Anemonações #3 — Alvoradas & Paixões
Uma breve tristeza em 'Incidente em Antares', de Erico Veríssimo; um suspiro de paixão em 'Alvorada em Almagesto', de T.P. Mira-Echeverria
(Oi! Você está recebendo esse texto porque agora todas as edições pagas serão abertas depois de três meses. As outras edições, de agosto e setembro, já estão liberadas.)
Minha expectativa para essa edição era comentar sobre Incidente em Antares, romance de Érico Veríssimo publicado em 1971. No livro, acompanhamos a história de uma pequena cidade na região Sul do Brasil, chamada Antares.
O romance é divido em duas partes. A primeira mostra a constituição das classes poderosas da cidade, principalmente os Campolargos e os Vacarianos, e a relação deles com a política e história nacional — até o fim de 1963. A segunda parte começa em um momento político conturbado: Jânio Quadros já tinha renunciado, a governabilidade de João Goulart estava cada vez mais insustentável e o medo do comunismo já circulava pela sociedade.
Nesse contexto, trabalhadores em busca de melhores condições de vida, organizam uma greve geral na cidade de Antares. É essa paralisação que origina um evento insólito sinistro e faz com que a cidade confronte muitos de seus segredos apodrecidos.
Como um bom auto, o texto de Veríssimo é bastante político, sarcástico e alegórico. A crítica que constrói em relação à sociedade política que se constituía no Brasil é bem ilustrativa. Mas o problema é que ainda é muito atual (e não só pela mesma desculpa de “luta contra o comunismo” para defender atrocidades).
Quando chegamos no final do livro, faltam poucos meses para o Golpe Militar de 64. Fica claro que, apesar de todas as críticas, a situação brutal se mantém. O cenário que se desenrola é o de confronto e retorno ao normal. Não cuidamos do mundo dos vivos e nem os mortos conseguem existir justiça. Os paralelos que vemos com os dias de hoje não são coincidências, mas o resultado de um projeto de governo brutal.
Aos mortos, o mundo dos mortos. Sem justiça. Sem mudanças.
Não tenho estômago para isso — já que escrevo no meio de outubro, no desenrolar do segundo turno. (Mas, fazendo um acréscimo antes da edição sair… A ESTRELA BRILHOOOOU 🌟)
Então, resolvi escrever sobre Alvorada em Almagesto, de T.P. Mira-Echeverría. Um livro que fala, sobretudo, sobre amor.
Alvorada em Almagesto
Quando digo que Alvorada em Almagesto é um livro sobre amor, não quero dizer que se parece com as comédias românticas da Sessão da Tarde. Aqui, esse afeto toma formas bastante incomuns: não é monogâmico; não é só espiritual, mas também físico; os corpos são cadavéricos, vazios, atormentados.
Alastair Weller é um pesquisador prodígio que trabalha em Almagesto, uma planeta-plataforma que serve de laboratório para controle e aprisionamento de seres que conseguem manipular sóis. Tais formas de vida foram retiradas da dimensão onde viviam e foram enclausuradas em cascas humanas num processo violento que envolve a interrupção do processo de crescimento enquanto ainda são pequenas larvas, impedindo um desenvolvimento completo.
Enfraquecidos pela prisão em uma existência mais restritiva que a das suas naturezas, os manipularodes de sóis ocupam cadáveres, clones e outros corpos esvaziados. Alguns, encontram um espaço completamente vazio; outros, convivem com ecos da existência pregressa. Um deles enlouquece. Outro, se torna catatônico. Quando esses “maus funcionamentos” prejudicam o trabalho, os “cuidadores” são obrigados a neuronar essas formas de vida — como um abate.
Weller, no entanto, e esses seres se apaixonam e começam a percorrer uma trajetória mútua de libertação — de si, das inibições sociais, das formas de concretas de existência. O agente principal para guiar essa mudança é o amor.
Entrevistei T.P. Mira-Echeverría esses dias (e você pode ler a entrevsita aqui no Substack ou no Medium) e elu me disse como o amor é uma temática que sempre aparece em seus textos e, geralmente, também o que dá mais problema. Uma das facetas do tema que Mira-Echeverría gosta de tratar é da relação entre sexo e amor. Como me diz:
“Me interessa de tratar desse tema que ninguém quer: por que diabos vamos separar o sexo do amor? Eu acho que o amor é algo muito mais complexo e universal, e eu não gosto desses compartimentos. Queria brincar com isso. O sexo e o amor não são equivalentes, mas também não são excludentes. Como se o amor puro fosse uma coisa de seres desencarnados, e os seres humanos têm outra dimensão. Mas a dimensão física é isso o que nós temos. Não necessariamente tem que ser sexual, mas tem que ser físico também”.
Para T.P., não só a relação entre amor & sexo importa, mas é um ponto de vista filosófico abrangente. É a ideia de que o superficial não é menos importante do que uma suposta essência. Há profundidade no superficial, as coisas que estão dentro aparecem do lado de fora. Por isso, estabelece muitas relações entre a identidade e a materialidade do corpo; as mudanças internas nos personagens quase sempre acarretam em mudanças externas.
