Sobre criações, mentiras & trapaças: sem vergonha, sujo e engraçado
Quarto episódio da minissérie sobre tricksters | O que a sujeira e a falta de vergonha diz sobre os trapaceiros?
Nas últimas semanas, um dos vídeos que pipocou por aqui foi o de uma economista explicando que o fluxo natural da invenção do dinheiro e do comércio é uma grande balela.
A história conhecida é do sistema de trocas nas comunidades. Por exemplo, eu fabrico duas varas de pesca. Como preciso de apenas uma, vou até o vizinho e troco a outra por um punhado de arroz. Mas o que acontece seu ele não tiver arroz, apenas um figo indesejado?
Nessa linha de raciocínio, a solução parece óbvia: criamos um item neutro, valorizado e reconhecido, que poderia servir para várias trocas e funções — inclusive entre outros vizinhos. O que faria essa história ser uma balela, porém, é que ninguém precisava de uma garantia ou um item neutro, porque a comunidade se sustentava na troca de presentes.
A sobrevivência foi possível porque os excessos eram compartilhados. Se eu não preciso da minha segunda vara de pesca, faz mais sentido que eu doe para um vizinho. Ele, em um bom dia de pesca, vai me retribuir com peixes e podemos fazer um banquete, com legumes colhido na horta de outro vizinho.
Claro. Esse tipo de organização diz respeito a um modo específico de produção. Quando as comunidades passam a crescer, ser organizadas de forma rígida e hierárquica, com trabalho e produção alienada e em um ritmo frenético, com vários outros fatores qu ficaram de fora, a coisa muda de figura.
Além disso, sabemos que não é para concordar com qualquer vídeo que vemos por aí. Mas, além de fazer sentido, Lewis Hyde, autor que tem nos acompanhado durante a temporada, tem escritos que apontam para esse caminho.
Antes de publicar A astúcia cria o mundo, Hyde escreveu A dádiva: como o espírito criador transforma o mundo, apresentando essa forma de organização e colocando a produção artística dentro do sistema de trocas de presente. No que tange os deuses trapaceiros, Hyde retoma essas questões ao analisar Hermes e a configuração social no momento de surgimento de seu Hino.
Hyde afirma que vender ou comprar coisas era inapropriado em muitos locais, porque um intenso sistema de trocas de presentes garantia alimento para todos e demonstrava uma certa coesão social — não só garantia o alimento, mas apontava quem poderia partilhar da comida daquela comunidade.
Como viajante sem um lugar fixo, descontextualizado, questões vistas na edição passada, o trickster precisava encontrar formas de entrar na comunidade. Se ele não ganhasse a comida, talvez precisasse roubar.
Por isso, uma das leituras do mito de Hermes é que ele revelava a tensão entre a produção agrária tradicional e o surgimento de uma nova classe mercantil. “Na era aristocrática, a riqueza vinha dos rebanhos e do cultivo do solo; na democracia ateniense, essas fontes de riqueza ainda existiam, mas eram progressivamente desafiadas por uma economia manufatureira e pelo intercâmbio comercial com estrangeiros”, descreveu Hyde.
Aos poucos, o mundo das relações de parentesco e da “ética coletiva de troca de bens” perdia espaço para o mundo da “ética individualista (o que equivale a dizer que rouba) do mercado”, onde as hierarquias são constantemente revistas. O conflito entre Hermes e Apolo pode refletir o embate entre a classe dos artesãos, mercadores e ladrões e a da aristocracia rural.
Guiado pela fome, Hermes roubou e mentiu. Propôs uma nova ordem de mundo por meio da sua linguagem e sua capacidade simbólica... mas, antes, deslocou as regras que regiam o mundo anterior. Confundiu o limpo e o sujo; o sagrado e o profano; o sério e o engraçado — e, às vezes, inseriu o cíclico no estagnado.
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Então, vamos nessa. Pé na estrada!
Sem vergonha
Na trajetória até aqui, fica claro que os tricksters colocam em xeque a organização do mundo com seus roubos e mentiras. Seus percursos mostram que as regras antigas não funcionam mais; que eles têm uma nova proposta. Por isso, não são guiados pelo que é bom ou mau. Eles ainda nem sabem onde está o novo bom e o novo mau.
No entanto, para aqueles que se guiam pelos códigos morais anteriores, os tricksters são forasteiros, ladrões & trapaceiros. O conflito entre essas duas visões aparece, por exemplo, na articulação da vergonha.
