Temporada 02 — Episódio 02: Fim do sonho, fim do sono
Antes de voltarmos a pensar no sonho, é preciso diagnosticar um problema anterior: o fim do sono
Pronto! Depois de aproveitar o lançamento de Sandman, vamos dar um passo para trás. Antes de continuar, precisamos pensar na insônia que passou a permear o nosso ritmo de vida, porque, ao longo do tempo, não só deixamos de valorizar a narrativa onírica, mas também o momento íntimo e invariavelmente improdutivo do sono.
Quem primeiro me apresentou essas ideias foi Jonathan Crary em 24/7: Capitalismo tardio e os fins do sono, citado na edição anterior. A primeira vez que o livro foi publicado por aqui foi em 2014, pela extinta Cosac Naify, com um trecho do primeiro capítulo publicado pela revista piauí. Anos depois, a Editora Ubu trouxe o livro reeditado e integrante da coleção Exit.
O que Jonathan Crary propõe é, em primeiro lugar, um diagnóstico: o fim do sono em uma sociedade que vive em um ritmo frenético, 24 horas por dia e 7 dias por semana. Surge daí um apagamento de quaisquer barreiras cíclicas ou sazonais — dia e noite; lazer e trabalho; produção e consumo; verão e inverno —, porque o que o estado da arte da economia exige que o tempo da nossa vida seja vivido nessa interface infinita, sem percalços ou obstáculos para o “desenvolvimento”... como o feed de uma rede social.
Por fim, é claro que, além de discutir como nos relacionamos com o sono, Crary também evidencia como isso afeta os sonhos, uma situação que leva a narrativa onírica a uma provável racionalização e simplificação — aproximando pessoas de máquinas.
Enfim, para acompanhar essa discussão, você também pode ouvir a Ponto Nemo em Voz Alta, pelo player ali em cima. Além disso, como fizemos na época do A Trama da Vida, de Merlin Sheldrake, a Ubu liberou um cupom de desconto de 20% para os leitores da Ponto Nemo que quiserem comprar 24/7: Capitalismo tardio e fins do sono. Ele é válido até o dia 19.9.2022. Para resgatar, basta entrar no site, realizar a compra e, na hora do pagamento, inserir o cupom pontonemo.
Por fim, mais um anúncio antes de começarmos a edição: a Ponto Nemo fez um ano! Sim, já... Quando escrevi o primeiro número, publicado no dia 27.08.2021 (aniversário da minha mãe), não tinha certeza se daria conta de continuar. Era um teste, um laboratório de escrita em que eu poderia experimentar diversas linguagens e ver se eu daria conta de entregar bons textos quinzenalmente e brincar com várias formas.
Não sei se consegui tudo, mas, depois de 25 edições, ainda estou aqui — entre ensaios, resenhas, reportagens e contos. E, ao lado desses textos quinzenais, projetos maiores foram tomando forma: até o ano que vem, vamos fazer uma versão revisada & ampliada & ilustrada da primeira temporada em ebook. Depois, outros dois ou três projetos estão esperando para sair do papel — e, claro, todos dependem de um planejamento financeiro.
De qualquer forma, em comemoração ao aniversário, vocês podem assinar pelo valor promocional até o dia 09.09.2022 — por apenas R$ 10 mensais. Você pode assinar tanto por aqui, no Substack, quanto pelo Catarse. O valor é o mesmo nas duas plataformas e pelo tempo que vocês quiserem apoiar.
Todos os apoiadores receberão o livro da primeira temporada, informações dos projetos futuros e, também, acesso ao novo espaço da newsletter: as Anemonações. Para entregar recompensas a curto prazo, decidi enviar um texto curto & exclusivo aos apoiadores todas as últimas segundas-feiras do mês.
Ainda estou pensando nos moldes, mas é provável que sejam reflexões breves, envolvendo algo que li, joguei, vi ou ouvi — mas, também, algumas coisas que estou escrevendo. A primeira versão sai no fim de agosto. Por isso, se tiver interesse e não quiser ficar de fora, você pode checar a página do Financiamento Coletivo ou clicar no botão aqui embaixo para garantir a continuidade da Ponto Nemo e ter acesso aos textos pelo preço promocional.
