Sobre crescer ao redor de folhas & papéis
Enfim, encerramos o papo sobre bibliotecas, livrarias & quaisquer outros lugares de livros. Pelo menos, por um tempo. Mas sempre volto a pensar nessa mania estranha que nós temos, essa vontade de catalogar coisas…
Quero aproveitar a última edição dessa minissérie para arriscar um texto mais pessoal e reflexivo. Algo sobre memória, minha relação com minha biblioteca (e, como percebi ao longo do primeiro rascunho, a própria relação que tenho com a escrita). E digo arriscar porque não sei se vou ser bem-sucedido: acho que textos assim correm um risco muito intenso de só virar uma piada interna enfadonha sobre uma vida desinteressante.
Apesar disso, gosto de como as bibliotecas se tornam um suporte de reflexão sobre a constituição da identidade; da relação entre objetos físicos e o espelhamento de quem somos — geralmente, são questões que surgem em momentos de perda ou mudança. Nesse sentido, a biblioteca é um mero acaso; um espaço de afeto que serve para entender a relação entre coisa-sujeito.
Alberto Manguel, por exemplo, escreve Encaixotando minha biblioteca quando se vê na necessidade de guardar todos os seus livros em caixas num depósito, sem saber se os verá novamente. Walter Benjamin, em quem Manguel se inspira, escreve Desempacotando minha biblioteca depois de um processo de divórcio, refletindo sobre o organizar dos livros em um novo espaço.
Mas, antes de começar a apresentar minhas estantes: vale o aviso: se você gosta da newsletter, não deixe de compartilhar com alguém que pode curtir — e, se você foi uma das pessoas que recebeu o texto de alguém, não deixe de inscrever seu e-mail na página inicial para não perder nenhuma edição.
Queria fazer um agradecimento aos assinam e também aos que apoiam o Financiamento Coletivo. Ter alguém pagando por um projeto de escrita mudou um pouco a forma como lido com as coisas que produzo e, há duas semanas, um conto para um edital — baseado em entrevistas com minha vó — que achei bastante importante. Então, fica o obrigado pelo incentivo. Se você quiser conferir o projeto, é só clicar aqui.
Sobre crescer ao redor de folhas & papéis
Não sei quando comecei a me entender como um leitor. Quando tento traçar o caminho, o impulso é voltar para uma cena do segundo ano da faculdade, em que lia Cem anos de solidão sentado em uma escada (foi, também, o ano em que comecei a usar o Goodreads e catalogar os livros que lia).
Mas acho curioso esse reflexo, porque quando paro para analisar, não é verdade. Tenho até hoje um livro verde, gasto e descascado que lia enquanto estava sendo alfabetizado e seu companheiro A incrível aventura do gato Joel.
Encontrei o Wally pela história, nos filmes, em guerras & feiras.
Viajei para os mundos de Deltora Quest e Eragon e peguei carona na nave improvável do Guia dos Mochileiros das Galáxias.
Lia muitas revistas de ciência para crianças; livros de astronomia; o Guia dos Curiosos… descobri desastres naturais; o ciclo de vida & a anatomia de uma joaninha; do que são feitas as estrelas…
Honestamente, não sei por que demorei a entender minha ligação com os livros. Talvez, por causa dos jogos. Junto da literatura, a narrativa dos jogos (& o incrível fator recompensa) sempre foi intensa e talvez esteja aí o segredo: em um exercício (auto)analítico, percebo que meus pais detestam jogos, mas sempre foram leitores.
Tanto minha mãe quanto meu pai são professores (ou ao menos foram). Por isso, cresci cercado de papel. Não só livros teóricos, mas cópias, folhas, provas, correções… e os livros de leitores. Ao lado dos livros de História e dos de Artes, somava-se um repertório de dramaturgia, filosofia, literatura e a minha falta de vontade de abraçar o que eu entendia como fator decisivo para os perrengues financeiros que passávamos.
Demorei a me relacionar com isso. Lembro do último dia no colégio e da sensação distante em relação aos outros — em total descompasso com a euforia. Enquanto todo mundo tinha um trajeto claro do que fazer, eu dizia: eu só queria escrever.
Eu já tinha ido mal em um curso de design de jogos. Queria aprender roteiro, mas não consegui. Não sabia de cursos para ser escritor. Entrei em um curso livre de cinema, aprendi algumas coisas de roteiro e muita história da arte. Saí. Acabei cursando jornalismo… até o dia em que li Cem anos de solidão na escada.
Acho que a memória surge pelo contexto. Um marco que representa não só a leitura de um dos livros que mais gostei de ter lido, mas porque lia antes de me apresentar para um professor que abriria as portas da pesquisa e da vida acadêmica, prof. José Salvador Faro.