Quando Hermes assume seu papel de ladrão de rebanhos, não sente vergonha. Maia, sua mãe, sim. Ela estava conformada em viver isolada nas cavernas e seguir o jogo do Olimpo. Zeus também manteve seu lugar. Não reconheceu o filho e nem deu a eles espaços dignos, partilhando da comida.
Mas o que Hermes quer é fazer parte do corpo social. Reivindicar aquilo que lhe parece de direito. Comer ao lado dos seus irmãos. Para isso, propõe uma mentira, uma narrativa que mostra como o mundo seria se ele estivesse onde deseja.
Entretanto, contar essa história não é uma coisa simples. Adotar esse espaço do trickster é romper com a forte pressão social da vergonha. Lewis Hyde escreve que,
talvez quando Maia diz que Hermes ‘veste o mando do descaramento’, devamos imaginar uma vestimenta que o protege desse feitiço coletivo. Qualquer que seja o caso, ele tem a liberdade de movimento e a liberdade de fala que deixam a mágica coletiva impotente.
A vergonha silencia; o pudor prende a língua. Por isso, o trickster é aquele que fala quando deveria se calar. Quando descreve o jogo que os trapaceiros fazem, Hyde aponta para um princípio organizador que separa quais áreas são de fala e quais são de silêncio. De outro modo, quais são sagradas ou profanas. Ele escreve:
Essas regras produzem dois tipos de fala e dois tipos de silêncio. ‘Profano’ significa pro fanum, diante do templo. Não consigo pensar nisso sem imaginar uma antiga praça europeia com uma movimentada feira de rua em frente à igreja ou à catedral. No pátio do lado de fora da igreja, as pessoas conversam de maneira profana por definição e, se tiverem sido adequadamente instruídas, mantêm silêncio sobre os mistérios. Dentro do templo, por outro lado, falam dos mistérios, mas mantêm-se em silêncio sobre o profano. Essas esferas de fala e silêncio, e as fronteiras reconhecíveis entre as duas, estão portanto intimamente atadas a qualquer mundo organizado de forma a distinguir entre o sagrado e o profano.
Cada fala sagrada é, então, uma fala mítica. Uma narrativa sempre propõe uma realidade organizada por aquilo que fala — e pelo que não fala, pelo que precisa ficar de fora, silenciado, profano.
Podemos visualizar essas propostas e potenciais saindo da esfera divina dos tricksters e observando nossa realidade mundana. Quando vítimas de assédio ou de regimes totalitários, por exemplo, compartilham suas experiências, rompem a forte barreira social da vergonha e propõem uma nova organização do mundo. A proposta é: que tal se tais condutas, até agora pertencentes à categoria do “aceitável”, mudassem de lugar?
De forma espelhada, rogamos para que alguns pensamentos extremistas não sejam alimentados ou veiculados; que a imprensa seja responsável ao veicular determinados acontecimentos; que o “palco” do “maluco” seja revogado. Cada história contada é uma organização proposta e destaca o que deve ser silêncio e o que pode ser dito.
Além disso, a vergonha não atua só na esfera do pudor; do respeito por si e pelos outros do grupo. Mas é um ato de reverência e temor. O medo de ser punido por ferir aquilo que foi dado como sagrado. A vergonha molda como agimos, como pensamos e como entendemos nossa individualidade e corpo.
Quando Mark Fisher apresenta o realismo capitalista, além de evidenciar o potencial criador das narrativas com seu conceito de hiperstição, aponta como a ideia de ser engajado, de propor novas organizações políticas e alternativas ao capitalismo é dado como algo ingênuo e vergonhoso. A utopia é ofensiva, fere a sacralidade do Capital. O sarcasmo e a acidez, então, são as posturas ideais.
É a consciência da linguagem e do jogo de significação, abordada na edição anterior, que faz os tricksters subverterem narrativas sagradas e profanas. Eles conhecem as armadilhas que inibem a fala. Tampouco confundem o signo com a coisa em si (o exemplo dado por Hyde é o de não confundir racismo com as diferenças na cor da pele). Ao notar o funcionamento do processo de significação, não só fogem, como combatem a vergonha.
Sujo
Assim como a inversão das áreas de silêncio e fala, a presença do escatológico nas narrativas de tricksters questionam o que é puro e o que é impuro, refletindo sobre a natureza das coisas que são tidas como lixo. É assim que Legba e Mawu separam o céu e a terra.
