Sobre criações, mentiras & trapaças: destino ou acaso?
Quinto episódio da minissérie sobre tricksters | Quando a incerteza coloca fios brancos nas cabeças dos deuses
Depois de escrever a edição passada, lembrei que, quando li pela primeira vez a história do Macaco Significante, o Leão e o Elefante, algumas peças se encaixaram. Pensei em batalhas de rap e na minha confusão com o roast — formato que elege uma pessoa para ser o alvo de piadas vexatórias.
Talvez eu estivesse sendo um tanto Leão e bem menos Macaco Significante. As pessoas envolvidas nessas narrativas sabem o limite da linguagem, seu poder simbólico e sua fronteira com a realidade concreta. Precisam saber.
Caminhar pelas interpretações é ter um dos braços dado com os tricksters. Nesse penúltimo episódio, vamos acrescentar mais um domínio dos deuses trapaceiros: a sorte e o acaso — não só na vida dos mortais, mas gerando incerteza também para os deuses.
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Então, vamos nessa. Pé na estrada!
Destino ou acaso?
No panteão nórdico, Balder é uma figura pura. É belo, bondoso e associado à iluminação e esplendor do sol. No entanto, pesadelos terríveis passam a atormentar sua mente. São prenúncios de uma desgraça.
Frigga, sua mãe, começar a agir na contenção da tragédia vindoura. Exige juramentos de todas as coisas, para que nada possa machucar Balder. Humanos, animais, pedras, fogo e todas as outras coisas assumem o compromisso de jamais ferir o filho.
Por outro lado, com os juramentos realizados, Balder se torna uma fonte de divertimento. Os Aesir, deuses nórdicos guerreiros, lançavam flechas, pedras e dardos na direção de Balder, observando a invulnerabilidade do companheiro.
Mas havia alguém nada satisfeito com essa situação: Loki.
Disfarçado de mulher, Loki vai até Frigga e pergunta os detalhes dos juramentos realizados. É quando descobre uma pequena brecha. Frigga exigiu juramento de todas as coisas do mundo, exceto de um pequeno arbusto de visco, jovem demais, que crescia a oeste de Valhala.
Loki imediatamente esculpe um dardo de visco e interpela o cego Hod. Exige que ele honre Balder como os seus companheiros e lhe dá o dardo para ser arremessado. Hod atira o dardo em Balder. O projétil atravessa o corpo do jovem, que cai morto no chão.
Como Lewis Hyde resume em A astúcia cria o mundo, de onde baseio grande parte dessa reorganização da história, muitas coisas acontecem depois da tragédia, mas o desfecho dessa história é bastante conhecido. Ninguém é capaz de recuperar Balder do submundo. Loki é punido. Amarrado sob a terra com seus próprios intestinos, é condenado a sentir o gotejar venenoso de uma serpente por toda a eternidade.
(Sigyn, sua companheira, é autorizada a segurar um prato e recolher o veneno que pinga, mas precisa esvaziar o recipiente de tempos em tempos. É quando Loki se contorce de dor e causa terremotos pelo globo.)
O castigo se conecta com outra profecia de suma importância na mitologia nórdica: o Ragnarök — traduzido comumente por “crepúsculo dos deuses”, mas possivelmente mais próximo de “o destino/a sentença dos deuses”. Hyde resume a situação da seguinte forma:
Primeiro virão três terríveis invernos, sem verão entre eles; irmãos uns aos outros por cobiça; um lobo engolirá o sol, outro, a lua. As estrelas desaparecerão. Todos os grilhões e amarras se romperão, incluindo as cordas que prendem Loki à pedra. Libertado, Loki conduzirá um navio de assalto feito com as longas unhas não cortadas dos mortos. Odin enfrentará o lobo Fenrir, Thor combaterá a Serpente de Midgard, Loki lutará contra o guardião Heimdall, e todos esses morrerão. O fogo consumirá o céu e a terra, e mortais e imortais igualmente perecerão.
O que quase ninguém se lembra é que, depois disso tudo, “o mundo renasce, renovado, desse apocalipse. Dois humanos sobreviverão e repovoarão a terra, a filha do sol iluminará o céu, e os deuses reaparecerão”, conclui Hyde. Loki estabelece um ciclo de renovação do mundo.
Uma das interpretação do mito de Loki e Balder, no livro, é feita pela observação do solstício. O visco era colhido no meio do verão, momento em que o Sol atingia sua posição mais alta e começava a declinar em relação ao horizonte. Colher o visco era, então, como matar Balder.
Assim como Susanoo e o Rei Macaco, Loki mistura dois mundos: o temporal (portanto, perene) e o eterno. Se suas ações envolvem aquilo que é acidental, os juramentos que Frigga exige das coisas é algo que o fere diretamente. Por isso, procura maneiras de romper a proteção. Loki leva a morte aos deuses, o acaso ao estável. As divindades tentam prendê-lo, mas a mudança já está em curso. Os cabelos grisalhos já despontam nas têmporas e a contenção de Loki serve apenas para aumentar a pressão do colapso iminente.
