. Breuer estudava uma doença misteriosa para a época, um caso que se tornaria emblemático anos depois: o caso de Bertha Pappenheim, popularmente conhecida como Anna O.
Breuer estudava as relações de uma patologia que misturava fatores fisiológicos com os psicológicos. Freud, fascinado pelo caso, se juntos a Breuer na investigação da paciente e, juntos, passaram a compreender algumas coisas. Um dos elementos que chamou a atenção era de que a doença podia ser simulada por meio da hipnose.
Então, pensaram eles, se a doença pode ser manipulada por meio da hipnose; se sintomas somem e voltam de acordo com o nível de consciência do sujeito; se a linguagem e as relações pessoais influenciam na questão… é um caso que exige a formulação de um novo tratamento. Assim, Breuer e Freud retratam sua experiência na publicação chamada Estudo sobre a histeria (1895) e formulam os fundamentos do que passaria a ser conhecido como psicanálise.
Apesar disso, a obra que marcaria a inauguração do campo de forma completa seria A interpretação dos sonhos. Publicado no fim de 1899 com a data de 1900, o livro discute os problemas e as possibilidades da interpretação do sonho, área desvalorizada pela perda de contato com as partes subjetivas do indivíduo devido à ciência racional e pelo misticismo que permeava a temática.
Preocupado em apresentar o espaço onírico como via de acesso às questões inconscientes, Freud retoma e critica o papel dos sonhos ao longo da história da humanidade. Em diálogo com o que vimos na edição passada, Freud abre a publicação discutindo o papel do sonho na Antiguidade clássica, mas logo esvazia as interpretações do misticismo herdado e valoriza a conexão do sonhar com o cotidiano, as vontades, desejos, traumas, etc.
Ali, escreve que os antigos tinham certeza de que
os sonhos estavam relacionados com o mundo dos seres sobre-humanos, nos quais acreditavam, e que constituíam revelações de deuses e demônios. Não havia dúvida, além disso, de que, para aquele que sonhava, os sonhos tinham uma finalidade importante, que era, via de regra, predizer o futuro. A extraordinária variedade no conteúdo dos sonhos e na impressão que produziam dificultava, todavia, ter deles qualquer visão uniforme.
O que temos aqui, segundo Freud, é a percepção do sonho como algo introduzido — total ou parcialmente — por uma instância divina, não como um produto da mente sonhadora. Gosto muito de uma classificação de Macrobius e Artemidorus, citada por Gruppe e retomada tanto por Freud quanto por Sidarta Ribeiro, no Oráculo da noite.
O sistema que Artemidorus e Macrobius elaboraram divide o sonho em duas classes e foi uma teoria que permaneceu em voga durante muito tempo. Nesse esquema, a primeira classe é a dos sonhos influenciados pelo presente ou passado, sem significado futuro. Aqui estão os sonhos de énýpnia (ou insomnia), que reproduzem uma representação ou seu oposto, como fome ou saciação, e os do tipo de fantásmata, que ampliam de forma fantástica um dado acontecimento, como o pesadelo.
A outra classe de sonhos diz respeito aos que determinavam o futuro. Entre eles estavam os de profecias recebidas em sonho, chamadas de chrimatismós (ou oraculum); as previsões de eventos futuros, conhecidas como órama (ou visio); e, também, os sonhos simbólicos que exigiam interpretações, os óneiros (ou somnium).
Para Freud, “essa variação no valor que se deveria atribuir aos sonhos estava intimamente relacionada com o problema de ‘interpretá-los’” — não só porque essa compreensão do sonho estava em harmonia com a cosmovisão da época, mas também pela sensação do sonho na mente desperta, aquela “impressão de algo estranho, advindo de outro mundo e contrastando com os demais conteúdos da mente”.
Sendo assim, por falta de evidências e pesquisas científicas, Freud nota que a defesa do aspecto místico dos sonhos é preservado até o momento da publicação do livro. Quando escreve sua pesquisa, o psicanalista elabora um texto revolucionário. Como escreve André Carone em Uma nova versão para os sonhos, Freud apresenta “um método clínico de investigação, uma teoria de interpretação e um modelo de funcionamento da psique humana”, por isso é um marco importante para a psicanálise e coloca o sonho como um elemento basilar.
No entanto, o livro demorou a ser aceito e a circular pela sociedade. A interpretação dos sonhos levou 8 anos para vender os 600 exemplares da tiragem inicial. Então, em 1901, Freud retoma o calhamaço e escreve um artigo menor, chamado Sobre o sonho (disponível gratuitamente nos Cadernos de Tradução LELPraT), numa linguagem menos expansiva em relação ao número de casos e mais também sintética.
