Anemonações #2 — Ubiquidade
Algumas considerações sobre realidade, entropia e 'Ubik', de Philip K. Dick & dois parágrafos sobre 'Nope', de Jordan Peele
Tenho um problema com o Philip K. Dick.
Quer dizer… Em primeiro lugar, não sou um grande leitor do escritor. Escrevi sobre O homem do castelo alto no jornal Rascunho , li Fluam, minhas lágrimas, disse o policial & alguns outros textos teóricos sobre ele.
Além disso, gosto bastante das reflexões tecnológicas e filosóficas que propõe — me parece ser um olhar que quer destrinchar a essência das coisas; duvidar da concretude da realidade, do tempo-espaço & dos sujeitos. Será que somos quem somos? Que estamos onde estamos? Para quem tiver interesse, a editora Aleph publicou no Instagram uma fala do escritor comentando sobre as suas criações (e, curiosamente, ele cita os dois livros que apresentei acima).
Em O homem do castelo alto, por exemplo, ele apresenta uma realidade alternativa. Ali, Alemanha e Japão ganham a Segunda Guerra Mundial e se tornam as duas grandes potências mundiais. No momento em que a narrativa ocorre, as duas formas de governo — uma, valorizando a tradição e a espiritualidade; a outra, o progresso desenfreado e o racionalismo técnico — estão em permanente tensão. Além disso, um terceiro elemento aparece para complementar a rivalidade: movimentos revolucionários que não aceitam a nova ordem.
Como inspiração para os insurgentes, aparece a figura do Homem do Castelo Alto e um texto subversivo, de sua autoria, que roda entre aqueles que desejam um novo mundo. Na adaptação do livro, realizada pela Amazon Prime, o material é um documentário. No livro, é um encadernado chamado ‘O gafanhoto torna-se pesado’.
A narrativa mostra uma outra realidade em que o Japão e a Alemanha perderam a guerra, mas… não é a nossa realidade. Há distorções. Outros caminhos tomados. A discussão proposta ali retoma para um caminho de realidades possíveis, futuros, utopias e o próprio papel da arte (em uma discussão com um colecionador/falsificador estadunidense e alguns personagens japoneses).
Mas essas discussões sempre me pareceram chegar na margem do que Philip K. Dick propunha. Como se a proposta e o planejamento fossem muito mais interessantes do que a execução. Até que eu li Ubik e… que viagem boa.
Ubik
1992, Nova York.
Quando humanos com a capacidade de ler mentes ou manipular o futuro são comuns, como garantir liberdade & privacidade no seu dia-a-dia? Se você teme pela segurança da sua família ou de seus negócios, não deixe de contratar as Agências de Prudência!
Em Ubik, acompanhamos a história de Joe Chip, funcionário responsável por encontrar pessoas com antitalentos para a organização de prudência ‘Runciter e Associados’, dirigida por Glen e por Ella Runciter, a quase-falecida esposa, preservada em meia-vida no Moratório Entes Queridos.
Endividado até a tampa em um mundo que até abrir a porta do apartamento exige moedas, Chip descobre um antitalento inédito contra precogs (termo que designa aqueles que podem manipular o futuro e, suponho, deriva de precognição). Pat, a antipsi encontrada, não inutiliza os talentos padronizando ou borrando as possibilidades de previsão, como é de costume, mas pode alterar o passado, tornando qualquer escolha de futuro inútil.
Aqui, temos a primeira torção na realidade — uma pulga psiônica que começa a mordiscar sua orelha. Pat altera o passado. Sim, mas o livro se passa no presente. Não acompanhamos as mudanças dela e, o que faz com que a escolha seja inútil é porque, alterando o passado, o Pat muda são as memórias. As pessoas entendem que as mudanças realizadas por ela já aconteceram, há muito tempo — com algumas exceções de memória remanscente.
Ou seja, quanto da narrativa já foi modificada? Quanto do apresentado por Joe Chip pode ter sido modificado? Qual a integridade da memória dele?
Ao mesmo tempo, o rival psi de Glen Runciter, Raymond Hollis, prepara uma armadilha para o diretor e todos os melhores funcionários da agência, incluindo Joe Chip. Quando todos eles caem nos planos, a loucura do livro e as desconfianças plantadas criam raíz.