O fato pode parecer irrelevante ou pequeno (quiçá, um erro: afinal, quem escolheria o caminho acadêmico?), mas, quando se entra no curso de jornalismo, algumas expectativas vão se quebrando — e, no meio do caminho, eu já não tinha nenhuma esperança de entrar em cobertura cultural ou poder escrever sobre livros no caminho tradicional.
No entanto, o que aparecia para mim era uma maneira de ficar perto mais perto dos livros de novo. A convite dele, ingressei em um grupo de pesquisa de narrativas e fiz disciplinas da pós-graduação durante a faculdade. Consegui falar sobre livros, literatura, escritores; estudei jornalismo literário, crônicas e cronistas, jornalistas-escritores, crítica literária e booktubers. Juntos, organizamos oficinas de leitura entre estudantes do programa de pós-graduação e os estudantes do curso de comunicação.
(Infelizmente, tudo acabou com um processo de desmonte da universidade, com quase todo o corpo docente da pós-graduação sendo demitido de uma semana para a outra. Talvez, o único ponto positivo do processo foi ter encontrado outro orientador tão conectado aos livros como eu).
Enfim… chego aqui e sinto que foi uma péssima ideia escrever esse texto, mas já não é possível voltar atrás.
Hoje, é claro que minha relação com os livros é pautada não apenas como leitor, mas também como escritor, pesquisador — ou qualquer outro papel ativo e de interatividade com a obra. Tenho livros não só para ler, mas também porque quero escrever sobre eles, dialogar com eles.
Sinto que isso reverbera em toda minha rotina de trabalho. Quando pensei no meu primeiro espaço paralelo para falar sobre livros, o nome que me veio foi Estantário. Foi uma junção de estantes, com aquários e antiquários, em uma tentativa de criar um ambiente em que eu poderia falar dos livros. Essa temática aquática dos peixes no aquário foi o que motivou a criação do logo e a razão pela qual adorei a sugestão da Mara de Ponto Nemo para o nome da newsletter.
(É a paisagem desse lugar que os apoiadores do Financiamento Coletivo recebem quando apoiam o projeto:
Submerso no meio do Pacífico, você encontra os peixes dourados nadando ao redor das estantes de pedra pelo fundo do mar — até onde a vista alcança. Os livros, com as páginas inchadas e tortas, balançam com o movimento das águas. Debaixo das protuberâncias nas prateleiras, polvos e fungos se espalham. Tocam as palavras com suas extremidades independentes.
Você se aproxima e encontra uma placa:
“Boas-vindas às profundezas do Ponto Nemo e ao recife do Estantário”)
Por isso, talvez seja o momento de falarmos sobre as coisas que moram nessas estantes, no fundo do mar…
Entre estantes aquáticas
Além de achar que possa ser enfadonho um fragmento do que é meu cotidiano, tenho zero afinidades com a romantização do consumo de livros. Geralmente, os memes sobre a compra desenfreada e instantânea de livros me deixa menos incomodado do que me faz rir. Soma-se a isso o fato de que os materiais teóricos sobre bibliotecas pessoais dialogam com uma esfera tão específica da esfera intelectual que me fazem repensar as questões ligadas à circulação da literatura e onde ela acontece ou deveria acontecer — questões fomentadas pela já divulgada entrevista com a Uva.
No entanto, é ingenuidade negar que os livros marcam minha história. Seria falso fingir que não penso que parte dos livros que guardo comigo são parte importante da minha personalidade, de quem sou e o que penso.
No começo de Desempacotando minha biblioteca, Benjamin diz:
devo pedir-lhes que se transfiram comigo para a desordem de caixotes abertos à força, para o ar cheio de pó de madeira, para o chão coberto de papéis rasgados, por entre as pilhas de volumes trazidos de novo à luz do dia após uma escuridão de dois anos justamente, a fim de, desde o início, compartilhar comigo um pouco da disposição de espírito — certamente não elegíaca, mas, antes, tensa — que estes livros despertam no autêntico colecionador. Pois quem lhes fala é um deles e, no fundo está falando só de si.
Alberto Manguel, em Encaixotando minha biblioteca, descreve como sentia sua biblioteca como “um espaço profundamente privado”, que não só o envolvia como espelhava quem ele era. Sendo assim, não organizava a biblioteca de acordo com códigos comuns para que outros entendessem. A “geografia era ditada por uma lógica meio louca”, bastante pessoal.