Além de abordar as principais ideias do livro, Freud também muda o foco de interesse. Aqui, “se interessa mais pela formação da linguagem onírica do que pelo caráter inconsciente dos conteúdos do sonho. A forma e a composição do sonho (...) recebem mais atenção do que os conteúdos inconscientes revelados pelo trabalho de interpretação e deixam em segundo plano os temas da sexualidade e da infância”.
Alguns conceitos
No episódio Café com Freud: os sonhos e a psicanalise, do podcast Psicanálise de Boteco, os pesquisadores e psicanalistas Alexandre Patricio de Almeida e Filipe Pereira Vieira se encarregam de apresentar alguns dos conceitos que Freud elabora ao falar dos sonhos — e que são usados até os dias de hoje.
Na abertura de Sobre o sonho, Freud se encarrega de apresentar o método da livre associação. A ideia é que o paciente, sem refletir a respeito da ideia angustiante que o atormenta, comunique ao médico, sem exceções, tudo que ele pensa e relaciona com tal aflição. Conforme Freud escreve, “logo se produzem numerosas associações, às quais ligam-se a outras, e que no entanto vêm precedidas pelo juízo de quem observa a si próprio”.
Assim, a conexão entre ideias patológicas e outras de fora permite que uma nova ideia se ajuste ao contexto e torne a angústia mais palatável. Em sua primeira incursão, Freud tenta analisar os sonhos da mesma forma — em uma associação de ideias que se relacionam aos elementos que aparecem no sonho e podem guiar as interpretações.
Como exemplo, Freud se propõe principalmente a analisar um sonho pessoal: um jantar que envolve uma corrida de táxi e um flerte inesperado. Em sua trajetória, o que o psicanalista austríaco passa a afirmar é que a interpretação desses sonhos depende da interação entre paciente e analista; entre aquele que vai contar a narrativa & a vida e o crítico consciente que as interpretará.
Parte dessa necessidade surge do fato de que o sonho só pode ser analisado a partir de uma elaboração prévia, da narração da memória do sonho. A organização dessa trama confusa e onírica em um relato narrável prevê uma interpretação, uma primeira leitura dos sentidos do sonho. O desornado passa a ser ordenado, o aleatório passa a ser causal.
No entanto, ainda que essa primeira visão mostre a importância de compreender qual o repertório do sujeito que faz essa leitura, aponta também para a existência de questões submersas ou imperceptíveis para o sonhador, mas que surgem nos olhos daqueles que escutam o relato.
Dentro dessa lógica onírica, Freud apresenta alguns dos mecanismos que correm durante a passagem do inconsciente para o sonho. Como explicam Alexandre e Filipe, uma das primeiras categorias a ser apresentada é a da existência do conteúdo sonhado em duas naturezas distintas: latente ou manifesta.
A primeira é aquela que escapa ao discurso e à linguagem. São questões latentes dentro do indivíduo, que pulsam mas não conseguem ser elaboradas, não encontram correspondências. Também podem passar por um tipo de repressão ou silenciamento pela própria mente sonhadora — o conceito do recalque, tão disseminado, abarca essa rede de supressão silenciosa.
Por outro lado, o conteúdo manifesto é aquele que “passa pela rede de censura” e se torna comunicável. Isso não significa, necessariamente, uma correspondência direta com o desejo. Freud aponta que existem sonhos mais simples que retratam explicitamente o desejo vivido no sonho — como uma criança que dorme com vontade de passear e sonha com a realização do passeio. Outros, no entanto, podem ter uma correspondência bastante complexa.
Um dos motivos para essa dificuldade decorre do deslocamento nos sonhos. O deslocamento é um processo que diz respeito ao fato de que, muitas vezes, o elemento mais significativo do sonho é substituído pelo oposto ou por uma suposta indiferença.
Não é difícil encontrar por aí explicações de que o sonho de uma traição amorosa, por exemplo, nem sempre indica desconfiança ou alertas, mas pode também apontar o deslocamento do desejo de traição do sonhador, colocando o par como agente ativo na traição — já que o impulso de ter mais de um companheiro é, muitas vezes, suprimido pela sociedade e o recalque desse desejo transfere o sentimento de culpa e da repressão.
