Temporada 02 — Episódio 03: Dormir & Sonhar
Na edição de hoje, vamos ver como dormimos, quais são os estágios do sono e de onde vem os sonhos.
Na edição passada, dissecamos 24/7: Capitalismo tardio e os fins do sono e chegamos a uma conclusão simples: o sono e o capitalismo são inimigos. Dormindo, não geramos nenhuma riqueza — seja pelo trabalho oficial ou por meios velados, como o consumo midiático. Então, cada vez mais, a nossa vida cotidiana é invadido por dispositivos que otimizam a rotina de horas improdutivas: o portátil inteligente que você leva para a cama, a casa inteligente programada para a sua rotina ou o carro que te leva sozinho para o trabalho, te dando mais tempo para consumir anúncios por aí.
Claro que, com a saúde do sono afetada, também temos sonhado menos.
Mas, afinal de contas, o que é sonhar? Como funciona esse processo enquanto dormimos?
Para responder essas perguntas, conversei com o prof. Dr. Sérgio Arthuro Mota Rolim, pesquisador no Instituto do Cérebro e no Laboratório do Sono no Hospital Universitário Onofre Lopes, na Universidade Federal do Rio Grande do Norte.
Foi um papo bastante fluído que me ajudou a entender os processos do sono e do sonho — quantas são as fases de sono e como são chamadas, quais tipos de sonho surgem em cada uma delas, o que são sonhos lúcidos, quais são os estados intermediários entre vigília e sonho (e como algumas substâncias entram nesse processo).
De qualquer forma, antes de entramos no assunto, essa é a última edição para aproveitar as duas promoções anunciadas na edição passada. A primeira delas, o cupom de desconto no site da Editora Ubu. Como fizemos na primeira temporada, a Ubu liberou um cupom de desconto de 20% para os leitores da Ponto Nemo que quiserem comprar 24/7: Capitalismo tardio e fins do sono, de Jonathan Crary. Ele é válido até o dia 19.9.2022. Para resgatar, basta entrar no site, realizar a compra e, na hora do pagamento, inserir o cupom pontonemo. Se quiser conferir do que se trata o livro, é só checar a edição passada.
Além disso, acaba nesse fim de semana a promoção de aniversário da Ponto Nemo. Já lançamos a primeira edição mensal exclusiva das Anemonações, falando sobre minha relação com as ruínas, as potencialidades narrativas que surgem desse espaço aparentemente improdutivo e como essas imagens surgiram quando li Pedro Páramo e vi Hora de Aventura.
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T02 E03: Dormir & Sonhar
“Até pouco tempo, o sono era esquecido pela medicina”, me diz Sérgio Arthuro Mota Rolim. “Talvez, uma das últimas grandes descobertas da neurociência do sono foi a de que é durante o sono que acontece a limpeza do cérebro. Nós acumulamos substâncias dos metabolismos das células e, quando dormimos, o sistema linfático, que drena essas substâncias, se torna mais ativo. É como se o sono limpasse o lixo do cérebro”, ele me diz.
Sérgio Arthuro Mota Rolim é pesquisador no Instituto do Cérebro e no Laboratório do Sono, no Hospital Universitário Onofre Lopes, na Universidade Federal do Rio Grande do Norte — a mesma universidade em que defendeu um doutorado em neurociências, pesquisando sonhos lúcidos.
Quando pergunto sobre o que não deveria faltar na abordagem do tema, é a importância recente dada ao sono para a saúde que ele destaca. “Graças à ciência e a divulgação científica, as pessoas estão percebendo que não basta ter uma boa dieta e fazer exercícios físico, é preciso descansar bem”, afirma.
“E o sonho?”, pergunto em seguida. “O sonho, também. Faz parte do processo de autoconhecimento”.
Como explica Sidarta Ribeiro em O oráculo da noite, sonhar foi apenas uma das funções que acompanhou o sono ao longo da evolução das espécies. Grande parte da vida na terra acompanha o fluxo de claro/escuro em um intervalo similar de tempo e o sono, por si só, é uma função bastante simples, encontrada nos sistemas nervosos mais primitivos — a melatonina, por exemplo, é um hormônio indutor de sono que pode ter se originado em vermes marinhos há 700 milhões de anos.
