Anemonações #14 — Assombrações no Japão antigo
Considerações sobre "Kwaidan: histórias de fantasmas e outros contos estranhos do Japão antigo", de Lafcadio Hearn
(Texto publicado em 20.10.2023, primeiro para os apoiadores da Ponto Nemo. O texto ficará aberto no dia 26.01.2023. Se quiser receber esses textos em primeira mão e apoiar a continuidade do projeto, considere apoiar via Substack ou Catarse)
Em setembro deste ano, a editora Fósforo publicou Kwaidan: histórias de fantasmas e outros contos estranhos do Japão antigo, de Lafcadio Hearn, com tradução de Sofia Nestrovski. O livro é uma coletânea de 17 contos orais recolhidos pelo escritor irlandês durante sua estadia de quase catorze anos no Japão — mas a obra é também um pouco mais do que isso.
Além do capítulo final, Estudos sobre insetos, o prefácio da tradutora é um ensaio que esmiuça a conturbada vida de Lafcadio Hearn e o processo de escrita do livro. Kwaidan é a obra mais famosa de Hearn e seu título surge da mescla de dois kanjis que significam narrativa misteriosa ou fantasmagórica.
Apesar da origem estrangeira, a antologia é adotada no currículo escolar japonês como documento de uma cultura tradicional que desaparecia com a modernização da era Meiji (1868-1912). Há até uma adaptação cinematográfica de terror, Kwaidan: as quatro faces do medo (1964), de Masaki Kobayashi, que retrata alguns contos do livro.
A biografia de Hearn é tão interessante quanto as narrativas que escreve. Depois de viver na periferia de diversos países, o escritor se apaixonou pelo Japão e lá viveu até o fim da vida. Como resume Nestrovski,
nessa longa estada, veio a se casar com uma mulher japonesa, filha de um samurai, e com ela teve quatro filhos. Trocou a cidadania irlandesa pela de seu novo país (para que a mulher e os filhos pudessem ter direito a herdar a casa onde viviam), e morreu em Tóquio, onde foi enterrado seguindo os preceitos budistas, como poucas vezes havia acontecido com alguém nascido no exterior: com o caixão coberto de crisântemos e uma coroa de louros. Sete sacerdotes recitaram sutras, e uma gaiola de pássaros foi aberta para que a alma do falecido pudesse seguir com eles nas alturas.
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Kwaidan: histórias de fantasmas e outros contos estranhos do Japão antigo
Quando descobri Kwaidan, não fazia a menor ideia de quem era Lafcadio Hearn. Estava procurando coletâneas de histórias japonesas tradicionais, como os Clássicos japoneses sobrenaturais, organizado por Richard Gordon Smith (Darkside, 2023), e encontrei a publicação da editora Fósforo.
Já comentei nos episódios sobre Susanoo e na minissérie sobre os tricksters como sinto falta dessas narrativas antigas traduzidas para o português, como o Kojiki ou o Konjaku Monogatarishu. Felizmente, Kwaidan surge de fontes parecidas.
Logo no começo, é dito que “a maior parte dos Kwaidan, ou Contos estranhos, foi retirada de velhos livros japoneses, como Yaso-Kidan, Bukkyo-Hayakkawa-Zensho, Kokon Chomonshu, Tama-Sudaré e Hyaku-Monogatari. É possível que alguns tenham origem na China”. Mas soma-se a isso o fato de que Hearn colocava um pouco das histórias folclóricas irlandesas que ouvia quando criança — durante uma infância nada fácil.
Em um sobrevoo pelo prefácio do livro, descobrimos que Lafcadio viveu diversas vidas. Como explica Sofia Nestrovski, Lafcadio “viveu uma história muito mais estranha do que as que coletou”: ele “foi Patrikios Lefcadios Hearn (Πατρίκιος Λευκάδιος Χέρν), depois Patrick, Paddy, Raven, Dismal Man, Lafcadio e, finalmente, Yakumo Koizumi (小泉 八雲, que pode ser traduzido literalmente como ‘Pequena nascente das oito nuvens’)”.
Ao longo dos seus 54 anos, viveu e registrou mundos que desapareceram mais de uma vez. Publicou 29 livros dos mais variados tipos — desde dicionários e traduções, até livro de receitas. Lafcadio nasceu no dia 27 de junho de 1850, na Grécia, em Lêucade (ilha cujo nome homeageia), durante uma guerra.
Tão logo nasceu, foi enviado pelo pai à casa de uma tia-avó rica, em Dublin, onde cresceu ouvindo histórias do folclore irlandês contadas pela governanta e viajando pela biblioteca da família, lendo livros como Paraíso Perdido (1667), de John Milton, e O monge (1796), de Matthew Gregory Lewis.
Quando ficou um pouco mais velho, foi enviado para internatos. Foi no primeiro deles, na França, que rejeitou o cristianismo por ser uma doutrina “da feiura e do ódio”, como mostra Sofia Nestrovski no prefácio do livro, e perdeu um de seus olhos em um acidente nos brinquedos da instituição.