Outro mecanismo encontrado nas tramas oníricas é o da condensação. Sabe quando você sonha que está em uma casa, mas também no shopping e em um hotel que você lembra de ter ido quando criança? Ou quando você encontra alguém nos sonhos que é seu amigo de infância, mas também seu tio e um dinossauro? Esse efeito de reunir vários elementos em um, de condensar significados múltiplos em um único agente, é outro efeito presente nas tramas oníricas.
Sidarta Ribeiro, em O oráculo da noite, ao tratar do funcionamento neurológico das redes de memória que reverberam durante o sono e compõem o sonho, propõe a hipótese de que a condensação existe porque, como as memórias são um padrão em uma rede de ativação, as áreas individuais ativadas muitas vezes compõem mais de um padrão e, assim, acabam misturando esses elementos.
Por fim, todas essas questões e mecanismos são trabalhados, preenchidos e misturados a elementos do nosso cotidiano. Freud aponta que são as ações realizadas ao longo dos dias que auxiliam na composição do conteúdo e sentido da trama dos sonhos, são os chamados restos diurnos.
Muito antes de Freud, acreditava-se que os sonhos diziam respeito ao futuro. Depois dele, o sonho passou a ser visto como reflexo impreciso mas significativo do passado. Decorridos quase oitenta anos desde sua morte, acumulam-se evidências de que ambas as concepções são corretas. Passo a passo, através de uma jornada sinuosa, toma corpo uma teoria geral do sono e dos sonhos que compatibiliza passado e futuro para explicar a função onírica como ferramenta crucial de sobrevivência no presente. — Sidarta Ribeiro, O oráculo da noite
Sonhar, hoje
Mais de cem anos depois da primeira publicação de A interpretação dos Sonhos, é inevitável que adaptações e correções sejam feitas ao método original de interpretação. Outros pesquisadores e psicanalistas desenvolveram e refletiram sobre esse processo ao longo dos anos, como Carl Jung ou Jacques Lacan, e que não terão o espaço devido aqui. Da mesma forma, erros e limitações foram encontrados no pensamento freudiano. Um dos exemplos citados por Alexandre e Filipe no Psicanálise de Boteco é a chave de interpretação que Freud dava dos seus pacientes a partir de um repertório que ele tinha, mas que não tinha, necessariamente, eco nas vivências do paciente.
Já o vídeo História versus Freud, do canal TED-Ed, aponta outros erros visíveis no pensamento do psicanalista austríaco, como a aplicação incorreta do método freudiano por seguidores, a visualização da homossexualidade como um defeito de formação, a concepção do feminino como incompleto e dependente do pênis ou o fato do campo da psicanálise ser autorreferenciado — impossibilitando a falseabilidade das premissas por outros campos.
Jonathan Crary, em 24/7: Capitalismo tardio e os fins do sono, livro resenhado no segundo episódio da temporada, escreve que “talvez o momento mais decisivo para o processo de desvalorização do sono tenha ocorrido no último ano do século XIX, quando Freud terminou de escrever A interpretação dos sonhos”.
Para Crary, a redução do sonho à expressão de um desejo reprimido aponta pra uma primazia de desejo e necessidade, intensamente ligada a uma lógica burguesa de funcionamento da sociedade. Além disso, critica o efeito de “privatização dos sonhos”, que retira o sonho do âmbito coletivo, delega ao analista o poder de especialização para compreender o sonho e incapacita o sonhador.
Por outro lado, as pesquisadoras Cláudia Maria Perrone e Rose Gurski, professoras da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, escrevem que “não se pode negar que foi a herança do pensamento freudiano que possibilitou, sobretudo, o acesso a outro tipo de lógica, a da narrativa onírica”.
Em um artigo publicado na revista Cult #266, intitulado A oniropolítica e a ‘peste’ freudiana, as professoras afirmam que, “quando analisa a narração do sonho, Freud se atém ao que chamou de pensamentos oníricos, uma passagem entre o Real – isto é, o que não é acessível à consciência, aos modos de análise racional – e o despertar – composto pelos restos das experiências do dia e pela reconstrução em forma de narrativas”.
Sendo assim, é em direção a esses traços não assimilados, aos fragmentos de espaço e tempo sobreviventes da experiência onírica, que a psicanálise se debruça e “dirige suas interrogações”. Tanto Gurski quanto Perrone compõem um grupo de pesquisa em oniropolítica, conceito que vamos aprofundar nas próximas edições e que entende esse espaço de existência da narrativa onírica como algo entre o individual e coletivo e que também nos confere caminhos para pensar formas e conhecimentos políticos. Elas escrevem:
A oniropolítica tem nos permitido trabalhar, através da estrutura dos sonhos, o enlace entre duas esferas que, a princípio, parecem contraditórias: a narrativa particular do sonho, que carrega o singular do sujeito, e a política, uma dimensão coletiva que lida com as massas e com a multiplicidade. Com a oniropolítica, acreditamos, junto com Benjamin e Freud, que há no sonho ‘um saber ainda não consciente dos acontecimentos e fenômenos, cuja promoção tem a estrutura do despertar’, nas palavras do primeiro.