Posso apresentar a vocês, então, toda as minhas categorizações de prateleiras: a forma como separo por temas e deixo próximos aqueles livros que penso que podem “ser amigos”. Deixo Solaris perto de Piquenique na Estrada; VanderMeer e China Miéville se encontram lado a lado, trocando esquisitices; todos os russos se encontram em fila, por ordem cronológica, dialogando sobre projetos possíveis para a Rússia, como fizeram em vida.
Essas escolhas denotam uma ordem. Gosto de organizar um mapa mental de onde está cada livro. Às vezes, passo um tempo olhando as lombadas, vendo quem está perto de quem, quais leituras estão atrasadas e quais me dão vontade de reler. Depois que coloco um livro na prateleira, quase nunca troco de espaço, só quando chegam estantes novas — ou quando eles se mudam para o espaço dos livros que vão embora.
Penso que minha fixação com a lembrança dos lugares dos livros e com a catalogação dos espaços é um reflexo da minha angústia com a memória. Por muito tempo, tive pavor em atingir um “limite” na minha cabeça; um ponto de não-retorno em que eu teria ocupado todo o espaço livre e, dali para a frente, só sobreposição (e eu, me esquecendo, jamais saberia o que esqueci). Quais livros eu teria na minha estante mental, se eu soubesse que o espaço é limitado? Como saber onde eles estão, que não os esqueci, que não preciso reler e posso ler sem me preocupar em refazer o caminho?
Hoje, lido melhor com isso… ainda que o comichão não deixe de coçar.
“Os livros esquecidos de minha biblioteca levam uma existência tácita e discreta. Mesmo assim, sua própria qualidade de livros esquecidos às vezes me permite redescobrir uma história ou um poema como se fossem perfeitamente novos. Abro um livro que imagino jamais ter aberto antes e dou com um verso esplêndido que, digo comigo mesmo, não posso esquecer, para então fechar o livro e ver, na última página, que eu mesmo, mais sábio e mais jovem, marquei a mesma passagem quando a descobri, aos doze ou treze anos. Lete [um dos rios do Hades. Significa ‘esquecimento’] não restaura minha inocência, mas permite que eu volte a ser o menino que não sabia quem matou Roger Ackroyd ou que chorou com o destino de Anna Kariênina. Começou outra vez pelas primeiras palavras, sabendo que na realidade não posso começar de novo; e me sinto destituído de uma experiência que sei que já tive e que tenho que readquirir, como uma segunda pele. Na Grécia antiga, a cobra era o signo de Lete” – Alberto Manguel, ‘A Biblioteca à Noite.
Alberto Manguel me ajudou a lidar com a inexorabilidade da perda e do esquecimento. Em Encaixotando minha biblioteca, Manguel reflete que “a perda de uma biblioteca nos ajuda a lembrar quem somos de fato” e cita os ensinamentos que teve com sua vó.
“Perder coisas não preocupada minha avó”, escreveu Alberto. “‘Perdemos nossa casa na Rússia, perdemos nossos amigos, perdemos nossos pais. Perdi meu marido. Perdi minha língua natal’, ela dizia numa curiosa mistura de russo, iídiche e espanhol. ‘Perder as coisas não é tão ruim porque você aprende a desfrutar não do que tem, mas do que se recorda. As pessoas deviam se acostumar com a perda’”.
No fim da reflexão, o escritor argentino pondera que, embora doloroso e injusto, o esvaziamento de uma biblioteca permite o surgimento de novas possiblidades, novas ordens possíveis saída das sombras das velhas organizações. “Nada que importa jamais é substituído de verdade. Toda perda é (ao menos em parte) para todo sempre”, pondera Manguel.
Gosto de ver a relação do meu pai com os livros por esse viés. Há coleções velhas, inutilizadas e datadas; não lidas há muitos anos — e que não são desfeitas por motivos que só ele conhece. Além disso, ele tinha o costume de guardar qualquer coisa dentro das páginas dos livros e esquecer que elas estavam ali.
Folhear os livros do meu pai é encontrar uma cédula antiga, uma foto esquecida, um documento perdido, uma poesia, um desenho… Sempre gosto de dar oportunidade para essa serendipidade. Por isso, trato de esquecer o que encontrei e onde. Guardo no mesmo livro, na mesma página, e devolvo à estante. Gosto da possibilidade de encontrar com meu pai, anos mais novo, em uma virada brusca de página, esbarrando no meu ombro.
Toda biblioteca, por mais organizada que seja, tem uma pitada do acaso.
Aby Warburg, leitor alemão, teorizou sobre as questões do acaso e da organização de uma biblioteca. Ao longo dos seus anos de vida, definiu a chamada lei do bom vizinho — basicamente, a ideia de que o livro que você procura e está familiarizado não é, realmente, o livro que você necessita; é no vizinho desconhecido que mora a informação vital.
