Sobre livrarias, conversas na pandemia e bibliotecas pessoais
“A história de minha biblioteca certamente começou com um encontro: com meus livros, com o lugar aonde levá-los, com a quietude num espaço iluminado em meio à escuridão. Mas se a história precisa acabar numa busca, a pergunta não pode deixar de ser: busca de quê? (…) Não busco conhecimento além daquilo que, de algum modo secreto, já sei. Tampouco iluminação, à qual não posso sensatamente aspirar. Nem experiência, pois em última instância só posso me dar conta do que já está em mim. O que, então, eu busco, ao final da história da minha biblioteca?
Consolação, quem sabe. Quem sabe, consolação.” — Alberto Manguel em ‘A biblioteca à noite’
Já que tive um retorno positivo sobre as edições sobre bibliotecas, resolvi programar mais algumas coisas. (Aliás, quem estiver interessado no tema da última edição, participei do episódio #376 do 30:MIN sobre o trabalho da Svetlana Aleksiévitch. Você pode escutar por aqui.) Em 2020, quando comecei a dar os primeiros passos para falar sobre bibliotecas, entrevistei uma amiga conhecida por fazer as coisas acontecerem, a Uva Costriuba.
Pouco tempo antes, estávamos organizando um clube de leitura para uma biblioteca, sem saber que uma pandemia nos esperava na esquina. Isolados, resolvi aproveitar que o assunto estava quente e chamei a Uva e a Mara, minha companheira, para um papo sobre bibliotecas. A ideia era visualizar caminhos possíveis, temas que poderiam ser aprofundados — curiosamente, apesar dos dois anos de distância, muitas coisas não mudaram.
Aproveito a entrevista, também, para testar a entrevista em pingue-pongue. Vamos ver se funciona…
Aos financiadores do Catarse, aviso que voltei a conversar com o provável ilustrador do livro e devo ter novidades nas próximas semanas. Se você ainda não é um apoiador, mas quiser conhecer o projeto, clica aqui.
Por fim, na segunda-feira, dia 11 de abril, minha segunda ficção-relâmpago sai na Faísca. Foi uma tentativa de conto curto de ficção estranha sobre uma Arquivista. O conto chega por e-mail, através da newsletter oficial da Faísca, você pode se inscrever aqui.
Sobre conversas na pandemia
Uva, para a gente começar: como você se apresentaria? Quem é você?
Bom, meu nome é Uva Costriuba e eu sou uma idosa em treinamento. Eu passei a vida treinando para ser artista, cursos para todos os lados e tentando produzir coisas voltadas para a arte de diversas maneiras. Hoje em dia, eu sou designer e produtora gráfica.
E nessa trajetória, como o livro aparece?
O livro é minha interface favorita. Ele é um veículo, é um universo de possibilidades muito específico e deliciosamente limitado, porque é um foco objetificante de vários processos que acabam convergindo para um objeto. O livro é uma cristalização de mil coisas e mil possibilidades em torno da leitura e dessa experiência que a gente cria a partir do objeto de leitura.
Bom, na faculdade eu aprendi coisas técnicas: como fazer o livro, como procurar tipografia, como entender, avaliar e melhorar a experiência de leitura, tanto nos aspectos físicos de leitura, mesmo, de como o olho lida com essa coisa de ficar horas decodificando sinaizinhos em algum lugar, até o jeito como a gente estoca livros, o envelhecimento dos livros, o restauro. Todos esses aspectos técnicos e tangíveis, essas informações que têm que estar na nossa cabeça para a gente lembrar o desenvolvimento desse tipo de projeto.
Depois da faculdade veio a experiência com o mercado independente em que o livro passa a ser muito mais do que um objeto. O livro é um eixo de atividades comunitárias e transborda para outras áreas.
Como que funciona esse trajeto do livro independente e das relações comunitárias?