O elemento monstruoso entra como um elemento importante nessa construção — uma desnaturalização daquilo que é socialmente aceito como natural. Um relacionamento constituído por diversos parceiros, não apenas por um casal, pode ser algo monstruoso para diversas pessoas que entem esse valor como algo natural.
T.P. intensifica esse efeito de estranhamento e incômodo ao incorporar o grotesco dentro da narrativa, invertendo valores culturais. A associação do corpo-cadavér com o ato de amor, por exemplo. Mira-Echeverría faz a busca do sublime e da beleza longe da preocupação com o que é belo ou bom, mas naquilo que está no cotidiano, na ruína, na sujeira.
Faz parte desse novo ponto de vista, por exemplo, não a segurança de ser sempre aquilo que se é — como se houvesse uma essência; mas a evidência de dois pontos: a impossibilidade da pureza; a constância da mudança.
Logo no começo, notamos como esse aspecto dialógico da existência está em evidência. Todos os manipuladores de sóis, por exemplo, manipulam estrelas cujos nomes são inspirados pela cultura greco-romana em monstros híbridos — Hidra, Leucrota, Grifo… Os personagens de T.P. Mira-Echeverría são porque são com alguém, porque estão com outros. Os indivíduos são sempre compostos nessa rede interligada de relacionamentos. Em um determinado momento, um dos personagens diz: amo ergo sum, uma corruptela do penso, logo existo proferido por Descartes, valorizando não só o afetivo em detrimento do inteletcual, mas também a coletividade e a dedicação ao outro ao invés de um exercício autocentrado.
Por fim, essas trocas apontam para um estado inevitável de impermanência. Em T.P. Mira-Echeverría, o movimento é constante no que diz respeito às identidades — talvez mais no seu conto À sua imagem do que em Alvorada em Almagesto, mas, ainda assim, temos aqui um processo de mudança de Weller para se relacionar com os seres-sóis; ao mesmo tempo, os seres-sóis procuram formas de romperem com suas cascas.
Claro, mudança enfrenta sempre resistência. Ela aponta para o fato de que os alicerces nos quais as nossas vidas são baseadas são construções, são instáveis. Mas está ali. No caso de T.P., as mudanças são caminhos para o contato com o mistério da existência.
Esse é um movimento que me parece importante. Existem poucas coisas que não mudam na trajetória das nossas vidas — o fim dela, por exemplo. Inexorável. Sendo assim, que possamos aproveitar a vista e nos apaixonar.
Como diz Mira-Echeverría, “meus mundos são meio estranhos, mas não tão ruins para viver. Uma vez, me disseram que eu tinha os mundos mais bonitos que destroem universos. Não termina muito bem quando o céu se abre e me engole, mas também não me parece tão terrível”.
Anúncios & Avisos
Não sei se todos viram na última edição, mas mudamos os planos e projeções da newsletter. O que fiz deletar o valor da contribuição máxima e fazer uma nova faixa intermediária — o que antes era R$ 7/R$ 14/R$ 30, agora é R$ 5/R$ 7/R$ 14.
Sendo assim, todos os que apoiam com o valor antigo (inclusive o promocional) estão agora na faixa VIP. Mudei a ideia porque quero diminuir a quantidade de projetos mirabolantes e investir mais no espaço da newsletter.
Em primeiro lugar, agora o Estantário tem um espaço também dentro da newsletter também. Além da página do Medium, vou replicar o conteúdo aqui (depois de alguns dias). Não coloquei para copiar a lista de inscritos, então, quem quiser, tem que se inscrever separadamente. É só clicar no “Subscribed” abaixo e editar as caixinhas das newsletters inscritas.
Além disso, quero fazer algumas mudanças na Ponto Nemo ano que vem:
(1) Fazer uma minissérie e uma temporada ao longo do ano, ambas com mais episódios maiores e mais tempo de pesquisa; A ideia é trabalhar com uma minissérie de 6 episódios (março, abril e maio) e uma temporada de 10 episódios (de agosto a dezembro). Para a minissérie, já tenho uma ideia de tema: o trickster/o trapaceiro. Para a terceira temporada, ainda estou sondando. Se quiserem indicar algo, podem comentar aqui;
(2) Esse espaço das Anemonações se mantém o ano todo, mensalmente, no mesmo formato — textos menores e episódios, sobre algo que convivi no mês e os informes para os assinantes;
(3) Inaugurar um outro espaço mensal e exclusivo nas Anemonações, mas que ainda não estou visualizando. A ideia antes era a de fazer um espaço de leitura conjunta, compartilhar um cronograma e fazer um acompanhamento sobre algum dos campos que me interessam — Ficção Estranha, Mitologia, Contos de Fadas… Mas acho que algumas discussões merecem um espaço aberto, então pensei que pudesse ser um espaço de processos e diálogos, e o material daqui seria editado e finalizado em outra versão para o Estantário. Talvez, um primeiro teste com algo menor ou com filmes específicos. Mas ainda estou deixando essa ideia apodrecer… Como sempre, se quiserem opinar, só comentar aqui ou responder o e-mail.
Mês que vem, atualizo vocês sobre a produção do livro.
Obrigado por ler e apoiar!
Não deixe de conferir as últimas edições da Ponto Nemo.