Sobre criações, mentiras & trapaças: o que é um trickster?
Primeiro episódio da minissérie sobre tricksters | Descubra o que são os tricksters e veja o estudo pioneiro de Paul Radin
Começamos mais uma temporada. A primeira do ano: uma minissérie sobre os deuses trapaceiros & astutos que chamamos de tricksters. Quis mergulhar nessas narrativas, entender a figura complexa e ambígua que esses personagens representam e visualizar onde eles estão nos dias de hoje.
Provavelmente vocês já sabiam que isso ia rolar porque, na semana passada, lancei o primeiro episódio da parte sonora do projeto da Ponto Nemo e do Estantário: o Coral.wav. Como serão muitas histórias e figuras mitológicas, pensei que o mais interessante seria apostar em um projeto multimídia para que as narrativas também fossem conhecidas pelos leitores.
Para casar os dois projetos, vamos manter as postagens nas sextas-feiras de forma alternada — por isso, os textos das Anêmonas de Adônis seguem em pausa. Então, entre cada uma das edições escritas, você pode ouvir histórias de tricksters narradas pela professora e contadora de história Inês Breccio. Na semana passada, contamos a história de Hermes, o ladrão de rebanhos.
Você pode seguir e escutar o episódio via Spotify, mas também pode acessar o post aqui do Substack, acompanhando a história transcrita enquanto escuta:
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Muito bem. Pé na estrada...
O que é um trickster?
Antes de tudo, é importante estabelecer algumas definições básicas... afinal, o que é um trickster e o que significa esse nome complicado? O principal pesquisador que guia a minissérie é Lewis Hyde e seu livro A astúcia cria o mundo — Trickster: trapaça, mito e arte. É essa obra que pauta muitas definições que vamos usar.
Logo no começo do livro, percebemos que “trickster” é um termo de tradução difícil. O primeiro a apontar isso não é nem o Lewis Hyde, mas o tradutor da obra para o português, Francisco R. S. Innocêncio. Em uma nota de rodapé, Francisco explica que a palavra tornou-se conhecida na antropologia por designar um tipo de “herói cultural ou civilizador que se manifesta em diversas culturas”, mas identificado primeiramente nas narrativas míticas de diversos grupos indígenas norte-americanos.
Na página seguinte, Lewis Hyde adiciona outras considerações. Escreve:
Muitos, incluindo eu mesmo, consideram as conotações de trickster muito limitadas para a abrangência das atividades atribuídas a esse personagem. Alguns tentaram mudar o nome (um escritor usa trickster-transformador-herói cultural, que é adequado, mas um tanto extenso). Outros aderem a nomes locais, reclamando que o termo genérico trickster é uma invenção da antropologia do século XIX e não se ajusta bem a seus objetos nativos. Isso é verdadeiro em parte; termos nativos sem dúvida conferem um sentimento mais pleno à complexidade sagrada do trickster. Mas sua astúcia não foi inventada pelos etnógrafos. Hermes é chamado de mechaniôta na Grécia homérica, o que pode ser traduzido muito bem por trickster ou “trapaceiro”. O trickster Legba, da África Ocidental, é também chamado de Aflakete, que significa “enganei você”. O personagem dos índios winnebagos é chamado de Wakdjunkaga, que significa “o enganador”. A trapaça apareceu muito antes da antropologia.
Resolvi assumir o risco de não traduzir. Mas usem qualquer um dos termos citados quando forem indicar a newsletter para alguém, não tem problema.
Essa discussão sobre a dificuldade de tradução me levou a fazer um pequeno desvio: será que isso não evidencia ou reflete a incapacidade de alguns sistemas incorporarem aquilo que é incerto e plural, valores que são intrínsecos aos tricksters (como veremos abaixo)?
Por um lado, talvez seja uma pergunta que não faz muito sentido, porque o estabelecimento das narrativas mitológicas gregas escancara o silenciamento de uma cultura matriarcal e a deflagração de uma cultura patriarcal e de culto ao deus de todos os deuses — que é Zeus, na tradição de Hesíodo. Falamos dessa movimentação na edição Anêmonas de Adônis #02 — o nascimento dos deuses.
(No livro de Hyde, um dos apêndices é voltado justamente para a questão da exclusividade masculina nas figuras e narrativas de tricksters. As hipóteses, basicamente, vão por duas vertentes: (1) Ou os tricksters dialogam com questões muito específicas nos ritos de passagem masculina; (2) ou, pelo caráter disruptivo, as histórias de tricksters-mulheres não foram preservadas ao longo da história. De acordo com a linha de raciocínio, a hipótese mais provável é a segunda.)