T02 E02: Fim do sonho, fim do sono
E se soldados americanos conseguissem aprender com os pássaros que migram e ficar dias sem dormir? E se colocássemos satélites refletores para manter áreas de exploração sempre iluminadas, como de dia? Parecem situações bizarras, não? Mas é descrevendo como a ciência tem procurado reduzir a necessidade do sono e aproximar o funcionamento humano ao das máquinas que Jonathan Crary abre o livro 24/7: Capitalismo tardio e fins do sono.
Ao longo do livro, o diagnóstico que o crítico e ensaísta inglês vai apresentar é: a intensificação do neoliberalismo e da face financeira do capitalismo, principalmente depois dos anos 1980, nos trouxe a um momento de tempo contínuo, apartado de quaisquer relógios e ritmos naturais e que dissolve fronteiras entre espaços — como os públicos e privados; de trabalho e de lazer — para fortalecer um cenário de disponibilidade absoluta, necessidade ininterrupta em que consumir e produzir se tornam ações semelhantes.
Obviamente, uma organização também inseparável da catástrofe ambiental pelo ritmo de exploração, desperdício e desrespeito aos ciclos sazonais.
Na paisagem que Crary desenha, fica claro o motivo pelo qual o sono se tornou um inimigo a ser combatido: porque ele é naturalmente improdutivo.
“Em sua profunda inutilidade e intrínseca passividade, com as perdas incalculáveis para o tempo produtivo, a circulação e o consumo, o sono estará sempre a contrapelo das demandas de um universo 24/7. O fato de passarmos dormindo um bom período da vida, libertos de um atoleiro de carências simuladas, subsiste como uma das grandes afrontas humanas à voracidade do capitalismo contemporâneo. O sono é um hiato incontornável no roubo de tempo a que o capitalismo nos submete. A maior parte das necessidades aparentemente irredutíveis da vida humana — fome, sede, desejo sexual e, recentemente, a necessidade de amizade — se transformou em mercadoria ou investimento. O sono afirma a ideia de uma necessidade humana e de um intervalo de tempo que não pode ser colonizado nem submetido a um mecanismo monolítico de lucratividade, e desse modo permanece uma anomalia incongruente e um foco de crise no presente global. Apesar de todas as pesquisas científicas, frustra e confunde qualquer estratégia para explorá-lo ou redefini-lo. A verdade chocante, inconcebível, é que nenhum valor pode ser extraído do sono” — Jonathan Crary, ‘24/7: Capitalismo tardio e os fins do sono’.
No entanto, ainda que o sono não possa ser eliminado, nem tornado produtivo, não significa que ele não possa ser precarizado — como vemos na falta de acesso à água ou moradia. Crary destaca como “o sono vem sofrendo um processo de produção da escassez”. Ou seja, a configuração de mundo atual ou nos mantém insones, ou nos obriga a pagar pelo horário de sono. Além disso, muda-se a percepção do próprio ato de dormir: não mais uma necessidade natural, mas como uma função, um estado que pode ser tratado e alterado.
Sendo assim, acompanhamos o ritmo do capital. Não dormimos, mas abraçamos concepções instrumentais, como o sleep mode — entramos em um estado de consumo reduzido de energia, de prontidão para despertar quando necessário. Quem nunca acordou de madrugada para checar e-mails ou ver mensagens, não é? “Nada está fundamentalmente ‘desligado’ e nunca há um estado real de repouso”, escreve Crary.
Temporalidades e inovações tecnológicas
Mas afinal, o que é essa temporalidade impossível do 24/7? É simples. Visualize uma rede social qualquer, como o Instagram. Sabemos que ele está lá, acontecendo. Milhares de fotos, reels e stories estão sendo postados. A todo instante.
