Sobre a impossibilidade de esquecer a Arte
Como ver na Casa e Estátuas de "Piranesi", escrito por Susanna Clarke, uma reflexão sobre identidades e essências
Finalmente. Tese enviada. Agora, é reorganizar a vida (e uma das tarefas é enviar o texto para os apoiadores da Ponto Nemo sobre janeiro e fevereiro. Semana que vem). Neste período de caos, li Piranesi, de Susanna Clarke, para o Clube do Livro do 30:MIN de fevereiro.
Na primeira versão do texto, destaquei o quanto fiquei reflexivo sobre como a memória é trabalhada no livro, envolvendo questões de identidade, conhecimento, cultura e escrita. Mas, conforme organizei os pensamentos na redação final da edição, tive a percepção de que Clarke propõe uma nova valorização para a Arte em Piranesi: ao realizar uma inversão filosófica do pensamento platônico, Susanna põe a Arte não como busca por um ideal inalcançável, mas como um ato criativo & criador, onde a imperfeição precede a perfeição e a retira do espaço inalcançável.
Além disso, ao trabalhar com a lembrança e o esquecimento, evidencia que, mesmo silenciada ou censurada, a arte mantém-se viva e preservada em uma estrutura que mesmo sua Ausência é repleta de sentidos.
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Sobre a impossibilidade de esquecer a arte
“A Beleza da Casa é imensurável; e sua Bondade, infinita” é uma das descrições mais marcantes que o protagonista de Piranesi, de Susanna Clarke, utiliza para descrever o local misterioso em que se encontra logo nas primeiras páginas.
O romance curto é o terceiro livro da autora. Depois do sucesso de Jonathan Strange & Mr. Norrell, um calhamaço bastante diferente publicado em 2004, Clarke publicou uma coletânea de contos dois anos depois e, em seguida, precisou pausar parte da carreira porque foi acometida com a síndrome da fadiga crônica.
Quase 15 anos depois, Piranesi chega às livrarias. Aqui, acompanhamos a história de um homem vivendo em uma Casa obscura, dividida Salões que se espalham indefinidamente pelos quatro cantos e por três níveis: um superior, onde a existência é compartilhada com algumas aves; um inferior, marcado pelo fluxo das Marés, que trazem comidas e recursos, mas também um perigo oculto; e um intermediário, onde o protagonista se encontra com o Outro, o único ser humano com quem tem contato. Do lado de fora, tudo que há são astros celestes: o Sol, a Lua e as Estrelas.
As paredes de cada um dos Salões são repletas de Estátuas em diferentes tamanhos, formas e estados de preservação: elefantes com castelos nas costas, centauros, florestas, faunos, reis… todas elas respeitadas e estudadas pelo homem. Chamam-no Piranesi. Nome dado pelo Outro, como uma piada, já que Piranesi não se lembra de sua vida passada.
Inspirado nos trabalhos de C.S. Lewis e em textos de Jorge Luís Borges, como A Casa de Astérion (e com ecos de A biblioteca de Babel), a Casa é o universo e Piranesi, seu fiel devoto e protetor.
Enquanto estudava a pauta para o podcast, encontrei uma miríade de leituras possíveis (e uma que gosto é de Mark Vernon, que traça um paralelo entre a relação de Piranesi com a Casa e a experiência religiosa), mas o que me interessa aqui é a relação com a memória.
Em primeiro lugar, pela própria constituição fluida de Piranesi. Quando o conhecemos, ele não é quem pensa ser, mas tampouco se lembra de quem era. A lembrança do seu passado não se torna um fator determinante do futuro, mas não deixa intocado o Piranesi atual — que transforma-se em algo novo, o Filho Amado da Casa.
Memória e a identidade fundem-se no percurso labiríntico de Piranesi pela Casa, fonte do paralelo entre o protagonista e Giovanni Battista Piranesi (1720-1778), arquiteto italiano bastante conhecido pelo trabalho dos Cárceres Fictícios, com paisagens hipnotizantes, labirínticas e sem espaço exterior.
No entanto, acho mais interessante o papel que a memória tem na estruturação da Casa. Um dos traços de Susanna Clarke em seus livros pode ser expresso como um tipo de arcaísmo mágico: em suas tramas, a magia e o conhecimento místico são coisas antigas & esquecidas, perdidas no processo de desencantamento e na instauração do pensamento técnico, racional e utilitário. Mas, ainda que esteja arruinada para nós, a magia não se perde. Ela encontra seus caminhos.