De forma resumida, o sono é uma pausa. Ele reduz a atividade cerebral e deixa o corpo quieto. Em silêncio. Quer dizer, praticamente. Sidarta resume o processo da seguinte maneira:
Quando deitamos a cabeça sobre o travesseiro e fechamos os olhos para dormir, profundas mudanças ocorrem nas ondas cerebrais e substâncias químicas são liberadas por nosso sistema nervoso. Primeiro experimentamos a entrega à penumbra das pálpebras cerradas, iniciando uma desconexão reversível entre corpo e mundo exterior. Em seguida surgem as transitórias alucinações oníricas do início do sono, que logo cedem terreno ao sono sem sonhos, um estado de abandonada quietude e grande redução da reatividade sensorial. Finalmente, após quase duas horas, começam a emergir os sonhos intensos e vívidos dos quais por vezes nos lembramos ao despertar.
Entender as diferentes fases do sono é importante para compreender o surgimento dos sonhos e quais as diferentes essenciâs deles. Ao contrário do que estamos acostumados a ler sobre o assunto, Sérgio me explica que não gosta da divisão dos estágios seguindo a nomenclatura de REM e Não-REM.
“Hoje, o sono humano é dividido em quatro estágios. Alguns, dividem em dois: em NREM e REM. Eu não gosto. Quando você faz essa divisão fica parecendo que o REM é mais importante e não é bem assim”, Sérgio me diz. “Se pensarmos em termos de sobrevivência, por exemplo, o sono profundo seria mais importante, já que é quando acontecem os principais processos de homeostase — que é o descanso, a restauração e a reposição de neurotransmissores”, explica.
Então, ao invés de categorizar os ciclos de sono em N1, N2, N3 e REM, Sérgio prefere a seguinte nomenclatura:
“O estágio um é o início do sono, é quando estamos começando a dormir. Aqui, podemos ter sonhos rápidos. Algumas pessoas ouvem vozes, outras têm um pensamento meio louco. Chamam de estágio hipnagógico, é a transição do estado de vigília para o do sono. Nem acordado, nem dormindo. No meio”, diz.
“O estágio dois é o do sono leve, ou sono superficial, em que você já está dormindo, mas qualquer estímulo forte pode te acordar. Se classificassemos a importância de um estágio pela duração, esse seria o mais importante, já que representa metade da noite, mais ou menos”, explica Sérgio. Aqui, os sonhos são parecidos com as experiências do dia ou pensamentos que você teve. São sonhos com menos caráter narrativo e mais caráter imagético ou de pensamento.
O terceiro estágio é o do sono profundo — e o nome é bastante autoexplicativo. É o momento em que o cérebro está descansando no máximo e se torna mais difícil de acordar. “O cérebro não pode parar. Se parar, está morto. Então, como descansa? Sincronizando diferentes áreas e de forma vagarosa. Nessa terceira fase, como o cérebro está oscilando numa frequência lenta, temos menos sonhos. Também não há relatos de sonhos lúcidos aqui”, afirma.
Por fim, o quarto e último estágio é o sono REM, termo que surge de rapid eyes movement [movimento rápido dos olhos]. “As primeiras pessoas que estudaram esse estágio notaram que mexemos os olhos para a direita e a esquerda, de forma rápida”, disse Sérgio, e completou: “Também viram que, quando se acordava nesse estágio, a maioria relatava sonhos. Era o sonho típico, às vezes fantástico ou bizarro, mas muito vívido, visual ou auditivo, geralmente emotivo, com caráter narrativo e uma história que você não sabe bem onde começou, mas com meio e fim”.