Ao longo do livro, não sabemos quem está vivo ou morto; em qual tempo se passa a realidade; quais atores influenciam na decomposição do real e dos sujeitos. Seguimos Joe Chip, mas sem ter certeza de quantas camadas compõem aquilo que ele toca.
Em Ubik, temos acesso a uma fração muito específica da construção daquela realidade. Por exemplo, aproveitando a temática da temporada, uma das personagens atinge o sono EREM — de extremely rapid eyes movement (ou, em português, movimento extremamente rápido dos olhos) — e sonha com uma vivacidade ainda mais intensa. Afinal, como ter certeza de que não somos o sonho de uma borboleta?
Em Ubik, o contato breve com questões outras que habitam o mesmo mundocontribuem para o estabelecimento de um terreno instável, ao invés da sensação de elementos que foram esquecidos.
Geralmente, quando acompanhamos uma narrativa, temos pontos para nos segurar. É possível diferenciar o que é inseguro e suspeito daquilo que é confiável e estabelecido. Quando lemos Dom Casmurro, sabemos qual parte da realidade parece mais firme e quais são as considerações distorcidas do narrador não confiável que é Bentinho.
Em Ubik, nada parece firme. Estamos no passado? No presente? No futuro? A temporalidade se estica para tantas direções que, no fundo, o ponto “original” pode ser qualquer um.
Em relação aos personagens, a própria descrição física é incerta. Personagens envelhecem e se alteram num piscar de olhos. Sinto que na minha leitura, bastante ansiosa para descobrir o desdobramento das coisas, perdi detalhes das roupas e descrições físicas — sensações que convidam à releitura.
O próprio ponto de vista da narrativa balança como uma ponte precária: qual interpretação da realidade é a correta? Existe apenas uma realidade? No final, somos levados por uma linha interpretativa bem forte que quase estabiliza a narrativa. No último capítulo, no entanto, Philip K. Dick tenta desestabilizar essa interpretação — mas, mesmo que a tentativa não seja tão forte quanto a estruturação pregressa, somos levados a pensar ‘quê?’.
Simulação, consumo & entropia
Ao escrever sobre o romance, Anderson Soares Gomes, em Humanidades em desarranjo: a ubiquidade entrópica em ‘Ubik’, de Philip K. Dick, comenta que Ubik é um marco na carreira de Dick, marcando uma mudança para a fase mais madura do autor.
Em primeiro lugar, porque a “construção narrativa de Dick se torna menos dependente de estratégias formulaicas de enredo para se concentrar quase que completamente na complexidade de ideias e formulações abstratas que são subjacentes às ações dos personagens” — a partir daí, por exemplo, abandona a necessidade de um final fechado e otimista.
Anderson também comenta que “Ubik é o primeiro romance do autor que apresenta uma preocupação com aspectos transcendentais da existência, onde religião, subjetividade e consciência formam o estofo metafísico das principais temáticas a serem articuladas através da narrativa”.
Para o estabelecimento desse momento, Gomes destaca dois pontos importantes na trajetória de Philip K. Dick: a formação filosófica, lendo diversos pensadores que refletiam sobre a construção e o sentido da realidade; e o diagnóstico que recebeu como esquizofrênico que, unido à experiência sensorial com drogas, acentua sua busca pelas formas de percepção do mundo.
Aliada à discussão sobre a natureza múltipla e subjetiva da realidade, Dick aborda em Ubik uma preocupação com forças que submetem a matéria e a tessitura do mundo empírico como um todo ao retrocesso e à degradação. De forma geral, o conjunto dessas forças é denominado entropia. Conceito surgido na termodinâmica e bastante usado na cibernética, a entropia pode ser definida de forma sucinta como a medida de desordem presente em um sistema. Por isso, a entropia é geralmente associada à tendência de uma dada realidade ao caos, à decomposição, ao retrocesso. A entropia é composta de forças que arrancam tanto os objetos quanto os indivíduos para uma espécie de origem degradada e caótica. — Anderson Soares Gomes, Humanidades em desarranjo
Como diz o crítico Bruce Gillespie, em Dick temos uma “realidade alternativa totalmente paranoica”, sem a possibilidade de confiar em nada. Hoda Shabrang e Yasamin Hemmat, em Realidades fragmentadas: uma leitura baudrillardiana de ‘Ubik’, de Philip K. Dick (no original: Shattered Realities: A Baudrillardian Reading of Philip K. Dick’s ‘Ubik’), associam essa construção da realidade à outra postura do escritor.