Por outro lado, a presença de uma divindade como o trickster em um panteão sugere que o acaso e as incertezas são agentes fortes. Apesar da ordem, mudanças podem surgir a qualquer momento. Em religiões monoteístas, o destino é conhecido, sem espaço para para a irrupção do novo — e, se surgir, é novo apenas para nós, porque tudo faz parte do plano. A estrutura econômica em que vivemos têm o mesmo princípio centralizador, mas já discutimos isso com Mark Fisher.
Não é o tipo de questão com conclusão. Ao menos, não para mim e com o que pesquisei até aqui, mas dá para entender que os trickster refletem uma visão de mundo que pode estar distante de nós, nos dias de hoje, em muitos aspectos.
Hyde diz que os tricksters são “senhores do intermédio”. Com o pé na estrada, são os espíritos dos caminhos para o mundo exterior e das encruzilhadas onde florescem os pequenos mercados, próximos das cidades. Quando conduzem as almas, tem passagem livre entre o mundo dos vivos e dos mortos. Caminham livremente pelas trilhas que unem o divino e o mundano.
Mas, quando esses caminhos não estão abertos, os tricksters se tornam particularmente tricksters. Trocam seu papel de mensageiro ou viajante pelo de ladrão e enganador. Usam da astúcia para driblar vigilantes e adentrar fortalezas. Se não recebem aquilo que desejam, roubam — e, às vezes, é um crime que traz benefícios tanto ao deus trapaceiro quanto à nós, humanos.
Quando necessário, é também o trickster quem divide a terra do céu; ou quem separa os vivos dos mortos. Como Legba que, ao se irritar com a mãe Mawu, jogou nela a água suja dos pratos, todos os dias, até ela se cansar e ir embora, causando uma cisão entre o espaço daqui e o sagrado.
A fronteira é o espaço do trickster por excelência, seja para cruzar, apagar, deslocar ou gerar os seus limites. Como escreve Lewis Hyde, o “trickster cruza a linha e confunde distinções”, porque “é a corporificação mítica da ambiguidade e da ambivalência, da dubiedade e da duplicidade, da contradição e do paradoxo”.
Em suas trajetórias, os trapaceiros & astuciosos são vistos como heróis culturais ou criadores da cultura porque não só roubam e partilham bens essenciais, mas como moldam o mundo como um lugar acolhedor para a vida humana. Em seu Hino Homérico, Hermes cria a lira, inventa uma técnica para fazer fogo pela fricção com gravetos de madeira, tira as vacas do espaço inatingível dos deuses e as transforma em alimento para nós e faz o que pode ser considerado o primeiro sacrifício — antes mesmo de Prometeu.
O importante é que “todo um complexo de instituições culturais em torno de matar e comer gado deriva do ladrão e mentiroso Hermes”, como explica Hyde. O mensageiro de Zeus e ladrão de rebanhos, inclusive, é uma figura muito curiosa: apesar de trazer benefícios a nós, humanos, realiza todos os seus truques e invenções com um senso de divertimento e benefício pessoal. Tudo o que Hermes fez foi abalar estruturas, antes que elas se reorganizassem em uma nova ordem (que incluia ele como um dos deuses, é claro).
Ser um deus é ter poderes de criação e, de certa forma, criar é ordenar. É definir categorias aceitáveis: o que é sujeira e o que é limpo? o que pode ser dito em voz alta e o que é vergonhoso? como lidamos com os apetites? Tricksters invertem esses valores, ainda que muitas jornadas aconteçam por acaso, sem a malícia de Hermes.
Se roubam, retiram elementos de um espaço e levam a outro. Se mentem, estão testando os limites de manipulação da narrativa da realidade. Quando vagam, estão preocupados em saciar sua fome ou libido. Misturam o imaculado com o pútrido. Não são afetados pelas barreiras morais da vergonha e do silêncio e desestabilizam a estrutura dos deuses.
… mas é o tremor provocado pelos tricksters que faz os ciclos voltarem a funcionar em equilíbrio; que faz a vida circular entre as diferentes esferas.
Amaterasu, deusa xintoísta do sol, recebe Susano-o, seu irmão-trickster, em sua casa para o festival de colheita. Susano-o desmoraliza o lugar: destrói arrozais, perfura o teto, expõe uma carcaça de pônei morto e perfura e mata uma das ajudantes de Amaterasu. Em choque, a deusa do sol se isola e o mundo entra em uma era de frio e esterilidade. O trickster se torna, então, o responsável pelos ciclos sazonais.