(...)
Resgatar o sonho e o sonhar, assim como o adormecer e o despertar, pode operar como uma forma de resistência, uma estratégia ética e política que, a partir de novas montagens da materialidade do mundo e do caos das percepções cotidianas, autoriza a imaginação acerca de possíveis ações.
Alexandre Patricio de Almeida e Filipe Pereira Vieira apontam que Sidarta Ribeiro, em O oráculo da noite, apresenta algumas confirmações freudianas pelo viés da neurociência. Em um movimento de revisão histórica, Sidarta aponta que “o esvaziamento do sonho se deu em favor da investigação estritamente neurofisiológica das propriedades do sono REM”, o que apagou o interesse no conteúdo dos sonhos e o relegou ao espaço do misticismo e de outros “profissionais da metafísica”, como a psicanálise.
No entanto, quando evidencia a relação entre memória e sonhos, o neurocientista brasileiro retoma a proposição de Freud sobre o sonho como um espaço de desejo. Primeiro, porque “a formação da memória é um processo seletivo em que contingências de recompensa determinam qual memória será mantida e qual será esquecida”. Isso significa que, ao fazer a manutenção das informações que devem ser mantidas, reparadas ou esquecidas, o sono beneficia as memórias que se relacionam com alguma recompensa.
Por isso, Sidarta afirma que
A proposição freudiana de que o desejo é o motor do sonho é muito mais factual do que seus críticos admitem. A aparência poética provavelmente contribuiu para mascarar a precisão cirúrgica da hipótese, pois foram necessários cem anos de acúmulo de conhecimento sobre os mecanismos neurais da motivação até que a frase fizesse sentido biológico. (...) Sonho ‘é’ desejo porque ambos ‘são’ dopamina. Essa conclusão tem relação com o fato de que a dopamina é essencial para a própria ocorrência do sono REM. (...) Já não é mais possível, por exemplo, trivializar o significado rico e intrigante dos sonhos como inútil subproduto do sono REM. Tampouco é possível seguir aceitando que o sonho represente um encadeamento aleatório de imagens. A evidência aponta para um encadeamento imagético organizado pelo sistema dopaminérgico de recompensa e punição, um processo capaz de ensaiar, valorar e selecionar comportamentos adaptativos sem no entanto submeter o corpo a riscos, pois tudo é simulado no ambiente seguro e inofensivo da própria mente.
Mas como essas coisas se organizam na trama onírica? Ao falar sobre os sonhos nos dias de hoje, Ribeiro afirma que eles “evocam e entrelaçam fragmentos de vivências, desde simples imagens de coisas ou pessoas até cenas bastante vívidas e específicas, experimentadas de fato como situações da vida. Podem ter um tema único ou ser compostos de várias unidades temáticas conectadas entre si com maior ou menor grau de surpresa”.
Diferenciando os sonhos traumáticos dos cotidianos, Sidarta também afirma que os primeiros “tendem a ser não metafóricos, reverberando memórias singulares de forma fidedigna e intrusiva”, enquanto aqueles “são bricabraque de eventos menores misturados uns aos outros”, sem sustos.
É que, por mais pessoal e subjetivo que seja, em geral, os sonhos das pessoas mantém mais semelhanças do que diferenças — dadas as devidas proporções de diferenças culturais. Nesse sentido, Sidarta Ribeiro apresenta algumas temáticas comuns nas narrativas oníricas, que podemos sintetizar dessa forma:
Sonhos de grande significado que marcam épocas de transição — infância, adolescência, idade adulta, senescência ou mudança de status social. Geralmente, são sonhos que são grandes porque são repletos de símbolos que dialogam com a travessia desse limiar;
Sonhos sobre alianças ou conflitos; surpresas alegres ou tragédias. São sonhos bastante presentes ao longo da história e que, de certa forma, armam o sonhador contra acidentes, negligências básicas ou um aviso para que erros futuros não aconteçam;
Sonhos que são reflexos de emoções, como aqueles que falam sobre começos e términos de ciclos ou das crises que ocorrem dentro deles; assim como sonhos que falam sobre as problemática na relação entre poder de mudar, medo e desejo;
Dentro do tópico anterior, sonhos sobre rompimentos amorosos são ainda mais singulares pela mescla de elementos contraditórios, como a união entre morte e desejo;
Sonhos enlutados também são frequentes, como vimos na edição passada. Nos dias de hoje, podem atuar tanto como um processamento da perda e funcionar como um adeus ou, de forma oposta, como uma dificuldade de desprendimento;
Sonhos de gestação e as respectivas felicidades, expectativas e inseguranças que acompanharão o período da maternidade (inclusive, Sidarta apresenta um estudo curioso que mostra como as mães estudadas quase sempre conseguiram adivinhar o sexo do bebê por revelações oníricas);
Sonhos de paternidade também incluem uma categoria própria, mas focado no que diz respeito à responsabilidade — uma divisão que, imagino reflete mais as divisões e expectativas sociais e não surgem de um determinismo biológico;
Por fim, sonhos que avisam e apontam doenças que afligem o doente, ainda que elas não tenham sido notadas de forma completa pela mente consciente.