De 2015 para cá, a gente um vetor de ação do mercado independente em torno das feiras de publicação. Antes disso, a publicação era um recurso muito isolado. Uma ou outra gráfica oferecia serviços completos e pegavam o texto de um autor de literatura e entregavam o livro pronto. Eram esforços pontuais de empresas se renovaram, ou faliram.
Esse cenário é parte de um processo que começa lá em 2010, em que os maquinários para imprimir, tratar e refinar objetos gráficos diversos, como livros e publicações encadernadas, ficou mais acessível — mais razoável na escala do pedestre, porque dá para comprar com maior facilidade, parcelando, e aí você consegue uma máquina menor e que faz mais coisas.
O marco é 2015 porque foi quando a gente sentiu um reflexo na produção das pessoas num geral. Foi quando a Bia Bittencourt trouxe para o Brasil um formato de feira de publicação independente que ela viu no MoMa, em Nova York, que foi a Feira Plana. Isso mudou tudo, mudou o jeito como a gente falava uns com os outros, sabe?
Esse ano é muito vivo na minha cabeça porque teve um drama do mercado editorial no geral, as vendas caíram muito, mas também era marcado o crescimento de alguns autores dos quadrinhos, teve a Feira Plana e essa coisa de procura das pessoas na internet. Foi de repente. Muita gente procurando publicações independentes e as feiras. Foi o momento em que começou a ser uma atividade profissional qualificada, com pessoas pagando boletos só com publicação independente mesmo.
Foi um ponto de virada histórico para a atividade e começamos a visualizar essa coisa do livro enquanto eixo de comunidade — por exemplo, várias comunidades que tinham dificuldade em publicar os próprios conhecimentos, como religiões não massivas no Brasil, publicando zines (revistas independentes).
As bibliotecas tiveram alguma presença nesse processo comunitário?
Olha… Eu acho que as bibliotecas, no geral, se esquivam do envolvimento direto com feiras, porque as feiras são comerciais, né? Você está incentivando um comércio que, para as bibliotecas, é esquisito de enquadrar naquilo que elas são enquanto instituições públicas.
Por exemplo, a Feira Miolos veio depois que a Feira Plana já tinha estabelecido esse patamar de interesse, de formação de comunidade em volta das feiras de publicação. Ela é feita pela Lote 42, que é uma editora que tem como partido a integração de várias frentes de trabalho e várias escalas de produção. Então, eles já estão acostumados a fazer essa ponte entre fornecedores e instituições que não estão acostumadas a trabalharem juntas, sabe? Acho legal, mas você vê: a Feira Miolos na biblioteca Mario de Andrade é a única, não tem outra feira em biblioteca, porque as bibliotecas não acomodam esse tipo de iniciativa.
Eu acho que as bibliotecas, nesses últimos 20 anos, têm enfrentado dificuldades de integração. É difícil a biblioteca convidar as pessoas para participarem de qualquer coisa que seja lá dentro. Com as mídias sociais, elas começaram a tatear o que podiam fazer de eventos para engajar a população. Acho que, de uns três ou quatro anos para cá, bibliotecas mais modernas conseguiram fazer isso com algum sucesso.
A biblioteca do Parque Vila-Lobos é uma que eu frequento, porque é aqui do lado de casa e é muito boa. Eles têm uma tradição e já estão fazendo esses eventos de engajamento há um tempo. Além disso, é uma biblioteca moderna com um catálogo que prioriza livros de 2019 para cá. Eles têm coleções de ficção, de quadrinhos e uma cobertura das principais editoras brasileiras.
É um catálogo interessante e criado para atrair público jovem. Em 2020, deslanchou com programação online e está oferecendo tanto curso quanto o Sesc. Toda semana tem algum encontro on-line, duas ou três atividades para criança, e essa atividades de crítica literária — que é leitura coletiva em que chamam as pessoas com alguma autoria para falar sobre a própria obra e conversar com leitores.
Tem sido bastante interessante observar pessoas do Brasil inteiro respondendo a essas iniciativas dessas bibliotecas. Mas o foda é isso, é sempre daqui de São Paulo. Biblioteca é um hábito diletante. Por aqui, temos períodos muito específicos em que alguma coisa engata, mas não é comum as pessoas frequentarem biblioteca. É uma coisa fora da nossa realidade.