A vida de Lafcadio vira de cabeça para baixo quando a tia-avó perde toda a fortuna e ele sai dos internatos e casarões para a periferia da Inglaterra vitoriana — vive na rua por um tempo e, depois, divide a casa com uma ex-criada — antes de se mudar para os EUA. É no novo continente que Hearn se desenvolve como escritor.
Seus talentos foram descobertos quando começou um trabalho como auxiliar em uma oficina de tipografia. Seu chefe, notando a verve da escrita nos pequenos detalhes, como nos recados deixados por escrito, oferceu uma coluna no Enquirer, que Lafcadio escreveu e assinou como Dismal Man por muio tempo.
No entanto, a situação social nos EUA para os irlandeses não estava facil. A campanha racista e xenofóbica contra os imigrantes estava forte nos EUA. Além disso, Lafcadio casou-se em em Ohio com Alethea Folley, uma ex-escrava, e a união era proibida pelas leis de miscigenação racial. O casamento, que já era conturbado e repleto de brigas, ficou insustentável. Lafcadio rompe com Alethea e foge para Nova Orleans.
Lá, Hearn encontra um espaço de efervescência cultural. Pelo tempo que morou na região, registrou expressões populares, histórias de tradição oral, práticas medicinais e religiosas, como vodu e as danças cerimoniais, e até mesmo escreveu um livro de culinária para registrar as receitas creoles. Pouco tempo depois, a música dos imigrantes que ele tanto admirava daria frutos com o jazz.
Depois de Nova Orleans, Lafcadio viveu na ilha de Martinica, no Caribe, numa cidade que seria destruída pouco mais de uma década depois durante uma erupção vulcânica. Sofia Nestrovski nos conta que, “durante a temporada na Martinica, Lafcadio Hearn levava consigo, como um talismã, um leque de papel japonês com um desenho de bambu sobreposto a um horizonte de mar e céu. ‘O desenho pode parecer banal a meus amigos do Norte’, escreveu, ‘no entanto, me provoca um prazer que é quase dolorido’”.
A impressão forte se mantém mesmo depois de desembarcar no Japão, enviado como correspondendo de uma revista, e Hearn enxerga o país como um santuário. Apaixonado, o escritor corta seus laços com a imprensa (e com uma carta nada educada, já que descobriu que estava sendo prejudicado pelo contrato de trabalho) e decide tentar a vida no país. Com a ajuda de contatos britânicos, Lafcadio consegue a estabilidade financeira pela primeira vez na vida dando aulas de inglês em diversas cidades e assim se manterá até a morte, catorze anos depois, em Tóquio.
O primeiro lugar onde foi dar aula foi na pequena cidade costeira Matsue, a cerca de 230 quilômetros de Kyoto. A província foi a preferida ao longo de toda sua vida. Como escreve Nestrovski, Lafcadio a considerava “um paraíso intocado e ainda resguardado da modernização — uma ilha às avessas, isolada por um mar de montanhas. A linha de trem saindo da capital parava a algumas cidades de distância; era então preciso atravessar, de vilarejo em vilarejo, pelo caminho das montanhas, até encontrar a cidade, que pouco antes ainda havia sido um feudo, com seus castelos que falavam de um passado glorioso”.
Por outro lado, o escritor odiava as cidades grandes que se desenvolviam de acordo com os preceitos ocidentais de progresso porque viu “a modernidade engolir seu sonho de pureza”. Claro que muito dessa percepção surge de um imaginário colonizador, em que as terras distantes eram inocentes até a chegada do ocidente, força de corrupção do espaço puro, tradicional e místico. Mas é verdade que a escrita de Kwaidan se deu graças ao seu encanto pela cultura popular e, principalmente, da relação com Matsue.
No prefácio do livro, Sofia conta que foi na cidade que Lafcadio teve seu contato com um samurai que mudou sua vida. Com a queda dos guerreiros na hierarquia social, ele não poderia arranjar um bom casamento para Setsuko, sua filha de 22 anos, e então ele combinou a união com Lafcadio. Setsuko falava apenas japonês, língua que Hearn nunca dominou, mas foi uma união duradoura e que gerou quatro filhos.
Ao longo dos anos, Setsuko acabou aprendendo inglês e foi quase uma coautora de Kwaidan . Era ela quem saia coletando histórias antigas de um Japão que esvanecia enquanto caminhava pelos vilarejos, já que Lafcadio se tornava um escritor cada vez mais recluso. Nestrovski explica o processo de escrita do livro:
Setsuko fazia uma curadoria, afinava seu gosto ao do marido e decorava as histórias prediletas. À noite, à luz baixa, quando tudo estivesse quieto, recitava e encenava-as para ele. Talvez fizesse suas próprias alterações sem dizer nada; talvez ela também inserisse os, por assim dizer, colchetes, notas de rodapé e invenções de sua autoria. Ou seja, não era simplesmente que as histórias encantavam Lafcadio, mas também a maneira como eram contadas — que continham algo da pessoa que as contava. E foi partindo do trabalho dela, que permaneceu anônimo e íntimo, que Lafcadio pôde compor o seu. Pela manhã, Lafcadio anotava o que havia escutado na noite anterior. Juntou as histórias do Oriente às influências de sua vida pregressa, do folclore irlandês que outra mulher, em outra circunstância, contara só para ele.