Uma das propostas que Sidarta Ribeiro procura formular em O oráculo da noite é a do sonho como um espaço seguro de previsão, simulação e reflexão. Por isso, aponta como o inconsciente se constrói não só como a soma das memórias, mas também das suas possibilidades; é o que somos e o que poderíamos ser.
Assim, escreve que o “sonho é a possibilidade de imaginar os futuros em potencial através de um mecanismo capaz de prospectar a experiência pregressa e formar novos conglomerados psíquicos, juntando ideias antigas de forma nova”. Em sua trajetória, Freud se interessou muito mais pelos sonhos que lidavam com questões de uma certa “base ecológica”, como a sobrevivência, o ato sexual, a morte, etc.
Carl Jung, por outro lado, se interessava por aqueles que representavam uma situação-limite. Quando “eventos muito importantes acontecem, emergem sonhos memoráveis, emocionantes e repletos de detalhes. Ao primeiro exame não parecem derivar das preocupações imediatas do sonhador, porque as simbolizam de forma abrangente, mais filosófica ou poética, com ampla perspectiva espacial e sobretudo temporal”, explica Sidarta. São sonhos que lidam com as imagens e figuras (e que relacionamos com Sandman, na primeira edição).
Sidarta Ribeiro explica que nessas ocasiões, tais “sonhos frequentemente ilustram o espanto com a irreversibilidade do tempo — sonhos que não se ocupam dos problemas cotidianos, mas se surpreendem com a inexorável mutação de tudo; sonhos especiais, míticos, que surgem em faixas etárias específicas mas também podem ocorrer em qualquer momento da vida tocado diretamente pela lembrança da finitude; sonhos que evocam memórias arcaicas de ciclos arquetípicos, e, mesmo vestidos com o figurino das impressões cotidianas, marcam as grandes passagens simbólicas em nossa caminhada incerta de ser, talvez procriar e finalmente desaparecer”.
A pandemia da COVID-19 e o subsequente período de isolamento apresentaram elementos bastante curiosos nos sonhos, o que levou um grupo de cientistas brasileiros a se debruçar e analisar centenas dessas narrativas oníricas... mas isso fica para a próxima edição.
Diário de Sonhos
Recebi dois relatos para essa edição, mas que, pela extensão, serão enviados juntos em uma episódio extra na semana que vem.
Envie seu Diário de Sonho
Responda o e-mail ou comente aqui contando um pouco das suas experiências, de sonhos que teve & se a newsletter tem alterado alguma dessas relações.
Como os e-mails estavam estourando o espaço, resolvi alinhar as dicas para sonhar e para escrever em um link externo. Então, se quiser enviar e não souber muito como fazer, é só clicar aqui.
Obrigado por ler até aqui!
Se você gostou da edição, compartilhe com alguém que possa gostar. É de grande ajuda!
Além disso, confira a campanha de financiamento coletivo no Catarse (ou, se quiser colaborar pontualmente, pode me dar um livro de presente). Agora, também é possível se inscrever e apoiar a newsletter pelo próprio Substack!
Não deixe de conferir as outras edições em Ponto Nemo. Você pode conferir as outras produções no Estantário e me ouvir no podcast 30:MIN. Também estou no Twitter e no Instagram. Mas, se quiser conversar, pode responder esse e-mail.
Nos últimos 15 dias, eu:
Participei do episódio: “30:MIN 399 — Você rabisca seus livros? (com Rodrigo Casarin, Página cinco)”;
Participei do episódio: “30:MIN 400 — Roleta comemorativa de indicações”.