Oficialmente acabada a minissérie de bibliotecas, livrarias & outros lugares de livros!
É sempre gostosa a conclusão dessas edições temáticas. Dessa vez, a Sandra Abrano, da editora Bandeirola, me enviou dois postais em homenagem aos textos — um deles feito para a coleção “biblioteca pessoal de Bráulio Tavares”; outro, para a campanha de Contemplação, livro de Kafka que compõe a coleção Clássicos Vintage (como recado, descobri o autor peruano César Vallejo, paixão literária da Sandra).
Deixo registrado meu agradecimento triplo!
Para as próximas edições, temos um cronograma estabelecido. Vamos falar sobre jogos! Hoje, vamos ver uma parte mais teórica sobre o que é ser um homo ludens, o que é um jogo e quais os tipos deles de acordo com quem pensa sobre isso. Infelizmente, esse período de fechar o capítulo da tese está mais corrido do que eu planejei — como vocês devem ter percebido pela quantidade de erros de digitação da edição passada —, mas também não tenho previsão de melhoras.
Por essa razão, teremos uma segunda parte com alguns outros pensamentos meus sobre jogos, narrativas e livros, concluindo o tópico. Depois, em julho, teremos duas edições solo & curtas para (1) vocês conseguirem respirar e/ou desafogar quaisquer outras edições de newsletters que estiverem por aí e (2) a produção da segunda temporada acontecer sem nenhum percalço. Se tudo der certo, ela será oficialmente lançada na primeira semana de agosto — junto com a adaptação de Sandman.
Antes de começar, vocês já sabem: se você gosta da Ponto Nemo, não deixe de compartilhar com alguém que pode curtir. Se você foi uma das pessoas que recebeu o texto de alguém, não deixe de inscrever seu e-mail na página inicial para não perder nenhuma edição.
Vale avisar que, apesar de esse tema ter sido uma das minhas pautas selecionadas e separadas para a newsletter, ela aconteceu graças à votação do nosso Cetáceo Patrono — a primeira que fizemos de acordo com as recompensas do Catarse. Na semana que vem, entre um episódio e outro, os apoiadores vão receber um cronograma detalhado das próximas edições, a descoberta do tema da Segunda Temporada (e a bibliografia que foi pré-selecionada).
Se não quiser ficar de fora dessa, não deixe de checar o Financiamento Coletivo no Catarse. Apoiando, você garante a continuidade de newsletter e está no grupo das pessoas que são cobaias recebem em primeira mão as ideias que quero desenvolver, além das recompensas que estão lá (alguns novidades devem chegar em breve, inclusive).
Enfim, vamos começar?
Dados, cartas & pixels: por que jogamos?
Se na edição passada eu escrevi sobre crescer ao redor de folhas & papéis, hoje eu poderia fazer um contraponto chamado Sobre crescer ao redor de dados, cartas & pixels porque, da mesma forma que os livros marcaram parte da minha formação, eu estaria me esquivando se ignorasse a presença dos jogos no meu percurso.
E foram diversos jogos. Desde os corporais, presente nas aulas de teatro com minha mãe, aos jogos de tabuleiro e eletrônicos. Olhando para trás, penso que a possibilidade de socialização que eles me ofereciam unida aos desafios de destreza e escapes da realidade criaram um ambiente muito confortável e estimulante para me deixar perdido ali dentro… mas estou me adiantando.
Acontece que, de uns anos para cá, eu me apaixonei de novo por jogos de tabuleiro e, quando li A história completa dos jogos de tabuleiro (uma história nada completa e sem fontes… mas que você pode conferir aqui, em inglês), fiquei com uma baita vontade de escrever mais sobre isso.
Quer dizer… se o registro mais antigo de um jogo é datado de 5.000 a.C., deve ter motivo pelo qual jogamos, não? A descoberta foi feita no túmulo de Başur Höyük, no sudeste da Turquia: um conjunto de 49 nove pedras esculpidas e pintadas. O mais antigo conjunto de dados & miniaturas já encontrado (e, para não infringir nenhum direito autoral, você pode ver a carinha deles clicando aqui).