A presença desses ciclos é constante, mas alternada. Em uma noite de sono, fazemos diferente ciclos com esses estágios. Eles acontecem, em média, a cada uma hora e meia e alteram sua duração. “Se pegarmos uma noite inteira, vamos perceber que temos mais sono superficial e profundo na primeira metade e, na segunda, mais sono superficial e REM”, diz Sérgio. “É como se a primeira metade da noite servisse para descansar o corpo e a mente, e a segunda metade preparasse a gente para acordar”, explica.
Conforme eu estudava para a temporada, percebi que dois elementos surgem com bastante intensidade ao se falar de sonhos: as memórias e o sono REM. Em O oráculo da noite, Sidarta Ribeiro aponta o sonho como “um simulacro de realidade feito de fragmentos de memórias” — claro, sem a pretensão de sintetizar o processo todo. A complexidade simbólica da narrativa onírica, por exemplo, não cabe dentro desse resumo.
Perguntei ao Sérgio sobre essa relação entre memórias, sono REM e sonhos. O pesquisador me explicou que, como é um campo de estudo relativamente recente, as respostas ainda não são claras, mas apontam um caminho.
“O que sabemos é que, além da função óbvia de recuperar o organismo, outra função do sono é consolidar memórias”, ele diz. “Só que temos dois tipos de memórias: as declarativas, que são as que a gente fala; e as motoras, que é, por exemplo, saber andar de bicicleta”, afirma.
Esses dois tipos de memória se consolidam majoritariamente em momentos diferentes: a declarativa, no sono superficial e profundo; a motora e a emotiva, no sono REM. Nesse caminho, surgem evidências da relação entre sono e consolidação de memórias, mas, ainda que as relações sejam visíveis, pouco se provou sobre o sonho nessa equação.
Até porque a própria definição de sonho é plural. “A gente tem um conceito mais geral de sonho, que é o de que é qualquer atividade mental que acontece durante o sono, ou seja, em qualquer em estágio”, Sérgio me conta. No entanto, “tem um conceito mais restrito de sonho, de que é só aquilo que acontece no sono REM, com caráter mais fantástico ou bizarro, mas perceptualmente vívido”, ele afirma.
É que o sono REM tem um papel fundamental, principalmente no estudo dos sonhos. Quando descobriram a incidência dos sonhos e aumento dos relatos nos pacientes que despertavam nessas fases, o sonho ficou, por muitas vezes, confinado a esse estágio do sono. Mas foi a identificação dessa característica que retomou a importância dos estudos do sonho.
Em mamíferos recém-nascidos, é o sono REM que impede a atrofia do cérebro e consolida o aprendizado a longo prazo. Além disso, durante o sono REM, nosso corpo está em um estado de relaxamento quase completo. Nessa etapa, neurotransmissores inibem o movimento motor e, por mais vívido e intenso que seja o sonho, não nos mexemos — inclusive, um estudo citado por Sidarta Ribeiro em O oráculo da noite mostra que gatos com lesão nessa operação chegam a miar e se mover durante essa etapa do sono.
Quando estamos no sono REM, o cérebro entra em um estado reflexivo — presta atenção em si e no mundo, de forma segura. Isolado pelo sono. No que diz respeito à memória, durante a vigília somos bombardeados por diversos estímulos. Afinal, estamos acordados, vivendo, caminhando, trabalhando. Tendo novas experiências e recebendo novas informações. Durante o sono, as memórias reverberam, se transformam, podem se consolidar ou até mesmo serem esquecidas.
No momento do sono, o cérebro fica maleável para reorganizar o que for necessário — motivo pelo qual podemos aprender coisas, resolver problemas ou se adaptar a diversas situações depois de uma boa noite de sono. Apesar disso, a reverberação de memórias não faz com que elas sejam reativadas perfeitamente. As memórias não são guardadas no cérebro como armazenamos arquivos em um computador. Quando “guardamos” algo em nossa mente, estamos demarcando um trajetória de ativação elétrica por um conjunto específico de neurônios.