Durante o Ragnarök, Loki é libertado e os deuses encontram seus destinos implacáveis. Loki é mudança, acidente, morte e acaso. Restringir a potência é adiar o inevitável da pior forma possível... Mas Exu, por exemplo, habita um espaço em que as mudanças, graduais e constantes, são mais aceitas.
Como vimos no segundo episódio do podcast, o trickster iorubá é convocado para salvar os outros deuses do definhamento. Isolados do espaço terreno, passavam fome e corriam o risco de serem esquecidos pelos homens e mulheres. Incapacitados de mudar a estrutura do cosmos, precisam do deus trapaceiro para que a ordem das coisas se alterem.
Exu aproxima os campos mortais e os imortais. Dá aos humanos a arte divinatória e devolve aos deuses a alimentação do sacrifício — sem perder suas características básicas, já que rouba os coquinhos e suas instruções envolvem caminhadas e a compreensão da linguagem simbólica em diversos contextos.
No entanto, mesmo com esse conhecimento, Exu não se torna um fiel servo do destino, mas um amigo complicado. Como conta a história que Hyde compartilha,
Ifá transmitiu aos homens as intenções do deus supremo (...) e os significados do destino. Mas Exu empenhou-se em desviar os propósitos do Deus do Firmamento, de modo que os eventos tomassem um rumo não pretendido. Ifá suavizava a estrada para os humanos, enquanto Exu ficava à espreita nessa via e tornava as coisas incertas. (...) Na mesma história aprendemos que esses dois, que parecem tão em desacordo, são, apesar disso, os melhores amigos. Ao que parece, o acidente é afeiçoado ao destino, e a incerteza é companheira íntima da certeza.
É uma brincadeira entre os dois princípios opostos. A mudança não conhece a estabilidade. Os tricksters estão sem contexto, sem uma moradia fixa. No entanto, os mundos enclausurados não conhecem aquilo fora das suas fronteiras e, mais cedo ou mais tarde, serão atingidos pela esterilidade. Por isso, o acidente carrega um potencial criador consigo.
Nem todas as religiões visualizam o acaso como parte da criação — e a reescrita da história de Loki por Snorri Sturluson serve de exemplo. Sturluson, historiador da virada do séc XII e XIII, reescreve a Edda poética (conjunto de narrativas da mitologia nórdica) em prosa... passando pelo filtro das suas crenças cristãs e, ali, o imprevisto (e, portanto, Loki) passa a ser a personificação do mal.
Como explica Hyde, “Sturluson reinscreve um mito vegetal cíclico no tempo linear, que não é mais sobre o mesmo Balder renascido a cada ano depois de ter sofrido e sobrevivido ao inverno, mas sobre um mal orientado avatar anterior de Cristo, que morreu para abrir caminho para a coisa verdadeiro”.
Mas, nos locais em que a incerteza tem reconhecida sua potencialidade, os tricksters têm seu espaço garantido nos locais de passagem. As oferendas a Hermes eram feitas em vias públicas e beiras de estrada, onde o acaso pode te encontrar a qualquer momento. De forma semelhante são as oferendas a Exu, colocadas em espaços onde mercadores, cães e pássaros silvestres podem se alimentar — lembrando que encruzilhadas são potentes espaços de acaso, acidentes e novas descobertas.
Tais sacrifícios são ambíguos, permitem a mudança fundamental e imprevista. Atuam nos poros, no limite daquilo que é conhecido, para fora do estável. A relação que Exu estabelece entre deuses e os mortais carrega essa incerteza: ao enviar a arte divinatória, coloca os deuses ligeiramente em risco de ruptura pelo acesso ao conhecimento sagrado; ao mesmo tempo, a visão que os humanos recebem é complexa, enigmática, simbólica. Não há como ter certeza dos significados.
Exu está sempre de olho, interferindo. Quem sabe o que se pode encontrar quando somos atendidos por esses deuses?
Sorte!
Por isso é tão importante compreender que a astúcia faz parte do arcabouço trickster. Os deuses trapaceiros não trazem acidentes, puros e simples, mas também apontam para as maneiras de aproveitar o imprevisto, transformá-lo em um “acidente fortunado”.
Para que se possa aproveitar a força de criação de algo inesperado, é preciso deslocar contextos e avaliar possibilidades. Uma sorte estúpida é uma sorte que não provoca mudanças, é o ganhador da loteria que gasta sua fortuna em poucos dias e volta para a rotina. Tricksters são portadores de uma sorte inteligente.
