Chamas banham a Terra e colapsam a sociedade como conhecemos. Quase tudo é destruído. Quando o fogo se apaga, restam apenas as cinzas, o frio, as ruínas das cidades, florestas e plantações e alguns humanos sobreviventes. Poucos.
Em A estrada, romance de Cormac McCarthy lançado em 2006, acompanhamos a trajetória de pai e filho que cruzam os EUA rumo ao sul e que tentam continuar vivos neste cenário apocalíptico em uma rotina de busca por aquecimento e abrigo, coleta de alimentos enlatados, e proteção contra a chuva, a neve, as cinzas que flutuam no ar, as doenças e as outras pessoas que vagam por aí.
Vencedor do prêmio Pulitzer (2007), o romance foi adaptado para os cinemas em 2009 — com direção de John Hillcoat, estrelando Viggo Mortensen, Kodi Smit-McPhee e Charlize Theron — e publicado no mercado brasileiro em 2007 pela editora Alfaguara, com tradução de Adriana Lisboa.
Aqui, gosto de pensar que a narrativa tem duas frentes de articulação: uma social e outra religiosa, quase profética. Mas, antes de chegarmos lá, vale o aviso:
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“A estrada”, de Cormac McCarthy
Em Capitalismo de vigilância, Shoshana Zuboff faz um panorama de meados dos anos 2000 até o começo da década de 2010, enfatizando mudanças tecnológicas que marcam um período de transição econômica — como a popularização do iPod e as novas formas de consumo e personalização que ele permite, a invenção do iPhone e as novas formas de trabalhar os dados e vender publicidade instauradas pelo Google.
O panorama deste cenário me parece importante porque, antes que a nova estrutura pudesse ser descrita com clareza, tivemos crises. Por exemplo: em 2008, uma recessão econômica atingiu diversos países do mundo. O movimento que passamos a chamar de Primavera Árabe mobilizou pessoas em diversos países do norte da África e do Oriente Médio. Em 2011, ativistas iniciaram o movimento Occupy Wall Street contra as desigualdades sociais e econômicas, gritando frases de efeito contra o 1% mais rico.
Por um breve momento, enquanto as engrenagens se reorganizavam, tívemos um período de incerteza (e, em alguns casos, esperança). No entanto, como uma das grandes forças do capitalismo é a colonização do imaginário — ou, em outras palavras, a construção da percepção de que ele é o sistema econômico último, a linha de chegada da história, o inevitável — há sempre as narrativas que apontam a máxima atribuída à Mark Fisher: “é mais fácil imaginar o fim do mundo do que o fim do capitalismo”.
A estrada me parece ser um desses casos. Ao longo da narrativa, além de McCarthy articular questões relacionadas à (im)possibilidade do futuro, o cinismo, a violência e a fé, há o uso curioso de um arcabouço de pensamento bastante moderno. (A leitura do romance também me lembrou The Last of Us, jogo lançado no mesmo ano em que Mark Fisher chamou o capitalismo neoliberal de zumbi, que discuti em outro texto aqui da newsletter.)
Em primeiro lugar, a narrativa traz uma dinâmica entre duas gerações: a do pai e a do filho. Nos termos do que Mark Fisher chama de assombrologia, temos aqui dois tempos distintos em atuação: daquilo que não mais é e o do que ainda não é. O pai é representante de um mundo que desapareceu, um passado infértil que não gerou futuros. O filho é este herdeiro impossível, que pauta suas ações a partir idealização inconcretizável.
Esta construção impossível do amanhã fica clara durante a própria jornada em direção ao sul. Em determinado momento, McCarthy escreve:
Às vezes o menino lhe fazia perguntas sobre o mundo que para ele não era sequer uma lembrança. Ele achava difícil responder. Não há passado. Do que você gostaria? Mas parou de inventar coisas porque essas coisas também não eram verdadeiras e contá-las fazia com que ele se sentisse mal. O menino tinha suas próprias fantasias. Como as coisas seriam no sul. Outras crianças.
Enquanto representante deste amanhã, o menino espera encontrá-lo no destino deles — mas é uma possibilidade descrita como “fantasia”. Outro diálogo marca a discrepância do pai/passado e do filho/futuro, quando o homem pergunta se o menino quer ouvir uma história. O menino, cansado, diz que não. As histórias do pai são mentiras, são histórias em que eles ajudam pessoas, mas a vida real não é assim. Eles não ajudam ninguém e não tem histórias felizes.
Em um dos poucos espaços seguros da narrativa, o pai sonha com seres parecidos com alienígenas. Sente que o sonho é um aviso impreciso, uma imagem que mostra ao pai que o filho é como um extraterrestre, “um ser de um planeta que já não existia. Cujas histórias eram suspeitas”, e que o homem não será capaz de reconstruir o que havia de bom no mundo passado sem, simultaneamente, reconstituir a sensação de sua perda.