Ali, os escritores comentam sobre a postura intelectual de Philip K. Dick apostando na existência e na realidade formadas pela percepção interna humana, não necessariamente pelo que há de concreto — quer dizer, o que seria o concreto a partir daí? Existiria?
Por isso, todas as barreiras do livro são derrubadas e as antíteses se unem (ou, ao menos, se confudem. Não é possível separar eu e o outro; morto e vivo; público e privado; criador e criatura; realidade e ilusão; autêntico e falso; real e ilusório.
Ao fim, surge também uma própria inversão dos valores do mundo cotidiano e uma crítica ao consumismo. Em Ubik, num mundo em que objetos têm mais vitalidade que os seres, há uma busca espiritual, uma busca por uma transcendência. No entanto, a ubiquidade, a presença divina, surge como um objeto que precisa ser encomendado e consumido. Fetichismo puro.
A preservação da identidade dos sujeitos e das coisas se concretiza pela via do consumo — talvez, por essa necessidade latente de consumir desenfreadamente, aqui e lá estejamos vivendo em um mundo que se desmancha.
Não! Não Olhe!
Enquanto escrevia essa newsletter, fui assistir ao último filme do Jordan Peele, Não! Não Olhe! O título original, em inglês, é Nope. Arrisco dizer que, pensando no contexto em que o personagens diz o nome do filme, talvez a tradução ideal fosse Nem Fodendo!
Brincadeiras à parte, gosto tanto dos outros filmes dele que vi (Corra e Nós) e dos curtas de comédia, que resolvi escrever dois parágrafos de elogio — e um de crítica.
Em Não! Não Olhe!, acompanhamos a história de uma família que doma cavalos e trabalha para Hollywood. Logo nos primeiros minutos, o patriarca da família sofre um acidente misterioso e os filhos passam a tocar o negócio… até que, seis meses depois, as coisas começam a destrambelhar.
Uma coisa bastante interessante é como o filme brinca com paralelos. A abertura do filme é a reprodução de um desastre durante a gravação de um reality show fictício chamado A Casa de Gordy. Lá, o chimpanzé explorado pelo setor audiovisual (chamado Gordy) entra em um frenesi e destrói o do set de filmagem, ferindo gravemente os atores, com exceção de um garoto.
A relação entre a tragédia com Gordy e a situação insólita que no rancho ecoa ao longo do filme. Além dos elementos que surgem ao longo da história, “ah, olha aquilo com nome de estrela”, “por que tem um telescópio aí?”. Um dos paralelos que mais gostei envolve a pluralidade de sentidos que o verbo shot tem em inglês — seja como tiro, como dose de bebida, como fotografia ou a tomada em uma produção de cinema.
Mas fico pensando: será que a narrativa da rivalidade é tão forte assim? Será que sempre precisamos pensar em termos de predador & presa? Domador & domado? Natureza como conflito, luta e espaço selvagem? Como seriam as potencialidades do filme se incorporassemos mais do que há de diálogo e relações entre espécies?
De qualquer forma, fica a recomendação! Vamos conversar sobre ele.
Avisos e Agradecimentos
Nesse mês, graças ao apoio de vocês, terminei de preparar as artes para a Ponto Nemo, as Anemonações e o Estantário. Todas elas já estão nas novas redes e foram feitas pela artista Josi Reis
Além disso, deixo anunciado que comecei a programar uma atividade para o ano que vem, exclusiva para os apoiadores. A ideia é ter um espaço mensal temático para literatura (& leituras, em específico), como os espaços que existem na Tor.com. Vamos ver como essas coisas se desenrolam.
Obrigado por ler e apoiar!
Não deixe de conferir as últimas edições da Ponto Nemo.
amo o dick e vc trouxe muito bem as perguntas de “ubik” 💚