Você consegue sintetizar como você vê uma biblioteca?
Do ponto de vista do design, a biblioteca é um lugar onde se reúnem volumes discretos e compactos que tem percursos de estudo sobre determinados campos de informação e do conhecimento. Então, toda biblioteca tem um partido e tem um projeto. Toda biblioteca tem um recorte e mesmo as bibliotecas mais plurais, de recortes mais abertos, tem também focos e promoções específicas de uso da biblioteca.
Tipo, as bibliotecas na Europa que tem aqueles volumes milenares ou bibliotecas que têm departamentos de restauro acabam sendo conhecidas pelo acesso seletivo a documentos e a percursos de historiografia específicos. As bibliotecas mais jovens, que estão lidando com essa coisa da escolaridade, são conhecidas por formar público leitor e alimentar a fome por ficção de um público jovem.
Para mim é isso: biblioteca é um juntadão feito em torno de percursos de investigação e conhecimento específico. É recorte e tem que ter objetivos claros, porque é isso que é a biblioteca. Ela perdura, ela segura, ela mantém possível consultar esses caminhos de investigação de conhecimento. Se ela não consegue fazer isso, ela não é uma biblioteca, porque livro é difícil de cuidar e de manter, sabe?
Eu dei uma entrevista para o Uol sobre aquele caso da finura do papel do livro O Sol da Meia-Noite, da Stephanie Meyer. Foi uma reportagem sobre o choque dos fãs da série que acharam ruim que a caixa que reunia todos os volumes estava publicada num papel mais fino do que o usado nos volumes que foram publicados parcelados. É uma loucura isso. As pessoas ficaram muito transtornadas porque deu diferença na estante. Foi um bafafá porque a lombada ficou um pouco diferente.
Enquanto elemento decorativo, o livro ficou diferente. As pessoas estavam se programando para um espaço certo na estante e ficou diferente. Isso traz a biblioteca pessoal dessas pessoas, né? É engraçado. Eu acho que biblioteca pessoal é um termo que devia ser aplicado em bibliotecas que já tem um tempo de vida, porque esses livro… eu não sei se eles vão durar mais de 5 anos, saca? Essas bibliotecas dos anos 2000, muitas já estão mostrando sinais de que não vão durar nem a geração que comprou. Bibliotecas vencem gerações. São projetos de bens duráveis, o livro é um bem durável. Deveria durar mais do que isso. Então, que biblioteca é essa que a gente está falando quando fala de biblioteca pessoal?
Quando você diz que não vai durar a geração, você quer dizer dos hábitos de consumo, do próprio acabamento da edição ou nos dois?
Dos dois, na medida em que esses livros que a gente encara como coisa para devorar, geralmente, tem edições mais frágeis — e a edição frágil é feita para durar duas, talvez três, leituras. Em bibliotecas, elas duram pouco. Com muito manuseio, são aquelas edições coladas, sem costura. Daí o volume quebra e as páginas saem na sua mão. Essas edições envelhecem mal. A falta de costura, de uma capa que protege o volume… não é só bicho e traça que dá ali, sabe? Mas mofo… a poeira vai tingindo as páginas, é um envelhecimento…
O livro é um objeto frágil, envelhece mal. Ele vai ruindo e decompondo e não vai chegar na próxima geração. São livros feitos para durar, no máximo, dez anos. A nossa geração tem essa experiência com os gibis da Turma da Mônica. Todo mundo guarda e aí, quando pega depois, as páginas quebram na sua mão como biscoito de água e sal. Aquele gibi caríssimo, chiquérrimo, de lombada quadrada que você comprou, o Almanacão de Férias da Mônica… são os materiais mais baratos, que vão envelhecer pior, e você guardou lá naquela caixa, deu a sorte das traças não terem comido, mas você vai pegar e estão morrendo na sua mão.