Ambos estão deslocados das suas temporalidades. Pai e filho não têm ancestralidade ou planejamentos para o futuro, não há um ponto para retornar ou algum lugar que os aguarda. Vivem em um eterno presente em que todos os dias são iguais — como descreve o pai: “o dia providencial a si mesmo. A hora. Não existe o mais tarde. Agora é mais tarde”.
Soma-se à construção temporal a maneira com que McCarthy apresenta a espacialidade. Frases curtas, enumeradas e imprecisas. Com exceção do país, não temos o nome das regiões que eles percorrem. O pai as lê no mapa, mas nenhum dos nomes significa nada. Temos paisagens gerais, como cidades, florestas, desfiladeiros ou litorais, que uniformizam-se pela presença constante das ruínas, do frio e das cinzas. Talvez chova. Talvez haja neve. Mas todos os locais são igualmente inférteis.
Além do princípio de homogeinização, há aqui outros dois pontos que dialogam com as narrativas da modernidade. O primeiro, o antropocentrismo. Não há outras formas de vida que conseguem adaptar-se, apenas humanas. Vemos ninhos de pássaros que estão vazios, o homem sente um “odor remanescente de vacas”, mas acha improvável que ainda exista alguma delas ainda vivas ao observar a grama morta. O pai cogita que, quem sabe, um polvo possa viver no fundo do mar, mas não há traços de peixes nem no litoral e nem nos rios. O que salva os dois protagonistas é a invenção da comida enlatada, fruto de suas coletas.
O segundo ponto é que a narrativa tampouco prevê outras formas de organização humana. Fora do espaço da sociedade ocidental, não há outras maneiras de convivência além da individualizada e atomizada — como as famílias nucleares. Todos os outros grupos sucumbem à barbárie: são canibais, ladrões, saqueadores ou vagabundos que vagam de forma solitária.
E digo barbárie propositadamente. Os inimigos que encontram são corrompidos, maléficos. Sem um poder centralizador, as regras dão lugar ao impulso de comer bebês em espeto ou cultivar humanos como gado.
A construção de um cenário apocalíptico num contexto de catástrofe evidencia ainda mais a sensação de um capitalismo irrefutável. Como escreve Mark Fisher, narrativas que afirmam despir “o mundo de ilusões sentimentalóides para mostrá-lo ‘como realmente é’: uma guerra hobbesiana de todos contra todos, um sistema de perpétua exploração e de criminalidade generalizada”, nos levam a uma dessensibilização que retira a indignação ou interesse das corrupções que ocorrem no fluxo real.
Neste mundo “cinza e frio”, o cinismo capitalista se mantém — como se McCarthy quisesse mostrar como a natureza humana é terrível e violenta. Quando o homem conversa com um mendigo que encontra na jornada, os dois são resistentes em acreditar em qualquer coisa: o mundo é horrível, as pessoas são terríveis, nem Deus nem futuro existem e tudo estará melhor quando todos morrerem. Mas há uma esperança: o menino.
No diálogo que eles conversam sobre quando o mendigo viu o menino e o homem pela primeira vez:
Pensou que ele era um anjo?
Eu não sabia o que ele era. Nunca achei que fosse voltar a ver uma criança. Não sabia que isso ia acontecer.
E se eu disser que ele é um deus?
O velho sacudiu a cabeça. Já deixei tudo isso para trás. Faz anos. Onde os homens não podem viver deuses também não se sentem bem. Você vai ver. É melhor ficar sozinho. Então espero que não seja verdade o que você disse pois estar na estrada com o último deus seria uma coisa terrível então espero que não seja verdade. As coisas vão melhorar quando todos tiverem morrido. (...) Quando todos tivermos morrido pelo menos não haverá ninguém aqui além da morte e seus dias estarão contados também.
E aqui está a chave para a segunda aproximação da leitura: a profético/religiosa.
Ao longo da narrativa, o menino é o responsável pela compaixão e bondade com os outros. Mesmo pelos mortos. Descolado de seu tempo, as ruínas assustam o menino. É um medo que envolve o medo dos outros, sim, mas também de um certo passado espectral. Quando aproximam-se de casas e construções antigas, é como se o filho fosse assombrado pelos restos e pede permissão aos donos antigos antes de pegar roupas e alimentos.
O pai constantemente lembra ao filho de que ele é responsável por carregar “o fogo”, símbolo que indica aquele que leva luz aos incultos e bárbaros. É o menino, também, quem se choca com os atos de canibalismo — um dos mais fortes tabus modernos — e preocupa-se em estar do lado dos caras do bem, mesmo quando a linha entre quem é do bem e quem é do mal parece bastante tênue.