Lembrar é reativar essa rede. Por isso, as memórias não são fixas ou tão confiáveis. Sempre que lembramos, não estamos acessando um arquivo pronto, mas percorrendo trilhas demarcadas. Lembrar é sempre um ato presente e contínuo. Além disso, a reverberação da memória nem sempre é literal. Diversos grupos de neurônios têm mais de uma função e a reativação de memórias pode gerar resultados complexos, fruto de uma rede múltipla com diversas possibilidades de sincronização e combinação — as trajetórias mais prováveis são as das memórias mais reforçadas.
Traumas, por exemplo, se tornam incapacitantes por demarcarem com força um trajeto com específico. Podem também compor um looping: lembrar é reviver o trauma e, com essa lembrança, o caminho se reforça. Pesadelos recorrentes, por exemplo, se tornam inimigos do sujeito, quando dentro dessa lógica.
“Quando a luz dá lugar à escuridão, a atividade elétrica gerada espontaneamente no interior do cérebro, amorfa e desprovida de conteúdo em sua origem, atinge por fim o limiar de ativação de alguma trajetória em particular, e assim aparece a primeira imagem onírica da noite. Começa o sonho. As memórias formadas durante o dia competem agora com todas as memórias anteriores. É muito comum que, já no início do sono, a lembrança do dia anterior desapareça no turbilhão de outras memórias reativadas. Entretanto, aquilo que foi marcante retornará, inexoravelmente. Os caminhos mais profundamente entalhados durante a vigília têm maior chance de serem reativados do que os rasamente esculpidos. E é assim, pela reverberação elétrica das lembranças mais relevantes, que é tecido o banco de memórias chamado inconsciente.” — Sidarta Ribeiro, ‘O oráculo da noite’.
A dualidade entre as etapas, que gera o incômodo citado por Sérgio na nomenclatura que prioriza o sono REM, me parece surgir de um embate entre fidelidade e flexibilidade cognitiva que surge nas reestruturações que o sonho permite. Sidarta escreve que a fidelidade é um atributo do sono de ondas lentas, muito antigo e que favorece uma lembrança mais fiel e direta com a realidade vivida. Por outro lado, a flexibilidade e a reorganização das memórias parecem surgir com o sono REM, estágio muito mais recente, evolutivamente falando.
Por isso, Sidarta Ribeiro escreve que “a alternância entre sono de ondas lentas e sono REM ao longo da noite dá ao cérebro a oportunidade de realizar múltiplos ciclos de mutação e seleção de ideias”. No começo da noite, a operação principal é a de reverberar memórias nas ondas lentas, reforçando o que é mais importante e eliminando o resto. Na segunda metade, o sono REM simula um nível de alerta da vigília, aumentando o nível de stress. Ao mesmo tempo, desativa regiões de tomada de decisões e de planejamento, o que gera “deslocamentos, condensações, fragmentações e associações entre os elementos oníricos, recombinando memórias de formas inesperadas”.
A hipótese que surge no O oráculo da noite é que as primeiras três etapas do sono disparam memórias e apresentam novas conexões. Por sua vez, o sono REM brinca com essas memórias, consolida elas em um padrão, mas também recombina, simula, transforma o que recebeu em novas trilhas.
Ao visualizar esse funcionamento, me perguntei se as diferentes maneiras com que a consciência se apresenta também interfere nas diferentes maneiras de visualizar o mundo onírico. Por exemplo, já sabemos que algumas pessoas conversam em pensamento. Sozinhas. Outros, são mais sensoriais e, ao invés de ouvir uma voz guiando as ações, visualizam a tarefa mentalmente.
(Uma matéria da Superinteressante pode auxiliar a visualizar essa questão: ‘Do que é feito o pensamento? A ciência por trás da voz na sua cabeça’. )
Sérgio me conta que uma das grandes questões do estudo do sonho é a lembrança do sonhar — principalmente porque não é possível acessar o sonho diretamente. Dependemos dos acordados, que relatam suas viagens.
“Tem pessoas que dizem que nunca lembram dos sonhos. Tem pessoas que sonham praticamente toda noite. Por quê? Não sabemos ainda, mas temos alguns artigos que mostram hipóteses de que talvez isso esteja relacionado à capacidade de memória visual”, me diz Sérgio Arthuro. Por esse caminho, pessoas com um pensamento mais imagético, ao invés daqueles que se guiam de forma auditiva, parecem lembrar de mais coisas.