Dos sussurros à noite & da escrita matutina
Dessas histórias compartilhadas, surgiu uma coletânea com 17 histórias de espíritos, fantasmas e outras assombrações — alguns deles, com notas de rodapé autorais em que Lafcadio explica sobre determinados termos e conceitos.
No entanto, o livro não é um guia preocupado com a formação de leitores ocidentais, mas uma reunião de contos curtos de tradição oral, sem uma escrita rebuscada e marcados por figuras sobrenaturais. Uma das suas inspirações, por exemplo, é hyaku monogatari, um costume folclórico em que cem participantes contavam uma história de terror “real” à luz de velas em um ambiente fechado — e, quando a chama se apagava, as histórias continuavam no escuro.
Junto a isso, penso que há uma tentativa de preservar o encantado e o fantástico, lentamente sufocados pela instauração do modo de vida moderno ocidental, pela escrita dessas histórias. Principalmente porque o conto que abre o Kwaidan é A história de Mimi-nashi Hoichi, um cego tocador de biwa-hoshi que, por tocar e narrar tão bem, é aliciado por assombrações para contar durante vários dias — uma similaridade entre o personagem e o autor (cego de um olho e muito míope do outro) que não passa desapercebida.
Nas histórias de Kwaidan, uma das temáticas que chama bastante a atenção é a personificação de espíritos. Em Yuki-Onna, há a união de um garoto com o espírito da neve. Em outro, A história de Aoyagi, um samurai se apaixona e, anos depois, descobre que sua esposa tem a alma de um salgueiro. Por fim, em Oshidori, Sonjo, um caçador, é visitado à noite em sonhos pela viúva do pato morto na manhã anterior.
Como explica Lafcadio na nota de rodapé, o casal de patos fazia parte de uma espécie conhecida pelos fortes laços de fidelidade e companheirismo. Então, no dia seguinte, quando o caçador volta ao lago em busca da pata, a visão que tem é a seguinte:
A ave percebeu a presença de Sonjo; mas, em vez de tentar escapar, ela nadou direto em sua direção, com o olhar estranhamente fixo nele. Então, com seu bico, ela rasgou o corpo ao meio e morreu diante dos olhos do caçador...
Outros contos envolvem a troca de vidas, como Jiu-roku-zakura, em que um homem dá sua vida pela de uma cerejeira. Alguns, poucos, são histórias de fantasmas com assuntos não resolvidos, como a noiva preocupada com uma carta de amor escondida em Um segredo que morre.
Diversas histórias trazem a figura de um monge como aquele que habita o espaço entre os dois mundos, o espiritual e o físico, e muitas vezes são responsáveis por fazer a purificação desses seres. (E há, talvez, um outro paralelo obscuro que podemos traçar com a disseminação do budismo. Em algumas das gravuras antigas, a figura de monges que dominam figuras das crenças populares, como os onis, ganham destaque para mostrar a domesticação dessa força popular para dentro das fronteiras do pensamento organizado. Arrisco dizer que a evidência desses atores mostram não só alguém capaz de caminhar entre dois mundos, mas também um resquício dessa movimentação.)
Por fim, entre outras temáticas, há a permanência de um elemento que encantou Lafcadio. Curioso sobre a paixão que viu nos japoneses pelos insetos, escreveu O sonho de Akinosuke, narrativa que ecoa O sonho de Chuang Tzu (conto conhecido por retratar um homem que, depois de sonhar vividamente ser uma borboleta, acorda e se vê incerto: seria ele alguém sonhando ser um homem ou uma borboleta?).
Na narrativa de Lafcadio, há uma inversão parecida. Um homem adormece debaixo de uma árvore e sonha. No mundo onírico, vive uma vida inteira e, quando morre nos sonhos, deseperta. Seus companheiros comentam que viram sua alma sair como borboleta, entrar no formigueiro e retornar ao corpo.
Os amigos escavam o local e descobrem que, apesar de ter adormecido por apenas alguns minutos, as marcas no formigueiro comprovam as experiências em sonho e invertem a perspectiva da realidade.
Ao longo da coletânea, apesar da presença do elemento fantástico aterrorizante, nenhum dos contos desperta medo, mas o amor e a admiração que o escritor e sua esposa sentiam pelas histórias que coletaram e puderam registrar em Kwaidan, fruto dessa parceria.
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