Em termos comparativos de exposição e retenção, quase nada daquilo que vemos é retido. Ao mesmo tempo, nada se apaga — e se torna um grande arquivo infinito. Ao mesmo tempo, não há uma distinção clara entre consumir a plataforma e produzir para a plataforma. Ver os vídeos, consumir a publicidade, liberar os dados pessoais para as empresas e postar as fotos são atividades do usuário. A Meta, empresa que ainda deveria se chamar Facebook, não produz as fotos. São os usuários... mas é ela quem lucra. Trabalhamos em nosso tempo livre.
Além disso, é difícil não citar a plataforma em interações reais. O espaço extrapola, seduz, atrai. Não é raro perguntar se “você viu o que Fulano postou?”, ou “olha esse vídeo, que legal. É o novo meme”. E então, naqueles dias em que você não se sente muito bem e sabe que usar as redes sociais não vai te deixar melhor do que antes, você mesmo assim não resiste e usa as redes com uma sensação de redundância e homogeneidade. Sem piscar.
Pode parecer exagero, mas tem alguns dados que são, na melhor das hipóteses, curiosos. O primeiro deles, que diz respeito ao consumo global de internet, é um infográfico feito pela Domo e que usa diversas fontes de pesquisa. O balanço mostra que 65% da população mundial usa a internet. São quase 5.2 bilhões de pessoas.
Nesse fluxo, alguns dados curiosos: 240 mil fotos são postadas no Facebook. No Instagram, 65 mil. Os usuários do Twitter tuitam 575 mil vezes. 167 milhões de vídeo são vistos no TikTok. 6 milhões de pessoas fazem compras online — e a fatia de cerca de 283 mil dólares fica com a Amazon. E a frequência? Tudo isso a cada minuto.
No Brasil, o recorte é um pouco diferente. Somos um dos países que mais usa redes sociais e passa tempo conectado na internet. Segundo o Datareportal, são 10 horas por dia. Se levarmos em consideração o estudo do NortonVPN, são quase 14 horas — o equivalente a 54% do tempo de vida.
Dessas horas, quase 4 horas são dedicadas às redes sociais (um levantamento chegou ao número de 3h42min; outro, de 3h47min — fato que, por algum motivo, foi comemorado por um site de Marketing Digital). Claro que, num primeiro contato, isso pode não dizer nada. Mas como viver em meio a esse tanto de coisa sendo feita, acontecendo ao mesmo tempo?
É exatamente aí que a temporalidade 24/7 entra. É uma temporalidade impossível para nós, que só aponta a suposta fraqueza e inadequação da natureza humana. Tal ineficácia não é apresentada pela força, mas pela sedução desse arquivo ilimitado de tudo que acontece em um universo que é (aparentemente) aceso, e muito mais vivo do que a realidade concreta em que vivemos.
Então, por um lado, somos seduzidos pela aparente liberdade do consumo; mas também somos facilmente regulamentados por estímulo intermitente, homogêneo, redundante e acelerado, composto por um arquivo gigantesco e, paradoxalmente, repleto de dados descartáveis e esvaziados.
Essa mudança e aceitação é também feita de forma perversa. O discurso é que vivemos em uma era digital como se fosse um processo inevitável, natural e praticamente autônomo. Basta que venha a próxima geração, misteriosamente com habilidades inatas, que tudo será resolvido. Sem considerar a suposição de que haverá uma equivalência global no uso da tecnológica.
No entanto, o que Jonathan Crary afirma é que essas inovações tecnológicas estão focadas na “perpetuação do mesmo exercício banal de consumo ininterrupto, isolamento social e impotência política” que antes. Essas inovações não representam nada historicamente relevante.
O ensaísta inglês afirma que, “como muitos já notaram, a inovação no capitalismo consiste na simulação contínua do novo, enquanto na prática as relações de poder e de controle permanecem as mesmas”. O que muda é a distensão e a expansão na capacidade de escolha que cada tecnologia nova traz.