Aqui vale um parênteses: por mais natural que pareça, me soa estranha a categorização de ordens de pensamento seguindo sentidos específicos, como visuais ou auditivos. Explico. No podcast Naruhodo #83 – O que são sonhos?, o cientista Altay de Souza responde à seguinte pergunta de um ouvinte: pessoas cegas sonham?
Sim. Pessoas cegas, tenham elas enxergado algum dia ou não, sonham com a mesma vivacidade que pessoas videntes. Sonhar é reativar padrões de imagens que, naquele momento, significam alguma coisa e parecem reais. As imagens podem ser visuais, mas podem ser cheiros, texturas, sensações ou emoções. Mais de um sentido está trabalhando quando sentimos que estamos em uma praia, não só a visão de um horizonte marítimo.
(Esse e outros episódios estão disponíveis na playlist da temporada. Quem quiser ouvir mais sobre sonhos enquanto espera os episódios da Ponto Nemo, pode conferir o espaço no Spotify, que vou atualizando conforme encontro mais coisas.)
Por outro lado, uma pessoa que jamais ouviu pode, também, se organizar de forma menos visual e mais linguística. Então, no intuito de superar as limitações que a nomenclatura supõe, enviei uma mensagem ao Sérgio Arthuro depois da entrevista, perguntando se seria possível pensarmos em outras formas de organização.
A minha suposição era de que, quando descrevemos uma pessoa visual, estamos pensando em alguém que prioriza vivências sensoriais, e, quando dizemos auditiva, alguém que processa a informação no nível linguístico.
Ele me respondeu com uma correção e uma observação. A correção era de que a substituição poderia ser feita, mas, de um lado, teríamos os sensações e percepções, do outro, linguagem e cognição. Já a observação era um aviso: “no geral, podemos pensar assim. Mas não é tão simples”.
De qualquer forma, retomando a questão do funcionamento do cérebro e as memórias do sonho, Sérgio evidencia que a questão social também é um fator. “Quando me procuram preocupados por não lembrarem dos sonhos, eu sempre pergunto como está o sono. Ela pode estar acordando muito rápido, não anotar os sonhos ou não estar prestando atenção. Se a pessoa não dorme bem, é possível que não consiga ter sono REM de qualidade, já que dorme tarde e acorda cedo. É o que acontece com a maioria”, ele me explica.
Conforme vimos na edição passada, a luz elétrica e a tela fazem um movimento intenso de invasão do período da noite. Sérgio Arthuro chega a diagnosticar que a “privação de sono é crônica na sociedade moderna capitalista”. Ou seja, se o sono REM acontece com maior incidência na segunda metade da noite e dormimos das 00h às 06h, estamos sendo privados principalmente desse estágio do sono.
Não só perdemos o sonho, como também do controle emotivo que ocorre ali. “O sono REM está ligado à regulação emocional. Pode ser que a privação de sono REM contribua para a diminuição de sonhos e, de alguma forma, se relacione com o aumento dos casos de depressão. Seria um dos motivos”, ele explica.
Delírio, vigília & outras substâncias
Além do que ocorre no nível das memórias e rede de ativação neuronal, temos também questões que envolvem neurotransmissores no período do sono. Sérgio me diz que temos quatro grandes grupos: a serotonina, a noradrenalina, a dopamina e a acetilcolina.
“Quando estamos acordados e nosso cérebro está ativo, temos um aumento nesses grupos, por causa da atividade cognitiva, da linguagem, enfim... Mas, quando começamos a dormir, todos eles diminuem a atividade de forma gradual, conforme vamos passando pelos três primeiros estágios”, Sérgio me explica. No entanto, ele me diz que o movimento muda em um determinado estágio: “quando entramos no sono REM, há uma diferença: a acetilcolina e a dopamina voltam a aumentar e a noradrenalina e a serotonina baixam mais ainda. De alguma forma, isso explica a nossa experiência durante o sono REM, principalmente a memória do sonho”.