Em Jonathan Strange & Mr. Norrell, a retomada da magia envolve pesquisas acadêmicas, notas de rodapé, feiticeiros tatuados maltrapilhos e o reino das fadas, onde a magia floresce e as festas não têm fim — mesmo. Já em Piranesi, o Outro emprega Piranesi na busca pelo Grande e Secreto Conhecimento que, apesar de permitir a realização de feitos extraordinários, foi esquecido.
Diferentemente do reino das fadas, a Casa não é um local onde a magia ainda vive, mas uma cicatriz da sua existência. Em certo momento, Piranesi encontra o Profeta e, durante uma conversa, aprendemos a criação da Casa.
O Profeta conta para Piranesi como, no passado, as pessoas podiam transforma-se em águia, conversar com rios e montanhas e fazer estudos astronômicos com a mente, mas essa sabedoria foi sufocada por uma paixão pelo progresso e pelo futuro. No entanto, crente de que nada “simplesmente desaparece”, o Profeta afirma: “Imaginei uma espécie de energia fluindo para fora do mundo e pensei que ela tinha de se dirigir a algum lugar. Foi quando percebi que devia haver outros lugares, outros mundos”.
A Casa, então, é um destes mundos, mas um Mundo Defluente, derivado da energia que flui de outros espaços e o Profeta tornou-se o primeiro a visitá-lo.
— (…) Antes de ter visto este mundo [A Casa], pensei que, de alguma forma, o conhecimento que o criou ainda estaria aqui, sem uso, pronto para ser recolhido e reivindicado. É claro, assim que cheguei aqui, percebi como isso era ridículo. Imagine a água fluindo no subsolo. Ela flui pelas mesmas fendas, ano após ano, e desgasta a pedra. Milênios depois, há um sistema de cavernas. Mas o que não existe mais é a água que o criou a princípio. Ela se foi há muito tempo.
Ao fim da explicação, Piranesi reflete: “Será que as Estátuas existem porque incorporam as Ideias e o Conhecimento que fluíram do outro mundo para este?”. E aqui temos uma coisa bastante interessante apontada pelos professores do podcast Weird Studies em um episódio sobre o livro: a relação com a filosofia platônica.
A relação entre o mundo real e o universo da Casa ecoa de maneira bastante peculiar a relação entre a forma e a manifestação das coisas. Sinteticamente, na visão platônica, há um mundo ideal onde as formas residem e carregam a essência das coisas. Carregamos tal conhecimento conosco, uma vez que ele reside em nossa alma. No entanto, é difícil acessá-lo porque é preciso realizar um ato de memória, lembrar do que foi esquecido antes da encarnação (é a origem da reminiscência, a lembrança como base de um conhecimento humano universal).
Lembrar a forma, em Platão, não é reconstruir um passado terreno, mas entrar em contato com a memória das formas. Perto do fim do livro, Piranesi protagoniza uma cena bastante próxima desse movimento:
Um idoso passou por mim. Parecia triste e cansado. Tinha veias aparentes nas bochechas e uma barba branca eriçada. Quando ele fechou os olhos para se proteger da neve que caía, percebi que o conhecia. Ele é retratado na parede norte do quadragésimo oitavo salão do oeste. É representado como um rei com a maquete de uma cidade murada em uma das mãos enquanto ergue a outra em uma bênção.
Mark Vernon também aponta que a relação da Estátua como algo vivo, capaz de transmitir uma certa presença, também reforça a constituição filosófica do romance em uma vertente neoplatônica. Gosto de um dos diálogos em que Piranesi conversa com Raphael, mulher que conhece na segunda metade do livro, sobre a relação entre as coisas “de verdade” e as “representadas”.
— Sim — concordou Raphael. — Aqui você só pode ver uma representação de um rio ou uma montanha, mas em nosso mundo… o outro mundo… pode ver o rio e a montanha de verdade.
Isso me irritou.
— Não entendo por que você diz que posso ver só uma representação neste Mundo — falei com certa hostilidade. A palavra “só” sugere uma relação de inferioridade. Você fala como se a Estátua fosse de alguma forma inferior à própria coisa. Não creio que seja esse o caso, em absoluto. Eu diria que a Estátua é superior à própria coisa, sendo a Estátua perfeita, eterna e não sujeita à decadência.