No fundo, o que Crary está dizendo é que pouco importa o produto consumido, mas o dispositivo no qual ele é consumido. Aqui, Crary chega a dissertar que o exemplo mais claro é o do produto midiático, mas que podemos visualizar essa lógica de inovação vazia em todas as esferas.
Por exemplo, ao citar a indústria farmacêutica, fica claro como o objetivo é padronizar todas as formas de vida e reduzir cada uma das experiências subjetivas a um relato homogêneo — fator que, como veremos, interfere diretamente nos sonhos.
Modernidade e sonho
Claro que esse movimento foi feito ao longo de vários anos, em uma movimentação histórica. A aparente contradição entre a apresentação de Crary — ao mostrar a instauração desse tempo como algo que remonta ao início da modernidade, mas também como algo exclusivo do século XX — é porque a implementação da modernidade foi irregular, até o fim da 2ª Guerra Mundial.
Até esse momento, Jonathan Crary configura a construção do mundo de acordo com a sociedade disciplinar, de Foucault. Escolas, prisões, escritórios, exércitos e fábricas serviam para confinar e controlar o comportamento de indivíduos desarraigados do contexto pré-moderno em que viviam e educá-los para a modernidade.
Retomaremos a questão para falar de hospícios, delírios, sonhos e loucos, mas o importante é que, nesse momento, havia um espaço relativamente seguro: a vida cotidiana. Essa era uma esfera da vida não controlada, não disciplinada e ainda ligada a outros ritos e hábitos. O sono, por exemplo, faz parte dessa esfera.
Mas, aos poucos, essa percepção da sociedade disciplinar se dissolve e passa a conviver ao lado de outras formas de controle. Os anos 1950 são um marco. O motivo é a televisão, objeto que Crary apresenta como agente de instauração de um novo padrão de consumo e comportamento homogêneos e que cria, também, uma condição para a futura economia da atenção.
Ao assistir à TV, o trabalhador, no seu tempo improdutivo, volta a ser produtivo, já que gera a audiência com seu trabalho de atenção. É também com a TV que passamos a visualizar o efeito pouco comum do vício que não gera sensação de bem-estar ou prazer, mas um “vácuo neutro de baixa intensidade afetiva”.
Nos anos 1980 e 1990, o espectador sente que abandona seu papel passivo e homogêneo e vai para o espaço “democrático” e “não-hierárquico” da internet. O que se mostrou uma grande mentira. A verdade é que o neoliberalismo e a estruturação do capitalismo financeiro exigiam um método mais eficiente de extração do valor.
“O capitalismo 24/7 não é mera apreensão contínua ou sequencial da atenção, mas também uma composição densa do tempo em camadas, na qual múltiplas operações ou atrações podem ser atendidas quase simultaneamente, independentemente de onde estamos ou do que estamos fazendo. Os assim chamados aparelhos ‘smart’ recebem esse nome não tanto pelas vantagens que podem oferecer aos indivíduos, mas por sua capacidade de integrar o usuário a rotinas 24/7 de forma mais completa” — Jonathan Crary, ‘24/7: Capitalismo tardio e os fins do sono’
Nesse sentido, pouco importa se estamos discutindo as novidades que os formatos de vídeo que o TikTok trouxe. Não é uma novidade real. É uma inovação de produto, uma otimização de consumo. De certa forma, é o que eu faço aqui na newsletter (e também a origem do meu receio de produzir e oferecer mais conteúdo aos padrinhos).
É claro que algumas coisas sempre deixam fiapos nessas discussões. O argumento da televisão como manipulação das massas surge muito ao lado dos críticos revoltados em perder a sua relevância para o mercado na hierarquia intelectual — e sinto que é um fator que precisamos estar sempre atentos ao criticar essas estruturas.
Além disso, me parece curioso o recorte entre trabalho e lar. Por isso optei em manter os termos de trabalhador no masculino. Não tenho certeza como seria o recorte feito pelo olhar de mulheres que, depois de horas de trabalho na rua, voltam ao lar para a jornada de trabalho doméstico. Será que seria uma leitura diferente? Será que a sociedade insone já não foi diagnosticada antes?