Até o fim do livro, o que parece ser construído é a imagem do filho enquanto um messias.
Messias em um mundo de cinzas
E o primeiro anjo tocou a sua trombeta, e houve saraiva, e fogo misturado com sangue, e foram lançados na terra; e queimou-se a terça parte das árvores, e toda a erva verde foi queimada. E o segundo anjo tocou a trombeta; e foi lançada no mar uma coisa como um grande monte ardendo em fogo, e tornou-se em sangue a terça parte do mar. E morreu a terça parte das criaturas que tinham vida no mar; e perdeu-se a terça parte das naus. E o terceiro anjo tocou a sua trombeta, e caiu do céu uma grande estrela, ardendo como uma tocha, e caiu na terça parte dos rios, e nas fontes das águas. — Apocalipse 8, 7-10
Alguns paralelos sobre o fim do mundo em A estrada e o texto do Apocalipse surgiram aos poucos durante minha leitura. São as chamas que iniciam o fim do mundo de A estrada, um fim do mundo que age sob a terra e os mares na mesma proporção — inclusive, com cenas de navios partidos — em um processo que não se encerrou ainda.
No entanto, para além do processo descritivo da catástrofe, surge a figura do menino como uma esperança religiosa — e, para isso, vamos ao final do livro. Então, se você for daqueles preocupados com spoiler, pule… mas acredito que valha a pena.
Quando chegamos ao final do livro, o pai e o filho tem uma conversa final. Aqui, o menino pede para morrer ao lado do pai, que prontamente nega.
Você não pode. Você tem que levar o fogo.
Não sei como fazer isso.
Sabe sim.
Ele é real? O fogo?
É sim.
Onde ele está? Não sei onde ele está.
Sabe sim. Está dentro de você. Sempre esteve aí. Posso ver.
Só me leve com você. Por favor.
Não posso.
Por favor, Papai.
Não posso. Não posso segurar meu filho morto em meus braços. Pensei que pudesse mas não posso.
Você disse que nunca ia me deixar.
Eu sei. Sinto muito. Você tem o meu coração todo. Sempre teve. Você é o melhor dos caras. Sempre foi. Se eu não estiver aqui ainda pode falar comigo. Fale comigo e eu vou falar com você. Você vai ver.
Após a morte, o Pai une-se ao Filho — habitado pelo Fogo: uma tríade bastante comum na religião católica. Além disso, o menino, que havia aprendido a rezar há pouco tempo, também encontra uma família disposta a adotá-lo. Um casal, composto por um pai, dois filhos (uma menina e um menino) e uma mãe, disposta a professar palavras religiosas.
No texto em que falei sobre Stalker, filme de Tarkovsky, comentei sobre a dificuldade de desejar quando não há fé e, aqui, McCarthy propõe uma dinâmica parecida, mas ao contrário.
Quando ouve as palavras religiosas da mulher, o menino aprende sobre o mistério. Não o mistério como um suspense, mas o mistério religioso (que também compõe sua imagem sagrada). O menino recebe o sopro de Deus e torna-se portador do futuro prometido — um futuro perdido, sim, mas um futuro que crê.
A mulher quando o viu passou os braços ao seu redor e o abraçou. Oh, ela disse, estou tão feliz em te ver. Ela às vezes lhe falava sobre Deus. Ele tentava falar com Deus mas a melhor coisa era conversar com seu pai e falava com ele e não se esquecia. A mulher disse que estava tudo bem. Disse que o sopro de Deus era o seu sopro ainda embora passasse de homem para homem ao longo do tempo.
Antes havia trutas nos riachos das montanhas. Você podia vê-las paradas na correnteza cor de âmbar onde as extremidades brancas de suas barbatanas encrespavam de leve a superfície. Tinham cheiro de musgo na mão. Polidas e musculosas e se retorcendo. Em suas costas havia padrões sinuosos que eram mapas do mundo em seu princípio. Mapas e labirintos. De algo que não podia ser resgatado. Não podia ser endireitado. Nos vales estreitos e profundos em que eles viviam todas as coisas eram mais antigas do que o homem e num murmúrio contínuo falavam de mistério.
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No último mês, eu:
Participei do episódio: “30:MIN 484 – Detalhe Menor, de Adania Shibli”;
Participei do episódio: “30:MIN 485 – Sagarana, de Guimarães Rosa”.
Caraca, Dr. Arthur, que ensaio, hein? Eu sempre deixo de comentar, mas seus textos só evoluem. Você parece muito à vontade neste gênero. O único defeito foi, aparentemente, não ter gostado muito do livro, haha. Brincadeiras à parte, muito bom!
Ficou muito boa a edição! Adorei a apresentação e a crítica