O que a descoberta da sorte revele em primeiro lugar não seja nem cosmos nem o caos, mas a mente do descobridor. Pode ser ainda melhor deixar ‘cosmos’ e ‘caos’ de lado e simplesmente dizer que um evento casual é um pequeno fragmento do mundo como ele é — um mundo sempre maior e mais complicado do que as nossas cosmologias —, e que a sorte inteligente é uma espécie de inteligência responsiva invocada pelo que quer que aconteça. — Lewis Hyde, A astúcia cria o mundo
Hermes, tão logo sai da caverna, encontra uma tartaruga “por acaso”, como escrito no hino. Em um pensamento quase instantâneo, sabe o que fazer: a transforma em um instrumento novo e magnífico, a lira.
Importante pensar que, no contexto da Grécia Antiga, tudo aquilo que não fosse conquistado por um trabalho duro ou dado como uma dádiva de algum amigo, era considerado como fruto de um roubo. A lira, “fonte de inesgotável fonte de riqueza”, não era um presente, um roubo imoral, nem fruto de uma produção extenuante. Era algo diferente, envolvendo trabalho criativo e sorte.
Não é só quando encontra a tartaruga que Hermes envolve o acaso e o destino. Ao sacrificar os bois roubados e realizar o sacrifício, o pequeno deus trapaceiro faz uma loteria dos pedaços. Distribui os lotes de maneira igualitária, redistribuindo e reformulando a hierarquia divina — e inserindo-se ao lado dos outros deuses.
Numa sociedade em que o destino era traçado pela demanda da comunidade, o golpe de sorte é uma possibilidade de alternância na estrutura. A chegada do inesperado e seus acidentes era uma forma de receber as mensagens divinas, por isso tricksters são também vistos como divindades mensageiras.
Hermes, em específico, tinha uma forma de divinação muito curiosa chamada cledonomancia — nome derivado de cledon, que significa uma observação acidental mas repletas de presságios. Como explica Hyde,
Muito tempo atrás, Pausânia descreveu este oráculo de ‘Hermes dos Mercados’: no crepúsculo, quando as lâmpadas estão sendo acesas, o consulente deixa uma ‘moeda de dinheiro local’ junto à imagem de Hermes, sussurra a pergunta para a qual espera obter resposta, cobre os ouvidos com as mãos e sai. Quando tira as mãos dos ouvidos, as primeiras palavras que escutar contêm a resposta do oráculo. Ainda melhor se as palavras forem pronunciadas por uma criança ou um louco, alguém claramente incapaz de calcular seu efeito.
Oráculos são caminhos para receber mensagens divinas e abrir espaço para o acaso, o caos e a inconsistência que permeia o nosso mundo. O que faz bastante sentido para nós, mortais, mas Exu e Loki mostram que nem os deuses escapam dessa sina.
O que os deuses aprendem quando indagam sobre a vontade dos deuses? Se o trickster Exu é o mensageiro na divinação, de quem é a mensagem que ele traz quando o próprio Obatalá joga os coquinhos? Tudo isso nos leva de volta a um ponto anterior: de Loki a Exu, se há tricksters por perto, os próprios deuses devem sofrer com a incerteza. Se nem mesmo o céu é imune ao acaso, então uma descoberta acidental deve às vezes revelar algo que não a vontade celestial ou os propósitos ocultos. — Lewis Hyde, A astúcia cria o mundo
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Nos últimos dias, eu:
Participei do episódio: 30:MIN 430 — “Volta ao mundo em 198 livros”;
Participei do episódio: 30:MIN 431 — “Literatura e saúde mental”;
Participei do episódio: 30:MIN 432 — “Como você faz para ler calhamaços?”.
Li só hoje, quase 20 dias depois. Até o resto da semana espero ficar em dia com as newsletters.
Mas vim comentar porque o Ragnarok é um assunto que me traz boas lembranças. Lá por 2001 ou 2002 o conceito não era tão famoso quanto hoje. Não tinha filme do Thor, não tinha o joguinho Ragnarok Online... tava nos quadrinhos do Thor, mas numa fase específica. Então eu tava numa fase de vício em mitologia e pesquisando para bolar alguma história pra escrever decidi focar em mitologia nórdica. E em 2002 quando eu criei um site para pessoas conhecidas e amigos publicarem seus textos online (um Wattpad da Internet jurássica) acabei chamando-o de Ragnarok (na verdade era Fanzine Ragnarok, mas não tinha nada a ver com zine muito menos com fanzine). Mantive o site por uns 5 anos. Quem me pedia eu publicava. Mas era curioso o modus operandi: as pessoas me mandavam seus contos, poemas, capítulos de histórias maiores, eu fazia uma pequena revisão ortográfica e criava um .html no Dreamweaver, fazia o link e jogava no servidor, hahaha. Bons tempos.
Mas enfim, eu mergulhei totalmente em memórias que não têm relação alguma com a sua newsletter, sorry, hahaha.
Tou adorando a série dos tricksters!