De qualquer forma, o que podemos fazer agora é retomar o tema do sono e seguir para o foco da temporada: os sonhos.
Ao longo desse caminho, uma das coisas que a temporalidade 24/7 tirou de nós foi a capacidade de sonhar acordado, de fazer uma introspecção distraída ou aproveitar aqueles momentos de tédio. Há pouco espaço para o devaneio nos dias de hoje.
Ao mesmo tempo, Jonathan Crary aponta um viés interessante sobre as pesquisas de sonho: a remodelação do espaço onírico enquanto um conteúdo que pode ser acessado de forma instrumental, como um programa de computador. A imposição desse modelo binário simplifica e torna homogênea a experiência amorfa e complexa do sonhar.
É um movimento que, por um lado, faz com que os indivíduos se visualizem no mesmo patamar desmaterializado das mercadorias que consomem, ao mesmo tempo em que fortalece a percepção de que a saída para o biocídio que acontece por todo o planeta é a transferência do mundo humano ao mundo mecânico, enquanto ficamos “assustadoramente indiferentes à fragilidade e à transitoriedade das coisas vivas reais”.
“A representação ficcional dos sonhos como algo que pode ser acessado e transformado em objeto é apenas parte do cenário da demanda infindável pela terceirização de nossas vidas para formatos digitais pré-fabricado. (...) Se algo tão privado e aparentemente interior como o sonho é agora objeto de sofisticadas máquinas de ressonância, passível de ser imaginado na cultura de massa como conteúdo a ser baixado, há então poucos obstáculos à objetificação de aspectos da vida individual que podem ser mais facilmente realocados em formatos digitais” — Jonathan Crary, ‘24/7: Capitalismo tardio e os fins do sono’
A retomada da conexão com as outras coisas reais e vivas que Crary pincela ao longo do livro tem uma razão de ser porque diz respeito a um projeto de sociedade. Ele escreve que “o sono é uma das poucas experiências que nos restam de abandono, consciente ou não, aos cuidados de outrem” e, ao mesmo tempo, é “uma libertação periódica da individuação” das experiências rasas que vivemos ao longo do dia.
Ou seja, não é possível dormir com tranquilidade em uma sociedade instável. Sem apoio. Violenta. Crary comenta sobre a ingenuidade de esperar uma melhoria nas condições do sono profundo e restaurador sem pensar nas outras formas de desapropriação e ruína social e tais mudanças só serão possíveis na ausência do capitalismo.
O sonho é um momento de desligamento geral. É um estado inativo e inútil. Não está ligado ao que possuímos ou supostamente precisamos. Ele está ligado aos “padrões sazonais e cíclicos essenciais à vida e incompatíveis com o capitalismo”. Como escreve Crary, “a inércia restauradora do sono se coloca contra a letalidade da acumulação, da financeirização e do desperdício”.
“Imaginar — em muitos lugares diferentes, em estados os mais diversos, inclusive na fantasia e no devaneio — um futuro sem capitalismo talvez pudesse começar por sonhos do sono. Infundir no sono a ideia de uma interrupção radical, como a recusa do peso impiedoso do nosso presente globalizado — um sono que, no nível mais prosaico da experiência cotidiana, pudesse esboçar os contornos de renovações e reinícios mais consequentes” — Jonathan Crary, ‘24/7: Capitalismo tardio e os fins do sono’
Por isso, Jonathan Crary não escreve apenas sobre o término do sono, mas também da sua finalidade. Surge daí a pluralidade no título, dos fins do sono. Porque, para voltar a sonhar, é necessário sonhar.
Diário de Sonhos
Hoje, vamos conhecer um pouco sobre o mundo do sonhar de Lígia Colares, publicitária de 33 anos — e também a guru do financiamento (e eu recomendo bastante o trabalho dela, mas deixo os contatos no fim do relato).