Em A biblioteca à noite, Manguel escreve que Warburg “queria que sua coleção tivesse uma fluidez e uma vivacidade que nem a separação por assunto nem as restrições cronológicas poderiam proporcionar”.
Por isso, o alemão visualizava bibliotecas como “uma acumulação de associações, cada associação gerando uma nova imagem ou um novo texto, até que as associações devolvessem o leitor à primeira página. Para Warburg, toda biblioteca é circular”. Aos que visitaram a biblioteca de Aby, o cenário era caótico, confuso e em constante mudança.
Ao projeto inacabado (e inacabável), Warburg deu o nome de Mnemosyne, a deusa da memória, mãe de todas as musas. Jorge Carrión, em Contra Amazon, comenta sobre a paisagem formada de imagens cujas conexões eram trilhas do estudioso:
“Seus livros e suas lâminas se moviam, migravam, segundo relações dinâmicas de afinidade e simpatia, configurando collages provisórias cujos vínculos tinham de ser imaginados pelos leitores”, escreveu Carrión. Ao refletir sobre a biblioteca de Aby Warburg, Jorge valoriza o aspecto mutante de uma biblioteca em que se pode passear; que propõe enigmas e deixa evidente o encadeamento constante de significados e caminhos.
Penso que podemos esticar essa percepção móvel da biblioteca te Warburg com outro conceito descrito por Carrión, dessa vez em Livrarias. “Não concebo a ideia de biblioteca sem a ideia de nomadismo”, escreveu Jorge. “Minha própria experiência urbana se configura a partir do cruzamento entre caminhada e livrarias, de modo que a maioria de meus itinerários habituais tem certos locais como ligação ou paradas”.
A aproximação dos dois conceitos nos ajuda a visualizar o encadeamento e o acaso de Warburg não apenas nos confins da biblioteca particular, mas no projeto de formação: os livros que formam uma coleção privada também estão ali por um acaso de terem sobrevivido, de cruzarem o seu caminho, de estarem expostos no lugar correto, de uma indicação feita pelo interlocutor correto e com as palavras ideais.
Falava com uma amiga, dia desses, sobre minha falta de vontade em viajar e conhecer outros lugares, países, pessoas. Comentei sobre meu ceticismo e inquietação; de como me senti planejando uma viagem a um shopping caro da última vez que viajei, sobre como processo me pareceu parte de um discurso artificial, meio comercial demais, sobre VIVER EXPERIÊNCIAS.
No fundo, talvez o que eu goste é desse acaso. O trânsito faz parte da minha concepção de mundo, mas não enquanto movimento ativo. Gosto de aproveitar o inesperado enquanto vou lidando com a impermanência.
Mês passado, fiz um favor e matei minha saudade da biblioteca municipal e do sebo que fica lá perto. Na biblioteca, andei por todas as estantes. Escolhi três livros para trazer — dois deles por acaso, apenas um reservado. No sebo, fui seções específicas, pensando “esse não caberia na estante… esse não tem nada de especial, posso comprar o ebook… esse não vou ler agora, só vai ocupar espaço…”.
Dos livros que trouxe da biblioteca, li todos. Felizes acasos.
Tenho achado que tenho livros demais. Mais do que eu gostaria. Alguns fazem parte daquilo que Umberto Eco chama de antibiblioteca: uma espécie de vislumbre do “abismo”, algo para lembrar o quanto nós não sabemos, para visualizar o quanto não poderemos realizar.
Outros, apenas estão… desconectados de quem eu sou ou o que quero. Mas existe um elemento complicado para resolver a equação, minha vó.
Explico. Tenho uma coleção grande de livros do Stephen King. Cresci lendo Stephen King e A Torre Negra foi uma das sagas que solidificou o caráter de leitor. Aqui em casa, tenho duas prateleiras reservadas ao escritor. Prateleiras não usadas, não lidas.
Só que, entre esses livros, há um com a dedicatória da minha vó. O único livro que ela me deu, como presente de aniversário. Como lidar com isso? Sim, as perdas são inevitáveis e o amor de família não vive nos objetos, eu sei… mas, recentemente, tenho pensado nisso.
Em uma das reuniões de família, minha vó me contou a história da infância inteira dela e dos irmãos. Quando terminou, me disse “e aí, agora é isso. Acabou a história”. Não a que estava contando, mas a dela. Fim. Me deparo novamente com os medos sobre a memória e o esquecimento…
O que será dos livros — e de sua dedicatória — se a morte for, de fato, o fim da história?
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Nos últimos 15 dias, eu:
Participei do episódio: “30:MIN 383 - As Meninas, de Lygia Fagundes Telles”.