Agora, pensa numa biblioteca que guardou um livro por 500 anos. Que livro é esse? Como eles fizeram esse? É demais. Volumes que estão guardando registros que venceram não só duas ou três gerações, saca? Qual é esse fio conector e que pensamento é esse que liga esse livro de dezenas de gerações com esse livro que não vai durar nem uma, sabe?
Acho que faz parte da definição de biblioteca, também, pensar nessa popularização da leitura. É uma coisa do século XX os pedestres terem leitura, terem essa possibilidade de comprar um livro, de levar um livro para casa. Mesmo na Europa, quem tinha livro era rico. Eram nobres muito endinheirados que conseguiam comprar volumes. O número foi aumentando, tem toda essa evolução histórica do que é possuir livros e poder, realmente, ter uma biblioteca. E aí, a gente está aqui.
Acho muito interessante visualizar essa mudança de perspectivas na constituição das bibliotecas, sabe? Como cada pessoa, em cada momento, vai se relacionando diferente com a leitura e o livro e, hoje, essa perspectiva de montar uma biblioteca pessoal com objetivos, afetividades e propósitos diferentes…
Total. Às vezes eu penso e parece que tem uns saltos entre trajetória pessoal, no sentido de como que a vida te trouxe esses livros e as discussões que carregam… Quer dizer, uma coisa que eu penso muito é como, nas narrativas ficcionais, a gente somos agentes da própria história. A leitura traz isso para a vida dos leitores o tempo todo. Quer dizer, eu não quero que todo mundo seja anarquista, não é isso… Mas eu acho legal. Eu acho até que é um arcabouço filosófico da discussão de bibliotecas, sabe? A biblioteca é uma instância institucional de resistência, de memória.
Aqui em casa, eu tenho uma biblioteca que eu arrumei por cor, mas os assuntos são por prateleira. Eu arrumo minha biblioteca desse jeito, tentando ter uma biblioteca mínima. Tem uma prateleira que é para os livros que eu não li, que fica mais perto da minha cama, que eu fico de olho neles e arrumando a fila.
Mas eu tenho uma biblioteca minha, pessoal, que eu ainda pretendo reduzir. Eu acho que tem livros que você levaria na mala da mudança, sabe? Livros que vão caminhar junto com você. Todos os livros que você não levaria na mudança, tem que ser encaminhados, tem que ser botados no mundo. Essa circulação de livros tem que fazer parte da biblioteca pessoal e faz muito parte da minha. Vivo trocando, dando de presentes, doando para bibliotecas. Faz parte.
Como que você lida com essa ideia de permanência na sua biblioteca? Você têm essa questão no seu radar?
Tenho, sim. Tenho volumes aqui que já li três ou quatro vezes, que tem gerações de anotação neles e volumes que eu comprei porque vão durar. São exemplos de encadernação ótima e que vão vencer gerações e gerações. Inclusive, tenho uma pilha deles aqui, que são da Collector’s Library.
O papel é sulfite sem ácido, que vai envelhecer super bem. Ele tem esse acabamento, uma pintura de lombada que serve para evitar o amarelamento da ponta da página. É capa dura, revestida com tecido, e as colas e as costuras são feitas para durar 50, cem anos. Esses daqui são os livros que vão durar na minha biblioteca e eu quero ver eles envelhecerem.
Nessa mesma coleção, tem Um teto todo seu, da Virginia Woolf, que foi um livro de estudo que eu usei em cursos de feminismo, e tal. É meio bíblia, pequeninho. É meu xodó. Ele tem um baixo relevo que já está sumindo, mas era a marca da coleção, uma caravela. Você vê, eu comprei em 2013. Ele tem um monte de notinhas. Dá para ver que é colorido? Eu marco com lápis de cor, faço desenhos, às vezes. Tem várias gerações de notas nesse livro, mas até ele quase não envelheceu. A página tá branca… sem contar eu pintei, né.. mas não tem amarelamento. É um livro que a encadernação está perfeita. Nem a fitinha de cetim desfiou. E o manuseio desse livro foi intenso, saca? Já emprestei, já li em grupo…
Esse tipo de tratamento para um volume é raro. Eu não tenho nenhum volume brasileiro aqui que aguentaria o que esse livro passou. Acho que é bem característico das bibliotecas brasileiras, especificamente as pessoais. Não são projetadas para ter esse tipo de uso. Acho triste.