Mas logo os deuses se reúnem e bolam um plano para tirar Amaterasu da caverna. O sol brilha novamente. Todos festejam e… pensando que as oferendas da festa estavam sendo corrompidas, Susano-o mata a deusa dos alimentos e, do seu cadáver, saem sementes de todo o tipo, como trigo, arroz e soja. Cansados das maldades de Susano-o, os deuses banem o trickster dos céus e ele passa a viver nesse mundo, o nosso, trazendo consigo os ensinamentos da agricultura.
Sendo assim, como diz Hyde, “a história que se inicia com uma colheita celestial, termina com sementes terrenas que podem ser plantadas para alimentar a raça humana”.
Por esses motivos que envolvem o sagrado e o poder criador, Lewis Hyde aponta a dificuldade de falar dos tricksters na contemporaneidade. “As pessoas me sugerem com frequência que os políticos desonestos são os tricksters modernos, mas sou cético quanto a isso. Não apenas porque seus fins são geralmente mundanos e mesquinhos demais, mas porque o trickster pertence à periferia, não ao centro”, escreve Lewis Hyde.
Ele explica que “o trickster não é um mentiroso e ladrão banal. Quando mente e rouba não é exatamente para escapar de alguma coisa ou ficar rico, mas para perturbar categorias estabelecidas da verdade e da propriedade e, ao fazê-lo, abrir caminho para possíveis novos mundos”.
Além disso, falta à maioria dos vigaristas e trapaceiros dos dias de hoje o importante contexto sagrado. Para o pesquisador estadunidense, “se não há contexto ritual, não há trickster”. Como exemplo, Hyde aponta que “Hermes não pode ser devidamente imaginado sem o mais sério Apolo, cujo gado ele rouba, ou a inconsolável Deméter, cuja filha ele resgata do submundo. O deus das estradas precisa dos territórios mais demarcados para que suas errâncias tenham significado”.
Para visualizar a questão, podemos apontar algumas divindades que fazem parte dessa lista de tricksters. Entre os nomes citados em A astúcia cria o mundo, temos:
Loki, presente no panteão nórdico;
Narrativas de Krishna, na Índia, de acordo com tradições não-sânscritas;
Na África Ocidental, temos Exu (iorubá), Legba (fon) e Ananse (ashanti);
As entidades da Lebre, do Corvo e do Coiote de alguns mitos nativos dos norte-americanos;
Na Grécia, temos Hermes, mas temos também seu consequente herdeiro romano, Mercúrio, que adquire significado também para alquimistas;
Nas narrativas do território chinês, temos o Rei Macaco;
No Japão, Susano-o (ou Susa-nö-o);
Popularizado pelo filme Moana, temos Maui, oriundo das ilhas do Pacífico;
Nas mitologias afro-americanas, temos histórias sobre o Coelho Quincas e o Macaco Significante.
Outros nomes compõem a lista (e muitos dos citados aparecerão nos próximos episódios do Coral.wav), mas penso na pergunta que Hyde propõe: se há tantos tricksters, onde eles estão agora?
O livro traz duas possibilidades (e que dialogam com a questão da tradução, apresentada no começo do texto): (1) eles estão onde sempre estiveram, mas estão fragilizados, habitando fronteiras finas e instáveis; (2) se foram, diluíram-se em outras imagens e narrativas, porque o trickster precisa de um terreno complexo, como o do politeísmo, para circular.
Corroborando com a segunda hipótese, temos diversos exemplos de cristianização das narrativas de tricksters que tentaram aproximar o diabo e o trapaceiro, esvaziando a segunda figura dos seus significados anteriores. Como explica Hyde, o diabo é uma antítese, um agente do mal. O trickster, não. “O trickster é amoral, não imoral. Ele personifica e representa aquela grande parte da nossa experiência na qual o bem e o mal estão irremediavelmente entrelaçados. Representa a paradoxal categoria da amoralidade sagrada”, conclui.
Como dito anteriormente, há forte incompatibilidade entre as cosmovisões que aceitam a força do acaso e as que defendem um plano-diretor perfeito em execução. Até hoje, não é difícil ver a associação de Exu com o diabo. Loki e Legba também foram distorcidos pelo mesmo filtro. Até mesmo Paul Radin, um dos pioneiros nos estudos sobre a figura do trickster, encontrou entre os winnebago relatos e associações de Wakdjunkaga com Satã .
O livro de Radin, inclusive, evidencia algo de suma importância até aqui: o papel ritualístico e sagrado nas narrativas de trickster. No contexto de sua pesquisa, especificamente entre os nativos da América do Norte. Mas, despachando a visão pretensiosa de que algumas crenças são mitologias e outras são religiões, entendemos que falar sobre tricksters é, antes de tudo, retirar a narrativa do espaço ritual. É um ato de profanação.