“Variações nos níveis desses neurotransmissores bastariam para explicar cinco características fundamentais dos sonhos: enquanto (1) as emoções intensas e (2) as fortes impressões sensoriais seriam derivadas dos altos níveis de acetilcolina, (3) o conteúdo ilógico, (4) a aceitação acrítica dos eventos oníricos e (5) a dificuldade de lembrar-se deles ao despertar seriam resultados dos níveis quase nulos de noradrenalina e serotonina.” — Sidarta Ribeiro, ‘O oráculo da noite’.
Assim, os baixos níveis de noradrenalina e serotonina explicam a instabilidade da memória do sono. Ao mesmo tempo, o aumento da dopamina explica a intensidade emocional, já que também se relaciona com o sistema límbico e o processamento de estímulos emocionais.
“Em termos de neurotransmissão”, explica Sérgio, “todas as substâncias que mexem com esses quatro grupos de neurotransmissores vão acabar influenciando o sono, de alguma forma. Os psicodélicos clássicos, como o LSD e a psilocibina, agem principalmente na serotonina”.
É interessante retomar algumas coisas que falamos na primeira temporada sobre a psilocibina — e, se você chegou agora, pode checar aqui. Quando falamos sobre as experiências enteógenas, descrevemos a quebra do fluxo serial e causal da consciência, promovida pela substância, que abre espaço para a percepção de processos simultâneos que ocorrem na vida — o que permitiria a experiência de contato com o divino interior e a conexão com a natureza.
Tal relação, entre enteógenos e o mundo dos sonhos, é bastante íntima. O ayahuasca, assim como a psilocibina, também produzem uma sensação parecida. Em seu livro, Sidarta Ribeiro traz uma citação da antropóloga brasileira Beatriz Labate para aprofundar a questão: “em sociedades tradicionais, o estado de vigília não é considerado o modo ‘normal’ ou ‘superior’ de estar no mundo e conhecer a realidade. Sonhos e outros estados alterados de consciência são considerados meios absolutamente legítimos de aprendizagem e revelação”. As máscaras de fungo, discutidas no episódio extra da primeira temporada, são apenas uma das possibilidades de visualização desses outros mundos.
Claro. Apesar de há muito tempo manipularmos as experiências e sensações do sonhar, nem sempre fazemos isso com algum intuito espiritual ou seguindo alguma cosmovisão profunda. O LSD tem similaridades notáveis com os efeitos provocados pela psilocibina e a ayahuasca — ambos com fortes estímulos visuais e presença de formas e texturas, cores e movimentos, imagens e interações que se aproximam em muito das experiências oníricas.
Já a maconha se aproxima do sonhos por um outro lado e de forma parcial, ainda que expressiva. Diminuindo a memória de curto prazo e a duração do sono REM, ela estimula a criatividade e a percepção. Sidarta Ribeiro descreve o efeito da seguinte forma: “Se a diminuição de sono REM causada pela maconha efetivamente reduz a oportunidade de sonhar e de lembrar-se dos sonhos, os efeitos da maconha na vigília são oníricos. A percepção fica mais rica, os limites entre as coisas parecem menos fixos, os laços lógicos se afrouxam, ideias distantes se associam e os pensamentos ficam mais interessantes. É como se a maconha reduzisse o sonho noturno (nightdream) em prol da divagação da vigília (daydream).”
Além disso, algumas religiões alteram a percepção dos sonhos pela própria manipulação corporal. Sono e sonho são afetados pelas formas que habitam nossa microbiota, principalmente no que diz respeito ao trato intestinal. “Quase toda serotonina produzida pelo corpo é encontrada nas vísceras”, escreve Sidarta. O escritor complementa descrevendo como diversas religiões mexem com essa região para suas visões e rituais: “Curiosamente o jejum foi e continua sendo utilizado nas principais religiões do mundo — cristianismo, islamismo, hinduísmo, budismo e judaísmo — para obter visões transformadoras”.