Queria retomar um pouco o assunto do livro como elemento decorativo. Em A biblioteca à noite, Manguel escreve sobre o livro enquanto um objeto com memória, de resistência e de construção de identidade. Ele cita, inclusive, a reflexão sobre um livro judaico de orações que ele comprou em Berlim e que, provavelmente, sobreviveu ao nazismo. Como você vê essa questão?
Acho engraçado como cada geração, desde a popularização dos livros, tem um envolvimento específico com os livros. A geração dos nossos pais acha ofensivo jogar livro fora, doar livros, emprestar e não pedir de volta, dar livro que tem dedicatória e, mesmo a circulação de livro em sebo é um negócio difícil. Mesmo que comprassem em sebo, sempre a edição que tem menos marcas, que não tem rabisco nenhum, sem dedicatória.
A nossa geração tem acesso facilitado e mais barato a esses livros que, antigamente, eram chamados de livro de mesa de centro, que são os livros de fotografia, mais coloridos, com recursos interativos e edições mais bonitas. Quer dizer, a gente tem mais livros e mais livros bonitos.
Mas a nível de Brasil, as pessoas não têm nem estante, cara. A maioria da população entra numa loucura de comprar livro e daí empilha na mesa e faz esses aglomerados de livro pela casa e não tem dinheiro para comprar estante para acomodar os livros direito, aí acaba comprando uma estante que não é feita para isso e a estante cede, e daí perde os livros e nem lê o livro, sabe?
A nossa geração tem uma dimensão consumista de literatura sem a experiência compartilhada de leitura, sem a comunidade formada dos leitores, salvas exceções bem urbanas e de comunidades de classe média que leem intensamente esses bestsellers que comentamos acima, das edições frágeis e rápidas e que discutem questões jovens e do momento. Isso é muito legal, mas veja bem… o que que isso diz sobre a nossa cultura de leitura hoje em dia? Onde a gente está, o que que são essas bibliotecas pessoais hoje em dia?
Eu acho engraçado que as pessoas têm prateleiras que elas não mexem mais, que são as prateleiras que dão bicho, as que pegam mais poeira e as que vão envelhecer pior. Eu acho absurdo matar um livro lentamente, deixando-o apodrecer na prateleira, sabe? Doa para uma biblioteca, faz alguma coisa com aquilo. Mas é cultural, né? A gente está nesse momento que as pessoas conseguem comprar livros, mas não sabem direito o que fazer com eles. Não sabemos restaurar, não sabemos avaliar quando um volume é bem-produzido e vale a pena compra. As pessoas estão nessa de fazer um investimento porque o livro é um objeto de decoração interessante, que chama atenção na casa, no trabalho. O livro como escultura.
E como é sua relação com as bibliotecas públicas?
Quando eu era bem pequena, no comecinho dos anos 90, tinha uma biblioteca móvel que parava na pracinha do lado da minha casa. Foi onde eu li Mafalda inteira em edições horizontais pequetitinhas. Foi um marco na minha vida.
A biblioteca era um ônibus escolar bizarro, convertido, que não era exatamente aquele ônibus norte-americano, mas era lindo. Era um evento. Depois disso, frequentei as bibliotecas nas escolas e, depois na faculdade. As bibliotecas foram muito importantes, lugares seguros para sentar e ficar a maior parte da minha escolaridade porque são ambientes ótimos, quietos, que têm imagens bonitas e coisas legais para ver. Acho até que muitos míopes gostam de bibliotecas porque, antes de descobrir que você é míope, você lê bastante e na biblioteca é fácil de você pegar uma coisa e enfiar na cara e ninguém fala nada.