Radin e a profanação do ciclo trickster
Paul Radin foi um antropólogo estadunidense, mas nasceu na cidade polonesa de Łódź, em 1883. Ao escrever seu livro The trickster: a study in american indian mythology [O trickster: um estudo sobre a mitologia indígena norte-americana], em 1956, Radin foi um dos pioneiros na adoção do termo trickster e na divulgação das narrativas que envolviam a deidade.
Como explica, os winnebago têm a tendência de agrupar as aventuras de um personagem em unidades maiores, chamadas de ciclo. No livro, estão registrados dois dos mais importantes: o da Lebre e o de Wakdjunkaga. Radin afirma que as fortes semelhanças entre os diversos tricksters da América do Norte apontam para uma narrativa compartilhada no passado da região e com uma trama relativamente estável.
No entanto, o registro das narrativas pelo antropólogo aponta que algo de sagrado também foi perdido por ali. O ciclo de história trickster era contado de forma ritual, em locais e momentos específicos — seus contadores não podiam narrar em qualquer momento do ano, e muito menos para os ouvidos de um pesquisador branco e de fora.
Encontrar um informante que acreditava e participava daquela organização social e que, posteriormente, relatou a história escutada é o registro de que tiramos a narrativa de seu local cerimonial. Falar sobre os tricksters, como agora, é também quebrar essa enunciação — seja entre os winnebago ou retirando o hino à Hermes de seu espaço habitual, por exemplo.
Em sua pesquisa, Radin também trouxe um resumo dos mitos tricksters dos assiniboine e dos tlingit, além dos já citados ciclos trickster Wakdjunkaga e da Lebre dos winnebago de Wisconsin e de Nebraska.
Nessas histórias, é possível identificar diversos elementos que conhecemos até os dias de hoje. Em seu relato, o trickster aparece não só como figura, mas como um conjunto de temas — há questões que só essas narrativas conseguem tratar. Como Radin escreveu,
“O trickster é ao mesmo tempo criador e destruidor, doador e negador, é aquele que engana os outros e que sempre engana a si mesmo. Ele não deseja nada conscientemente. Em todos os momentos ele é forçado a se comportar de acordo com impulsos sobre os quais não tem controle. Ele não conhece nem o bem e nem o mal, ainda que seja responsável por ambos. Ele não possui valores, morais ou sociais, e está à mercê de suas paixões e apetites, mas por meio de suas ações todos os valores são criados”. [tradução]
Todas as ações dos tricksters são permeadas de humor e ironia, riso e fascínio. Entre os diversos ciclos, Radin percebeu duas concordâncias: (1) que o trickster é representado como criador do mundo e da cultura e (2) que não tem uma sequência fixa de encadeamento de episódios nos arcos.
Em suas análises, o antropólogo faz uma pergunta curiosa: por qual motivo uma divindade desejaria trazer cultura para a humanidade? Em sua resposta, Radin escreve:
“Acho que, se ele faz isso, não é como objetivo principal. É incidental ao desejo de expressar-se e desenvolver-se. Ele não pode atingir o desenvolvimento no vácuo e, consequentemente, primeiro tenta trazer alguma diferenciação para esse vácuo. (...) Como o homem [sic] começa como um ser completamente instintivo, não social e não domesticado, dominado pelo sexo e pela fome, então assim os deuses devem, ou melhor, são forçados a começar”. [tradução]
Ao longo da sua trajetória, Wakdjunkaga satiriza costumes e inverte rituais. Podemos resumir sua trajetória. Em primeiro lugar, ele quebra suas amarras com a sociedade e parte rumo a uma jornada, mesmo que repita a todo momento o quão tolo ele é. Ele se isola da natureza e do universo, perde os pontos de referência e acompanhamos seu longo caminho de volta.
Uma das primeiras mudanças ocorre quando sente medo. Entre os winnebago, assustar-se é sinal do despertar de uma consciência e do senso de realidade. Pouco tempo depois, o trapaceiro passa a se individualizar e reflete sobre seu nome: Wakdjunkaga, o tolo.
A partir daí, vemos uma busca pela delimitação física. Sua mão esquerda e direita brigam, mas logo entendem que fazem parte de um mesmo corpo. Seu intestino e ânus, de tamanho desproporcional, são reduzidos ao tamanho normal e devorados quando falham em missões que não podem cumprir.