…e aqui a gente tem uma sacada de Susanna Clarke porque, na verdade, a lógica platônica está invertida.
Se Platão aponta a existência do espaço das formas como anterior, em Piranesi é a experiência, o fato de que aquelas coisas foram vividas & esquecidas, que permite a criação da Casa e das Estátuas. O imperfeito precede o perfeito.
Não só as Estátuas entram no fluxo, como apontado no diálogo acima, mas a própria Casa. Antes que descobrisse o novo mundo, o ato imaginativo precede o ato científico: o Profeta imagina “uma espécie de energia fluindo para fora do mundo” em direção a algum lugar e então percebe a Casa. Nesta lógica invertida, não temos a observação de um fenômeno desconhecido e a sua posterior explicação, mas a invenção de um fenômeno provável e sua posterior busca. E o que mais me encanta aqui, e por isso reforço, é que talvez o nascimento da Casa tenha se dado aí, no exato momento em que o Profeta a criava na própria imaginação. A manifestação antes da forma.
Clarke valoriza a Arte e todo seu potencial criativo e transformador: ela não deriva de um ideal abstrato de perfeição inalcançável, ela os cria. Mesmo que pareça silenciada, esquecida, seja censurada e diminuída, ela persiste. Escoa e encontra lugares onde pode florescer em Estátuas, cuidadas por Piranesis que adotam a atitude contemplativa do mundo como ideal científico & religioso.
Ainda que como uma cicatriz, a própria ausência da Arte é significativa. Piranesi aponta no começo do livro: “Nenhum Salão, nenhum Vestíbulo, nenhuma Escadaria é desprovida de Estátuas. Na maioria dos Salões, elas cobrem todo o espaço disponível, ainda que se encontre aqui e ali um Pedestal, Nicho ou Absidíolo Vazios, ou mesmo um espaço vago em uma Parede incrustada de Estátuas. Essas Ausências são, ao próprio modo, tão misteriosas quanto as Estátuas em si”.
O esquecimento ocupa um espaço bastante importante no livro: são páginas que faltam nos diários, volumes que não são encontrados, lacunas nas memórias e o conhecimento que esvai. O vazio aqui não marcado pela ausência de sentido, mas como sentido em si. A memória, por mais contraintuitivo que pareça, demarca justamente a relação entre aquilo que se fala e o que se cala — e as narrativas que emergem daí.
Esquecimento, ruína e W. Benjamin
Entre as coisas que defendia para a escrita da história, Walter Benjamin queria evidenciar a importância da memória. Benjamin apontava a necessidade de historiógrafos que se posicionassem eticamente contra os regimes totalitários e suas violências dentro do fazer científico da história porque o fascismo, para Benjamin, também estava aí: na adoção do ideal neutro e objetivo, inexistente, como algo conivente com aqueles que estão no poder e silenciam as populações oprimidas.
Todo texto tem um narrador e uma visão de mundo. Esconder esse pressuposto básico é silenciar uma série de processos e estabelecer uma Verdade Única e Imutável, como se fosse possível transcrever um acontecimento direto, o “fato”, em uma narrativa. Por isso, em seu combate às historiografias oficiais, Benjamin valorizava a memória coletiva e de grupos marginalizados e se voltava para os silenciados, traumatizados, anônimos; aqueles nas ruínas do progresso.
A violência desse processo pode ser visto na Teogonia. Ao narrar a ascensão de Zeus como Todo-Poderoso, Hesíodo uniformiza as narrativas gregas em uma tradição única e coloca-se em um lugar de prestígio, portador do mito verdadeiro. A relação entre história e memória se faz interessante porque, na conclusão do canto, ao conquistar seu espaço de poder, Zeus desposa Memória [Mnémosine] e gera as nove Musas. É a partir dele que surgem as Artes, incluindo a História, todas subjugadas ao seu poder. São elas que legitimam Hesíodo e seu processo de apagamento das outras versões.
Mas há um conflito de poder entre o que pode ser lembrado e o que não pode no livro de Susanna Clarke. Piranesi está subjugado ao Outro, é nomeado por ele e é a partir dele que suas narrativas serão lembradas. Ao procurar sua identidade, encontra uma detetive que o auxilia na reorganização da sua narrativa e permite que outros pontos de vista (inclusive, do próprio Piranesi) incindam na construção de quem se é. Raphael surge como uma voz que aumenta o som de tudo aquilo que havia sido silenciado, que joga luz naquilo que havia sido esquecido.