Depois de ler o primeiro episódio da temporada, Lígia me escreveu contando do interesse que sempre teve pelo mundo dos sonhos, da relação pessoal que mantinha com o espaço onírico e de como tinha se dado conta de que tem “uns sonhos muito doidos”.
O que descobri é que ela tem muito sonhos, geralmente com início, meio e fim — e, claro, muitas coisas sem pé nem cabeça — e muita conexão com eles. Ela me contou que já resolveu problemas da vida real — inclusive matemáticos, algo bastante difícil para os sonhadores. Além disso, Lígia me conta que seus sonhos são bastante sensoriais e que os mais vívidos são os pesadelos — é a primeira lembrança onírica que tem.
“Não sei se gosto”, ela me fala, “mas principalmente meus pesadelos são muito sensoriais. Eu sinto frio, umidade, cheiro. Isso é péssimo quando você está sendo perseguida por demônios, à noite, num cemitério. Também tem uma questão muito forte com as cores, é como se elas fizessem parte importante da história, sabe?”.
A verdade é que não sei, muito, não. Sempre tenho a impressão de que meus sonhos são em tons de fotografia velha, meio cinzas. Poucas cores. Também não lembro de ter sentido cheiros ou texturas, mas parece interessante.
Então, para tentar entender um pouco mais, mandei algumas perguntas para saber da relação dela com o momento do descanso e a rotina de sonhar. Ela me diz que tem uma facilidade muito grande para dormir e procura manter quaisquer atividades não relacionadas ao descanso fora do quarto — na medida do possível, claro. A televisão fica para fora, mas ainda mantém por perto o espaço do trabalho.
Mas essa organização parece que tem dado certo. Ela conta que, ao deitar, a cabeça consegue entender que é um momento de descanso. Além disso, também faz exercícios de respiração quando está ansiosa e o saldo do sono é positivo, com as oito horas e descansada.
Lígia costuma a se lembrar dos sonhos, principalmente porque são cheios de aventura, sentimentos e reviravoltas. Mas tem algo que me parece crucial nesse exercício de memória, o ato do registro: seja oral ou escrito. “Na maioria das vezes, eu conto para alguém quando a história é legal, porque eu não esqueço mais. Quando está muito corrido, eu anoto. Já coloquei no Twitter, também”, disse.
O exercício é importante e, me parece, que ele dá retornos à sonhadora. Ela me conta, por exemplo, que já voltou para um sonho que teve, lembrou o que aconteceu e tomou decisões diferentes para ter um final mais agradável — o que pode se aproximar de um sonho lúcido, mas, como veremos nas próximas edições, é um termo que precisa ser usado com cautela.
Além disso, Lígia diz que sonha com uma mesma pessoa que não conhece fora do Sonhar. “Tive um sonho há pouco tempo com essa pessoa. Fazia tanto tempo que a gente não se via que nós nos abraçamos e ficamos um tempão só colocando a conversa em dia”, disse.
(Escrevendo esse texto, lembro que passeo por algo parecido. Há muitos anos... muitos anos mesmo... eu tinha uma mesma imagem que conversava comigo no mundo dos sonhos. Não lembro de tê-la encontrado no mundo ‘desperto’, mas conversávamos muito. Em vários sonhos. Penso no que pode ter acontecido...)
Por fim, queria compartilhar um relato que a Lígia me enviou ontem, um sonho desses com começo, meio e fim — e que daria uma ótima versão de Saga, quadrinho de Brian K. Vaughan e Fiona Staples. Envio como recebi, via mensagem de texto:
(Vale o aviso: Eva é a sobrinha da Lígia)
Tive um sonho com as árvores lá do quintal da casa do meu pai! Ele tem duas árvores que dá para ver de longe.
Eu sonhei a gente estava no futuro, e que existia uma tecnologia para deixar a árvore consciente. Aí, foi construído uma casa ao redor da árvore com isso. Deixaram esse equipamento com ela e meio que ela se tornou o coração da casa. Deixava tudo fresco, era o salão principal e tal. Só que, com o tempo, a casa começou a ficar cada vez maior, criaturas estranhas começaram a viver lá e fazer coisas erradas, desde desrespeitar a árvore até assassinatos. Perderam o controle.