De forma resumida. Mawu, a criadora, vivia na terra ao lado de seu filho Legba. Quando coisas boas aconteciam, Mawu era agradecida. Quando eram coisas ruins, Legba era culpado. Incomodado, Legba rouba inhames e põe a culpa em Mawu. Ofendida, Mawu resolve se afastar da sociedade.
Como o arranjo das coisas permaneceu o mesmo, Legba se uniu a uma velha e armaram um plano. Toda vez que ela lavasse os pratos, jogaria a água suja para cima e atingiria Mawu. Com raiva, a deusa partiu e deixou a terra com o filho, indo morar nas alturas.
Nesse sentido, se Mawu criou o mundo, a sujeira na água dos pratos faz parte dela — ao menos, já fez. Como escreve Hyde, “essa história é um capítulo tardio de uma criação em desdobramento, marcando o momento em que o puro e o impuro, o limpo e o sujo, o imaculado e o manchado são separados em categorias e uma linha é traçada entre eles”.
Mawu vê a separação que ela impôs, já que é a partir do que é limpo que constitui seu mundo. Legba, não. Legba inverte o pensamento: não é a ordem que define a sujeira, mas a sujeira que define a ordem. “A sujeira é uma das ferramentas disponíveis para o trickster quando cria este mundo, o mundo do qual os céus estão muito distantes”, escreve Hyde.
Por não habitarmos o espaço do divino e do sagrado, estamos no espaço daquilo que não é totalmente puro. No entanto, a pureza excessiva é estéril. Legba mostra isso em outra história, quando precisa aprender a falar a língua dos irmãos porque ninguém consegue se comunicar.
Para apontar os potenciais de criação da sujeira, precisamos estabelecer um ciclo. Quando Susanoo adentra os domínios de Amaterasu, o deus trapaceiro macula o terreno sagrado: profana oferendas, defeca em alimentos, destrói plantações e leva a morte ao divino. Como resultado, a deusa do sol se isola (para depois retornar).
Como punição, Susanoo desce à terra. Seu primeiro feito é assassinar a deusa dos alimentos e, por acaso, liberar sementes que serão usadas na colheita, como o arroz, trigo, soja e painço. Acidentalmente, Susanoo nos apresenta o ciclo solar e dá início à agricultura.
Como explica Hyde, os tricksters não enxergam a vida e a morte como coisas separadas: você só pode obter uma se tiver a outra. Sem as fezes, não há sementes. “Como há sempre uma fome à procura dessas sementes”, escreve Hyde, “toda vez que humanos ou deuses agem para purificar a vida com a exclusão da morte, ou para proteger completamente a ordem da sujeira que é seu subproduto, o trickster frustra seus planos”.
Quero dizer que essas transformações apontam para a necessidade de um equilíbrio: não é prudente deixar as sujeiras para o lado de fora, mas tampouco é prudente conviver o tempo todo com o impuro destrutivo. É por isso que os rituais e ciclos impostos pelos tricksters são importantes.
Durante a escrita da temporada, não foram poucas as vezes que encontrei associações entre tricksters e figuras carnavalescas, principalmente na compatibilidade da postura que permite que a “sujeira” seja o princípio ordenador, ao invés da “pureza”.
Hoje, temos um entendimento do carnaval medieval como algo conservador. Há um espaço controlado e sancionado, que evidencia o que é exceção e o que é regra. Os poderosos cediam o espaço para que a festa pudesse ocorrer e, tendo o fim demarcado, todos deveriam voltar ao lugar.
Mas não podemos negar a potência revolucionária que, ambiguamente, carregou. A cada ano, as críticas se fortaleciam e as revoluções se tornaram possíveis. Hyde destaca que não foi à toa que a Igreja Protestante proibiu o carnaval tão logo conquistou seu espaço, visualizando o enfraquecimento da Igreja Católica nos períodos carnavalescos. Os protestantes compreenderam as ameaças a longo prazo.
Podemos compreender as narrativas de tricksters dentro do mesmo fluxo: podem ser libertações inofensivas, mentiras sutis ou pequenos roubos. Mas, a longo prazo, podem mudar radicalmente a sociedade.