A verdade é que o espaço da vigília e o espaço onírico não são tão separados. O processo de reverberação de memórias, que falamos há pouco, ocorre o tempo todo — o sono se torna um espaço privilegiado porque nos afastamos dos estímulos sensoriais externos, mas, enquanto você lê esse texto, alguns sonhos estão rodando no fundo da sua mente desperta. A intensidade é bem menor, é claro. Mas Sidarta Ribeiro chega a parafrasear Freud para explicar a situação: “os sonhos são como as estrelas: estão sempre lá, mas só podemos vê-los durante a noite”.
Quando perguntei a Sérgio Arthuro sobre essa divisão entre vígilia e mundo onírico, ele me disse que “gosta de pensar em estados de consciência”. Os estados são divididos de acordo com o período de tempo, o funcionamento do cérebro e a experiência subjetiva da pessoa.
Assim, Sérgio diz que “temos os estados fisiológicos da consciência. Ou seja, todo mundo passa. São os estados padrões. Acordado, sono superficial, profundo, REM, sonho lúcido. No lado oposto, temos os estados patológicos e, muitos deles, guardam relações com o sonho e com o sono, por exemplo, o sonambulismo, paralisia do sono e a própria psicose”. O próprio ato de sonhar é próximo do delírio e da alucinação pela sua natureza: nada do que vemos em sonho está acontecendo de verdade. Criamos aquelas imagens e acreditamos fielmente nelas. Não sabemos que estamos sonhando até acordarmos — sendo a única exceção os sonhos lúcidos.
Mas, “entre os estados fisiológicos e os patológicos, temos os estados alterados. Aí entram a meditação, hipnose, jejum e o uso de substâncias, como os psicodélicos. Não são nem fisiológicos e nem patológicos. Duram um período de tempo, que é o tempo da meditação ou da dose da substância", afirma Sérgio.
“É possível portanto que as perturbações mentais da psicose dificultem o discernimento entre fantasia e realidade justamente porque resultam da invasão da vigília pelo sonho. Ainda que delírios e alucinações possam envolver qualquer combinação de modalidades sensoriais, como visão, tato e até mesmo olfato e gustação, a quebra da fronteira acontece, sobretudo e crucialmente, no domínio da linguagem. A ampla maioria dos sintomas psicóticos é auditiva, tipicamente na forma de vozes sarcásticas, derrogatórias, acusatórias ou imperativas, por vezes incessantes, que soam convincentemente ‘dentro da cabeça’ e parecem completamente reais” — Sidarta Ribeiro, ‘O oráculo da noite’.
Sonho Lúcido
Como vimos, a única exceção do estado de consciência do sonho é o dito sonho lúcido. Achei importante desvendar essa nomenclatura. Vi definições abrangentes, em que o sonho lúcido é simplesmente saber que se está sonhando. Outras, rígidas, dizendo que era preciso estar em primeira pessoa, manipular o sonho, saber que está sonhando e diversos outros itens.
Sérgio Arthuro se voltou para o sonho lúcido em mais de uma vez em suas pesquisas. Ele me diz que, de fato, temos muitas definições para esse tipo de sonho, vistas desde Aristóteles ou como prática em diversas religiões, principalmente as hinduístas. No entanto, a nomenclatura como usamos hoje foi cunhada apenas em 1913, por Van Eden, que afirmava ter lucidez durante alguns sonhos.
"Hoje em dia, falamos em graus de lucidez. O primeiro grau é aquele, durante o sonho, você sabe que está sonhando. Conforme esse grau aumenta, aumenta também a sua capacidade de controle, inclusive a capacidade de controlar o próprio sonho. Vemos como um processo gradativo”, diz.
Uma das pesquisas de Sérgio sobre sonhos lúcidos foi o da incidência dele na população brasileira. “Descobrimos que é algo relativamente comum, mas pouco recorrente. Algumas pessoas têm com mais frequência, ainda que a causa não seja clara. Mas temos algumas correlações, como das pessoas que meditam ou das que dormem mais e sem hora para acordar”, afirma.