Eu estava com minha família lá e éramos os responsáveis por garantir a saúde da árvore. Só que a gente começou a perceber que a árvore começou a ficar agressiva e queria acabar com tudo. Ela tentou trancar todo mundo na casa, tentou diminuir o oxigênio e essas coisas.
A Eva estava junto e minha família começou a ficar preocupada, porque a árvore queria matar ela também. Inclusive, meu pai queria ser extremo e já matar a árvore, desligar completamente o aparelho e deixar ela murchar, mas eu não achei justo.
Decidi que íamos encontrar uma forma de salvar ela, mas quando eu saí da casa para buscar ajuda, descobri que o caos era generalizado. Existia uma sala/quintal em que milhares de orcs entraram em conflito com humanos. Tinha rastros de corpos, alguns ainda tavam batalhando. Tinha um grupo de criminosos que só queria destruir a casa e ficar com os espólios.
Então, eu e uns amigos tivemos que meio que fugir e meio que dar um fim nessas pessoas para manter a árvore segura, antes de tudo. Daí, quando eu finalmente consegui aprender a mexer no equipamento e saber o que fazer, voltei e descobri que todos os moradores da casa estavam trancados em uma pequena sala com baixa oxigenação, refém da própria árvore.
Tive que conversar com a árvore, explicar que as coisas no mundo lá fora já não estavam tão ruins, que as piores pessoas tinham ido embora e que algumas ali ainda se preocupavam uns com os outros e com a própria árvore.
Então, com autorização dela, eu consegui mudar o equipamento para que ela não tivesse 100% de consciência, só um pouco. Ela tinha a consciência de que precisava cuidar da casa e de si, sabia da sua missão, mas não a ponto de entender totalmente as injustiças que ocorriam, sabe? Foi uma despedida triste, porque ela amava demais a Eva, apesar de tudo, e não queria se desapegar desse sentimento. Mas ela entendeu que só poderia ajudar a Eva se fosse assim.
Um tempo depois do ajuste, a casa ficou em paz. As cores mudaram. A árvore ficou mais frondosa. Ela começou a dar um fruto que só aparecia quando a Eva pedia e acabou.
Foi triste.
Fica a dica, para encontrar a Lígia é só buscar @ligiaccolares nas redes ou ligiaccolares@gmail.com.
Envie seu Diário de Sonho
Eu adoraria receber um depoimento seu ou bater um papo! Se quiser algumas dicas — tanto para sonhar quanto para enviar um texto — aqui vão:
Para sonhar, se preocupe com a higiene do sono. Evite telas num geral no momento de se preparar para dormir, garanta que a temperatura e a iluminação do quarto estão certas e coisas do tipo. Manter as mesmas ações na hora de dormir também são importantes para criar um ritual do sono e acostumar o cérebro. A alimentação também é uma questão de influência para sonhar. Por exemplo, remédios, álcool e comidas pesadas podem interferir na qualidade do sono. Por fim, ao acordar, tente passar um tempo deitado & focado no ato de lembrar o sonho: se você bombardear o cérebro com outras necessidades, como pegar o celular ou ir ao banheiro, é possível que toda a lembrança do sonho se apague em instantes. Mas, claro, nem sempre é possível…
Para escrever, pode responder esse e-mail! Se estiver sem saber muito bem o que escrever, pode me contar se sonha com frequência, se gosta de sonhar, se tem imagens ou características que se repetem, algum causo ou experiência interessante que teve, se mantém diário de sonhos, se essa newsletter afetou os seus sonhos de alguma forma... coisas desse tipo. Se achar que desenrola melhor por conversa, vamos bater um papo!
Obrigado por ler até aqui!
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Nos últimos 15 dias, eu:
Participei do episódio: “30:MIN 393 — Quarenta Dias, de Maria Valéria Rezende”.