Esse tipo de aparato não era coisa única. Senet, jogo datado entre 3.500 a.C. e 3.100 a.C., foi encontrado em diversos túmulos egípcios. O jogo consistia na movimentação de peões por três colunas com dez quadrados, de acordo com o resultado de gravetos ou ossos, e você precisava cruzar o tabuleiro antes do adversário.
Ao que tudo indica, Senet refletia algumas crenças religiosas dos egípcios — as peças como almas humanas enfrentando sua jornada após a morte. Cada casa com um significado religioso.
O Jogo Real de Ur, encontrado em países como Irã, Síria, Egito, Líbano, Sri Lanka, Chipre e Creta e datado na mesma época que Senet, é outro que adquiriu significado supersticioso. Acredita-se que a sorte no jogo refletia o sucesso na vida real, principalmente com mensagens como “você irá achar um amigo” ou “irá se fortalecer como um leão”. Ao lado do Gamão, é um dos jogos mais antigos jogados até os dias de hoje. Fazendo um paralelo, o registro de que jogamos Gamão ou O Jogo real de Ur é pouco mais antigo do que o encontrado sobre a epopeia de Gilgamesh, a mais velha história já registrada.
Enfim, não quero fazer uma linha cronológica dos jogos de tabuleiro, mas esses registros me deixam pensando sobre as razões de jogar, já que é um hábito claramente antigo.
Quando pensamos nessas perguntas, um dos nomes que sempre surge no campo de estudos de jogos é o de Johan Huizinga e seu livro, Homo Ludens: o jogo como elemento da cultura. O destaque que a obra do medievalista holandês recebe surge pela posição diferente que o ato de jogar (e, principalmente, o de brincar) recebe.
Quando escreve sobre jogos, Huizinga aponta algumas maneiras com que o jogo foi visto em algumas áreas da sociedade: como descarga de energia vital, uma espécie de função catártica; como um momento de treino para as tarefas sérias; como resultado de um impulso para exercer certas faculdades; como exercício de autocontrole; como maneira de extravasar impulsos de dominação e competição; ou até como válvula de escape da realidade.
Em A Teoria do Jogo, Jeferson Retondar resume essas divergências em três linhas — jogo que desvia o homem de fé em vícios; maneira de gerar conhecimento do mundo, como os jogos de acaso criando conhecimentos de aritmética; ou a função catártica ressaltada.
Só que todas essas teorias partem de um pressuposto de que o jogo tem alguma finalidade biológica ou algum motivo externo. Não se pensava no jogo enquanto uma totalidade, e é o que o medievalista holandês faz. Huizinga parte do pressuposto de que, se somos seres que criamos cultura e nos relacionamos com a realidade pelo simbólicos, não só trabalhamos e criamos ferramentas, como homo faber, mas também jogamos e brincamos, como homo ludens.
Claro, esse estudo exige algumas ressalvas importantes. Em primeiro lugar, porque, como todo texto que apresenta um novo campo de estudos, tem pontos cegos, imprecisões e exageros (como Todorov e os estudos de Literatura Fantástica).
Além disso, o podcast Game Studies Study Buddies, publicação mensal que examina livros basilares do campo de estudo de jogos, gravou um episódio dedicado ao livro com pontuações interessantes. Uma delas é que, como Huizinga está estabelecendo um campo, ele cria um mito fundamental do mundo em que tudo é jogo ou brincadeira — a própria linguagem é uma brincadeira, já que fazemos de conta que a palavra árvore corresponde a uma árvore concreta.
O que é um pressuposto interessante, mas as dimensões vão se perdendo ao longo do livro com casos hiperbólicos. Soma-se a isso o fato de ser uma teoria com pressupostos racistas já que parte de estudos antropológicos que unifica diversas culturas não-ocidentais em conglomerados estereotipados e simplificados que correspondem a uma única linha de Bárbarie rumo à Civilização por meio do Progresso ideal.
Por fim, nem o rumo do ideal civilizatório escapa porque, além de tudo, Huizinga é reacionário e aponta para uma Europa decadente com seus elementos lúdicos minguando. Bom, talvez você esteja pensando: e sobra alguma coisa depois disso? Sim. Podemos, afinal, entender o que é um jogo.