Em O oráculo da noite, Sidarta Ribeiro defende o espaço do sonho lúcido como um espaço de muitas potencialidades e de experimentações para nos guiar em projeções do futuro. Queria saber o que Sérgio pensava disso, e ele me disse:
“Eu entendo o sonho lúcido como um estágio mais avançado da consciência humana. Primeiro, tivemos autoconsciência enquanto estávamos acordados, de se perceber como um sujeito diferente e identificar o outro, que foi se desenvolvendo ao longo dos milhares de anos. Pode ser que o sonho lúcido seja, no futuro, um espaço de simulação como a Matrix. Uma pessoa paraplégica pode treinar movimentos que auxiliem em uma fisioterapia, por exemplo. Um atleta de ginástica pode treinar saltos no sonho lúcido. Simular os movimentos e, de alguma forma, auxiliar no treino. É como treinar o movimento em uma simulação em que você não tem o perigo de se machucar. Ainda não sabemos a resposta para esse potencial do sonho lúcido, mas é um fenômeno que estamos entendendo cada vez mais”.
Então, com vontade de experimentar, perguntei se era possível treinar para ter sonho lúcido. Sérgio me diz que sim. Até mesmo para a ciência é uma preocupação. Afinal, se a incidência é baixa, é preciso induzir o fenômeno para estudá-lo.
Sérgio me apresentou algumas dicas. A primeira delas é a de tentar lembrar dos próprios sonhos. “Para uma pessoa lembrar de um sonho lúcido, ela precisa lembrar dos sonhos. Por isso, é importante fazer um diário dos sonhos ou só prestar mais atenção neles”, conta.
Outro ponto importante é o de estudar sonhos lúcidos. Ter informações e pensar neles enquanto se está acordado facilita o sonho lúcido, já que, quando dormimos, retomamos as vivências do dia.
Além disso, a mentalização do sonho lúcido antes do sono é benéfica. Alguns exercícios sugerem que você se questione, ao longo do dia e em diversas situações, se você está sonhando ou acordado. Eventualmente, você acaba transpondo essa questão para dentro dos sonhos e pode atingir, lá, um certo grau de lucidez.
Por fim, podemos usar algumas técnicas controversas. Uma delas sugere que você desperte no meio do sono REM, pense no sonho que acabou de ter e adormeça pensando nele para retomar a narrativa. Uma vez de volta, você sabe que está sonhando. Sérgio me explica que a controvérsia surge da interrupção do ciclo natural do sono e do fato de que alguns cientistas passaram a se questionar se vale a pena interrompê-lo para isso.
Outra possibilidade é o uso de equipamentos que dizem auxiliá-lo na aquisição de lucidez durante o sono. “A ideia é que o equipamento capta quando você está no sono REM e envia algum estímulo, visual ou auditivo, num limiar muito baixo. Ele não te acorda, mas faz você se tocar que está sonhando”, Sérgio me explica. No entanto, dos equipamentos que Sérgio testou, nenhum apresentou uma eficácia alta — principalmente pela incapacidade de detectar o sono REM.
Por enquanto, a capacidade técnica desses equipamentos é bastante limitada. Mas Sérgio parece otimista: num futuro, talvez eles se aperfeiçoem. Quem sabe?
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Para sonhar, se preocupe com a higiene do sono. Evite telas num geral no momento de se preparar para dormir, garanta que a temperatura e a iluminação do quarto estão certas e coisas do tipo. Manter as mesmas ações na hora de dormir também são importantes para criar um ritual do sono e acostumar o cérebro. A alimentação também é uma questão de influência para sonhar. Por exemplo, remédios, álcool e comidas pesadas podem interferir na qualidade do sono. Por fim, ao acordar, tente passar um tempo deitado & focado no ato de lembrar o sonho: se você bombardear o cérebro com outras necessidades, como pegar o celular ou ir ao banheiro, é possível que toda a lembrança do sonho se apague em instantes. Mas, claro, nem sempre é possível…
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Participei do episódio: “30:MIN 396 — Sandman, de Neil Gaiman”;
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