Você sente que a biblioteca teve algum papel fundamental nesse seu contato com os livros?
A leitura se passa numa escala individual, né? Você e o livro. Você tem que ir lá e ler. Se isso acontece sem nenhum engajamento externo —sem comunidade, sem discussão e sem comentários —a pessoa fica menos inclinada a repetir esse tipo de coisa, né?
Por outro lado, se você tem muitos amigos lendo um livro, você tem um burburinho, você tem os spoilers. Se as pessoas estão falando tanto, você vai lá e lê o livro, sabe? Ou vê a série, que é o novo paradigma da ficção que a gente está vivendo hoje.
O problema é que, para mim, era muito diferente a leitura recreativa da leitura escolar e didática. Esse aspecto da leitura obrigatória e horrível é o aspecto que ficou para muitos amigos. Tem amigos da minha idade, adultos, que não leem porque tem essa paisagem emocional da leitura enquanto algo que não é prazeroso.
Eu acho bizarro a atividade de leitura não passar pelas comunidades que vivem os leitores. Tenho amigos que estão muito engajados no trabalho, nos treinamentos e leem apostilas e apresentações, mas eles não param para ler um livro, porque não faz sentido. É melhor ler uma série. Vai esperar a série do livro sair para saber qual é a história, sabe? A gente perdeu essa dimensão comunitária da leitura.
Eu acho que as bibliotecas, hoje em dia, têm atraído gente quando traz celebridade ligada quele livro. Tem esses eventos da Biblioteca Vila Lobos em que eles chamam autores para discutir, leem em voz alta. Ou então pessoas fazem leituras dramáticas de textos, organizam saraus. Acho que tem duas ou três pessoas contratadas para rechear o silêncio da biblioteca com texto lido em voz alta — em situações e horários específicos. Uma atividade programada. E é muito legal. Todos os livros que eles leem acabam acumulando fila para serem retirados, sabe? As pessoas são fisgadas por esse chamado.
Clube de leitura da Blooks, que eu fui e achei legal, mas é um clube de leitura numa livraria e não numa biblioteca, né. Então, a livraria está interessada em vender os livros que estão colocados ali no clube leitura, o que é uma coisa válida também.
Falando nisso, me parece que há um aumento do engajamento das livrarias com formação de leitores e de contato com o livro. O que você acha, como você visualiza isso?
Olha, eu sou anarquista… Quer dizer, eu acho que livraria é um fenômeno curioso, bonitinho e simpático da geração dos nossos avós. Mas é uma instituição capitalista: ela comercializa livros e tem que dar lucro. Por mais poética e romantizada que seja, ainda é uma instituição capitalista.
Eu acho que essa crítica tem que ser feita, porque me parece que o século XX diluiu a crítica contra o capitalismo. Eu acho engraçado que a gente fala em livraria e é sempre essa versão romantizada, de um lugar super vazio e poético, às moscas, todo empoeirado, e que você vai achar um tesouro. Essa narrativa de ser muito especial porque é batalhado. Mas porra, é a romantização de uma instituição capitalista, sabe? O que que a gente está querendo com isso? A livraria não aumenta o letramento do povo brasileiro. A gente vive num país em que as pessoas não sabem ler, analfabeto funcional não é leitor. Analfabetos funcionais sabem assinar contratos sem saber ler a porcaria do contrato. Sabem fazer compra no mercado e fazer as contas necessárias, e assinar, ler o canhoto da compra. É isso, não lê ficção, não lê outras instâncias da literatura que estão na livraria, saca?
Além disso, frequentar livraria, para a maioria dos brasileiros, é ir tomar um café. Não é ler, não é discutir um livro. Eu acho muito específica da geração dos nosso avós essa romantização das livrarias, porque elas viraram uma constante cultural no mundo inteiro, um epicentro cultural.