Penso se, hoje, temos rituais efetivos para colocar a sujeira no centro das atenções. O que nos permite inverter a ordem das coisas? Será que vivemos em um momento estéril? Há pouco tempo, em uma conversa num grupo de ouvintes do 30:MIN, estávamos conversando sobre a venda de livros anticapitalistas pela Amazon. Seria essa uma inversão de sujeira e limpeza? Não me parece...
Visualizar esses rituais e lutar por eles é sempre uma forma de estabelecer os moldes do mundo. Como escreve Hyde,
“a longevidade de uma cultura reside em um percurso mais tolerante. Um percurso que não ponha o Corvo, Legba ou Susa-nö-o no centro das coisas o ano todo — esses atravessadores de fronteiras pertencem às bordas na maior parte do tempo. Mas a não ser que pensemos ter tornado esse mundo perfeito e chegado ao fim da história (especialmente se pensarmos assim), não podemos nos livrar dos criadores de sujeira. Seus labores prometem uma vida comunal que é flexível em vez de repressora”.
Engraçado
Se os tricksters propõem mudanças tão intensas, como o contexto reage? A resposta está no humor. Quando as alterações atingem um ponto crítico, é a risada que demarca a compreensão.
Quando Apolo ergue Hermes do berço, o bebê trapaceiro solta gases, joga a sujeira, e Apolo ri dos ‘presságios’ que recebe. Quando Hermes narra sua mentira para Zeus e propõe uma nova interpretação para os fatos, Zeus ri e não pune o caçula, mas pede que ele e Apolo se resolvam.
Não apenas em Hermes. Ao contar suas mentiras sobre o roubo da manteiga, Krishna diverte Yasuda. Mas quando Exu engana os dois amigos, eles levam seus pontos de vista a sério demais e brigam até a morte. Em algumas versões, a briga termina quando ambos reconhecem o trickster e se divertem com a brincadeira.
Moldar a realidade é participar de um jogo de forças. Existe uma figura conhecida como Macaco Significante. Sentado em cima de uma árvore, o Macaco Significante incita um Leão com suas mentiras. Diz que o Elefante ofendeu toda sua família. Quando o Leão se enraivece, vai tirar satisfação.
Apesar de inocente, o paquiderme não é inofensivo e o Elefante dá uma surra no Leão. Machucado, o Leão volta ao Macaco Significante que, de tanto rir, cai da árvore. Seja exigindo uma luta justa ou conseguindo escapar das garras do felino, o Macaco volta para o seu galho em segurança e o jogo recomeça.
A brincadeira do Macaco Significante evidencia a consciência da linguagem e dos processos de significação. Aqui, o derrotado é quem não consegue equilibrar o sério e o jocoso. É quem confunde a linguagem com o concreto.
O Leão está preso no mundo que o instruiu a defender sua honra, sua família, sua mãe. São conceitos que guiam, mas também confinam as atitudes. O Leão não consegue distinguir as sutilezas do jogo. Como escreve Hyde, ele não nota “as diferenças entre querer dizer algo e apenas dizê-lo, entre fato e ficção, entre amor familiar e desprezo, entre sagrado e profano, entre sua mamãezinha de fato e sua mamãezinha em uma rima”.
Sem visualizar essas mudanças, o Leão não ri.
Como entender essas fronteiras? Não há uma resposta fácil, mas é preciso conhecer os truques da linguagem para saber se equilibrar — saber quando rir e quando brigar.
Quando a cultura humana se volta contra os próprios seres humanos, o trickster aparece como uma espécie de salvador. Quando nos esquecemos de que participamos da moldagem deste mundo e nos escravizamos aos moldes que nos foram deixados pelos mortos, então um (...) [trickster] pode aparecer, às vezes apagando as velhas fronteiras de maneira tão completa que apenas o não caminho permanece e a criação pode recomeçar como se partisse do esboço; outras vezes, apenas afrouxa as velhas divisões, engraxando as juntas para que possam se mover em consonância umas com as outras, ou abrindo-as para que o comércio floresça onde ‘as regras’ o proíbem. — Lewis Hyde, A astúcia cria o mundo
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Nos últimos dias, eu:
Participei do episódio: 30:MIN 427 — “A literatura e o luto (com Keka Reis)”;
Participei do episódio: 30:MIN 428 — “O que são oficinas de escrita criativa?”;
Participei do episódio: 30:MIN 429 — “‘Tudo é rio’, de Carla Madeira”.