O que é um jogo?
Uma coisa aconteceu enquanto eu lia as definições e caracterizações de o que é um jogo, uma espécie de compreensão epifânica que, conforme ia entendendo, percebia que “ah, então é por isso que eu gosto de jogar assim! E é por isso que eu faço aquilo, uau!”.
Seguindo a linha dos pensadores apresentados, por exemplo, um dos elementos que compõem um jogo é a diferença espaço-temporal do jogo com a vida real, ou seja, o momento de jogar cria um espaço secundário em que o jogo se passa a medida em que todas as pessoas que jogam se envolvem emocional e afetivamente com a atividade lúdica.
Com esse envolvimento, o espaço cotidiano passa a ter um significado novo e se transforma em um espaço de jogo — e, sendo assim, um espaço simbólico, repleto de significados e relações. O que é curioso… sempre odiei colocar jogos de tabuleiro em qualquer lugar para jogar. Pensava que minha vontade de organizar um espaço era só uma das minhas manias. Agora, entendo que é um ritual importante para que eu entre no espaço-momento do jogo.
Creio que não é diferente do momento de riscar um cenário no chão para jogar bolinhas de gude, ou alugar uma quadra para jogar bola, ou a organização de um momento para jogar videogame. Mas, todas essas criações não são apenas espaciais, mas envolvem um tempo medido pela fruição.
O tempo do jogo não é medido pelo relógio, mas pelo envolvimento e satisfação dos jogadores. Quer dizer, é normal quem alguém comece uma contagem arbitrária e flexível em jogos de adivinhação. É preciso viver com intensidade essa “experiência estética da fruição”, como escreveu Jeferson Retondar. Sem isso, você se volta ao tempo do relógio e ao mundo real.
Para que essa realidade construída se fortaleça, é necessário que todo jogo tenha um conjunto de regras. As regras criam e ordenam esse outro mundo e, romper com elas, é reconhecer o círculo que separa o jogo do mundo real (tanto de maneira direta, como alguém que se cansa de brincar e resolve ser um estraga-prazeres; como aquele que, sutilmente, trapaceia no jogo).
Além disso, as regram medeiam a relação entre as pessoas e garantem uma certa identidade ao jogo, para que ele possa ser repetido em outras ocasiões. Essa mediação, entretanto, não é uma imposição: as regras podem ser organicamente alteradas, assumir novas formas e interpretações para que todos fiquem confortáveis e se divirtam.
Quer dizer, quantas vezes a gente não conhece o mesmo jogo que aparece com um nome diferente? Formas paralelas de se jogar Uno? Além disso, as regras visam preservar um certo espaço de justiça e igualdade de condições para os que estão jogando — mesmo que isso envolva a criação de subregras exclusivas para aquele café-com-leite que aparece como jogador extra em um dos times. Tampouco as regras eliminam as questões de tensão, caos e acasos dentro do jogo, outra das regras que compõem um jogo (mas, dessa vez, também segundo Roger Caillois, em O jogo e os homens).
O fortalecimento desse mundo provoca uma evasão da vida real necessária para o acontecimento do jogo, um envolvimento total com o mundo alheio do faz-de-conta, ainda que ele reflita condições do mundo real, seja um mecanismo de alívio de tensão ou um caminho para perceber a realidade por outro ângulo — questões que vejo muito relacionado à maneira com que se pode jogar RPG de Mesa e que Stranger Things extrapola desde a primeira temporada com seu diálogo com Dungeons & Dragons.
Por fim, tudo isso só é possível porque entramos no espaço do jogo em um movimento voluntário. O jogo não pode ser imposto por nenhuma necessidade física ou dever moral. Ao jogar, a pessoa deve decidir se quer jogar e, a qualquer momento, refletir se quer continuar jogando ou não. Enquanto houver adesão emocional, há espaço para o jogo. Por isso, fortes laços de comunidade são criados nesses espaços e, muitas vezes, extrapolam as sociabilidades do jogo.