Por isso, fiquei pensando: o que estamos esquecendo? Atualmente, com a lógica das redes e o regime neoliberal de trabalho, a Arte de Lembrar tomou formas bastante distintas — e não digo isso em um tom alarmista ou saudosista. Parte das reclamações surgem há milhares de anos, quando deixamos de lembrar as histórias para lê-las em livros (e chega de grego por hoje, cruz credo). Digo isso porque o esquecimento é, na verdade, uma crise minha muito antiga.
Desde que me entendi como alguém curioso, o receio da linha de chegada me persegue. Existe um limite de coisas para aprender e pensar? Como saber? Será que perco parte do que sobra, como um transbordamento de ideias que eu nem sequer sentirei falta já que esqueci? Algo entra, algo sai? Para quem acompanha a newsletter há algum tempo, já notou meu impulso de catalogação da vida… parte dele surge aí.
Além disso, me parece que a Memória é necessária à escrita ensaística. Não só a vivência ou o repertório, mas a transformação disso em algo profundo. Algo que reverbera e ecoa na existência de quem escreve o ensaio. Então, se não sei do que esqueço e do que lembro, como escrever?
Por isso, vacilo. Procuro leituras, inspirações, teorias… e é aqui que Piranesi me ganha. Mesmo que eu esqueça, há sempre uma certeza: a Arte persiste. Mesmo que não me lembre de mim, lembro-me Dela porque, às vezes, ela me mostra o caminho.
— Eu... achei que vocês não teriam bibliotecas.
Ela ri. O rosto dEle ruboriza.
— Só porque preferimos as histórias vivas, não significa que não podemos arquivá-las. Você vai gostar.
Ela empurra uma das portas na pedra, revelando uma série de câmaras contíguas e côncavas. Ele vê almofadas rendadas dispostas no chão, redes penduradas, tecidos e panos de diversas cores adornam o local. Sem mesas, nem estantes.
Eles caminham.
Uma crescente de vozes ecoa em cada uma das câmaras abobadadas. Vozes distintas, novas e velhas, variam entre os cômodos. Ele sente-se capaz de ouvir uma voz por vez, ou deixar-se inundar pelos sons.
— Há quanto tempo elas ecoam por aqui?
Ela ri.
— Você nem imagina.
Obrigado por ler até aqui!
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Outras produções estão disponíveis no meu site pessoal e você pode me ouvir falando de literatura no podcast 30:MIN.
Se quiser conversar, pode responder esse e-mail ou me encontrar no Instagram.
Nos últimos dias, eu:
Terminei a tese e marquei a banca de defesa! Por enquanto, é isso. Se quiserem me ouvir mais, acessem o link acima para o podcast 30:MIN.
adorei essa edição! estou morrendo de vontade de ler piranese agora.
nos últimos parágrafos, lembrei (!) de um dos primeiros diálogos de sherlock holmes com o watson no qual o detetive explica a concepção dele de o que importa ser lembrado. achei em um pdf:
"'Entenda', explicou ele, 'considero que o cérebro de um homem é
originalmente como um pequeno sótão vazio, que temos de encher com os
móveis que escolhemos. Um tolo recolhe todo tipo de trastes com que depara, de
modo que o conhecimento que lhe poderia ser útil fica atravancado, ou na
melhor das hipóteses misturado com muitas outras coisas, de modo que ele tem
dificuldade em localizá-lo. O trabalhador competente, porém, é muito cuidadoso
com relação ao que leva para seu cérebro-sótão. Não guardará nada lá a não ser
as ferramentas que possam ajudá-lo em seu trabalho, mas dessas tem grande
sortimento, e todas na mais perfeita ordem. É um erro pensar que o quartinho
tem paredes elásticas e pode se expandir até qualquer medida. Acredite que
chega uma hora em que, para cada novo conhecimento, você esquece alguma
coisa que sabia antes. É da maior importância, portanto, não ter fatos inúteis
expulsando os úteis.'
'Mas o Sistema Solar!' protestei.
'Que significa ele para mim?' interrompeu ele, impaciente. 'Você diz que
giramos em torno do Sol. Se girássemos em torno da Lua isso não faria a mínima
diferença para mim ou para o meu trabalho'"
obrigada pela edição!