Enquanto reordena seu corpo, o trapaceiro teme o frio e a fome e se infiltra em uma nova vila. Para isso, Wakdjunkaga engana três moças, cria uma vagina e se transforma em mulher. Em seguida, casa-se com o filho do chefe e engravida três vezes. É um dos casos interessantes para descobrir os limites morais daquela organização social: embora geralmente o trickster ria e deboche de quem caiu em suas peças, aqui ele foge assim que é descoberto.
Para Radin, “o motivo é claro; a situação está repleta de dificuldades. Muitos tabus foram quebrados, as sensibilidades de muitas pessoas foram atingidas, muitos indivíduos foram humilhados”. Enquanto foge, estabelecendo esse limite, Wakdjunkaga lembra de sua esposa e filho. Passa a ter um lugar na sociedade.
No entanto, antes precisa reduzir o tamanho do seu pênis gigantesco, que fica guardado em uma caixa. Caindo nas armadilhas de um esquilo, insere seu pênis dentro de uma árvore, onde é devorado e reduzido ao tamanho daqueles que os corpos possuem hoje. No entanto, o desfecho é diferente daquele do intestino: se estes foram queimados e devorados pelo trickster, os pedaços do pênis se tornam plantas comestíveis para os seres humanos.
E então, ficamos próximos da conclusão da narrativa. Wakdjunkaga passa ser responsável por suas ações e aqui emerge a relação entre sua história e à origem dos rituais medicinais —Wakdjunkaga veio ao nosso mundo à pedido do Criador, com o propósito de compartilhar os ritos medicinais, mas falhou.
Então, da mesma forma que a paisagem do mundo é moldada por sua interferência, como o curso do rio Mississippi, assim é nossa vida: por causa dele morremos, roubamos, ficamos doentes, somos preguiçosos e nada confiáveis... mas, há algo que precisa ser valorizado: ele nunca entrou em guerra.
Tal afirmação é importante porque, como afirma Radin, Wakdjunkaga era uma força construtora, não destruidora. Não entrar em guerra indica que a incapacidade de ajudar a humanidade pela destruição das pestes é algo compreensível, porque significaria “entrar em guerra”. Se ele parece inútil ao preparar a terra para nós, se nós rimos ou interpretamos mal suas ações, tudo bem. Ele não pertence ao nosso mundo, mas a uma ordem antiga. Eis aqui sua representação paradoxal e sua força criadora.
Assim como os outros tricksters, ele é uma entidade complexa. Ele está longe das caracterizações mais simplórias — então, atua tanto na esfera do divino, como na do bufão. Como dito anteriormente, vemos sua fome e apetite sexual incontroláveis e o impulso de vagar por ai para saciá-los.
O trickster incorpora as vagas memórias de um passado arcaico e primordial, onde ainda não existia uma diferença clara entre o divino e o não-divino. O trickster era um símbolo para esse período. Sua fome, sexo e peregrinação não pertencem nem aos deuses e nem aos humanos. Eles pertencem a outro reino, material e espiritualmente, e é por isso que nem os deuses nem os mortais sabiam o que fazer com ele. O símbolo que o trickster incorpora não é estático. Contém em si a promessa de diferenciação. (...) Por esse motivo, cada geração se ocupa em interpretar novamente o trickster. Nenhuma geração o compreende plenamente, mas nenhuma pode viver sem ele. — Paul Radin, The trickster
Como escreve Radin, o trickster é aquele “que existia antes do bem e do mal, negador, afirmador, destruidor e criador. Se rimos dele, ele sorri para nós. O que acontece com ele, acontece conosco”.
Talvez seja esse o motivo pelo qual me interessei pelo trickster. É preciso entendê-lo novamente. Ficar fascinado com suas trapaças, rir de seus erros e esperar até que o ciclo se repita, porque talvez um dos maiores paradoxos seja aquele que nos espreita à todo momento: não há vida sem morte; e o mundo pulula, até que chegue a nossa vez.
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Nos últimos 15 dias, eu:
Participei do episódio: “30:MIN 419 — Todo dia a mesma noite – a história não contada da Boate Kiss (Daniela Arbex)”;
Publiquei o episódio do: “Coral.wav — Tricksters: Hermes, o ladrão de rebanhos”.
Que livrão! Fiquei curiosa!
Amei esse texto e trouxe muita lucidez pra esse conceito de "trickster" que por anos me interessou, mas nem eu, nem ninguém que eu lia conseguia definir bem, e esta publicação provavelmente é a tentativa de definir este conceito mais bem-sucedida que li até hoje! Um texto denso que eu vou acabar relendo várias vezes, mas cheio de considerações, informações e ponderações interessantes e importantes!