Dentro dessas características, Roger Caillois apresenta dois conceitos que permeiam o mundo dos jogos: o da paidia — o princípio de diversão, manifestação espontânea e gratuidade — e o ludus —as regras, os limites e a dificuldade gratuita. Entre essas pontas, estão princípios que os jogos podem adquirir. Sensações majoritárias que emergem nos jogadores.
Como o princípio de agôn (ou jogos de competição) que enfatizam a sensação de disputa e enfrentamento do oponente, em qualquer forma que ele se apresente, por meio de uma igualdade de condições. Esses jogos visam o reconhecimento de habilidades, a superação de limites. São jogos que envolvem menos incertezas e mais questões performativas, já que lidam com o equilíbrio de forças e o antagonismo entre as partes.
Já alea (ou jogos de sorte/azar) tratam de jogos em que o indivíduo é praticamente um espectador, como o lançar de uma moeda em um Cara ou Coroa. Aqui, não temos jogadas bonitas ou lances ensaiadas. É a potencialização extrema das tensões e incertezas em uma realidade neutra. Huizinga comenta como os jogos em culturas primitivas se relacionavam com rituais religiosos com máscaras, mas os que apostam também são jogadores de fé — se ganham, a fortuna dos deuses estavam auxiliando; se erram, eles que falharam em ouvir os sinais divinos.
Em mimicry (ou jogos de simulação), o sentimento é o de representação de outra persona, de autossatisfação e espontaneidade, como um bailes de máscara (e, quem sabe, uma sessão de RPG), enquanto, em ilinx (ou jogos de vertigem), o prazer surge da tontura, do mal-estar, pânico e desordem. São jogos que se aproveitam de uma distorção abrupta da realidade.
Essa classificação, ao que me parece, tem uma função mais didática do que exclusiva. Penso que tais conceitos podem se alternar em intensidade e se mesclar durante jogos e partidas, de acordo com as características descritas de intenção dos jogadores — claro que outros jogos possuem estruturas mais rígida, intrinsecamente ligadas a um ou outro princípio. Dificilmente se é um espectador do acaso em um jogo de Xadrez.
Além disso, importante ressaltar que jogos não são a mesma coisa que esportes! Ainda que existam jogos de competição, a prática esportiva é uma prática (1) institucionalizada que (2) tem regras imperativas ao longo das partidas e com (3) resultados práticos e competitivos no mundo real, envolvendo dinheiro, status, patrocinadores e afins.
A competição nos jogos são mantidas dentro dos jogos, com pouco ou nenhum impacto no mundo real. Da mesma forma, a diferença entre brincar e jogar é uma questão não resolvida no campo das teorias de jogos — e por isso cautelosamente tentei não inverter os sentidos ao longo do texto.
Por fim: me pergunto se é possível pensar parte da literatura como um jogo. Penso que sim e, se não for, é possível chegar perto… mas isso vemos na próxima edição.
Obrigado por ler até aqui!
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Não deixe de conferir as outras edições em Ponto Nemo. Você pode conferir as outras produções no Estantário e me ouvir no podcast 30:MIN. Também estou no Twitter e no Instagram. Mas, se quiser conversar, pode responder esse e-mail.
Nos últimos 15 dias, eu:
Participei do episódio: “30:MIN 384 - Livros para viajar”;
Participei do episódio: “30:MIN 385 - Eleanor & Park, de Rainbow Rowell”.
Eu fiz uma matéria optativa de design de jogos na minha graduação, e teve alguns textos muito legais que eu obviamente perdi e não vou poder citar direitinho, mas um deles falava sobre um jogo como uma narrativa, e dava uma definição SUPER fluida de narrativa: uma narrativa tem um estado inicial, um processo, e um estado final. Ele falava "por essa definição, uma refeição pode ser uma narrativa". Um jogo de xadrex ou bolinha de gude tem um estado inicial das pedras. E uma obra de ficção tem um estado inicial - tanto dos personagens quanto do leitor. Foi nesse curso que eu percebi o quanto amo jogos como uma mídia - uma contação de história interativa, que se for bem feito pode ser muito mais do que filminhos separados por partes de apertar botão.