Agora, a distância entre as livrarias e as bibliotecas têm diminuído. Somos de uma geração que frequenta muito mais livrarias do que bibliotecas, mas que vê os mesmos eventos: falar com os autores, fazer curso, se engajar com o contexto comunitário dos livros. As bibliotecas também estão descendo do pedestal de alta cultura, de alta literatura e desse caixão bizarro dos livros que preserva — essas múmias em formato de livros. Essa era uma imagem das bibliotecas até os anos 1990, né. Não tinha show em biblioteca, agora tem. As bibliotecas estão preparadas para receber 300 pessoas para ver um autor falando.
Penso que a livraria e o sebo tem um formato em descompasso com o mundo que a gente vive hoje. Eu, pessoalmente, não me sinto muito motivada a salvar as livrarias. É uma causa capitalista, é um pontinho do capitalismo que não me interessa, na verdade. Eu acho que as bibliotecas deveriam ser o nosso foco, porque as bibliotecas trazem esse envolvimento estatal, esse movimento público com a educação, com as necessidades mínimas da população e de engajamento. A livraria é um acesso direto ao seu cartão de crédito, é uma transação, é um consumo, apresenta cultura enquanto foco de consumo. Não tem disseminação, popularização, projeto de sociedade inclusivo em projetos de livraria, sabe? Tem livrarias belíssimas, eu frequento livrarias, elogio livreiros que ainda batalham seu cantinho capitalista, mas eu não estou nada comovida com essa causa das livrarias que estão desaparecendo, sabe?
Mas, tendo dito isso, a Amazon está aí para povoar nossos pesadelos, para pulverizar a cultura e levar a gente a extremos psicológicos de crise e surto no pior sentido possível. Me deixa sem palavras. Hoje eu estava numa discussão horrível, porque tenho amigas dos quadrinhos que estão em pânico. As mídias sociais, em 2020, foram a única frente de trabalho para vendas e a única frente de trabalho para aumentar público leitor da própria obra, mas a estrutura do algoritmo é uma ferramenta que não ajuda os artistas pequenos e a galera tá sufocando. É um estado da arte do capitalismo que a gente está vivendo e que mata essas pessoas pequenas. Sufoca mesmo e a pessoa não tem o que fazer.
Principalmente durante a pandemia, não tem o que fazer. É o estado da arte do marketing, da publicidade que conseguiu, através das mídias sociais, um controle sem precedente sobre o público. Hoje, o peixe pequeno é até 100 mil seguidores, tipo… 99 mil seguidores e você é peixe pequeno. O Instagram não te ajuda, o Facebook não te ajuda. É surreal. Esse é o padrão da Amazon.
Para terminar, como você visualiza ou espera da biblioteca daqui alguns anos?
Teve um painel na MexiCona (convenção online de literatura especulativa) sobre uma galera que fez uma biblioteca virtual, legal e gratuita de publicações digitais — em PDF, epub e tal. Acho que isso é uma dimensão do futuro das bibliotecas. As bibliotecas americanas mais ricas já tem o catálogo completo em edições digitais. É uma realidade do primeiro mundo, não é uma realidade nossa. A gente tem um legislativo atrasadíssimo e a gente não consegue acompanhar as mudanças tecnológicas, né?
Inclusive, monopólio de mercado pelo Kindle, por exemplo, é uma questão legal que ninguém está conseguindo dar conta. No Brasil, a gente só tem o Kindle e há uma dificuldade imensa para os produtores de livros e editoras colocarem para circular um livro que não seja pela Amazon.
É uma realidade que ainda está vindo para a gente, mas já é uma realidade internacional, que pauta todas as iniciativas de publicação internacional e em inglês e, com certeza, é o futuro das bibliotecas. Não vai ser possível ter uma biblioteca competente sem catálogo digital. Ao mesmo tempo, o catálogo físico resiste na medida em que ele vai sobreviver aos ataques à essa cultura digital: acaba a luz, acaba a internet, essas coisas. A biblioteca continua lá, o livro continua na sua mão.
Além disso, essa coisa da experiência física de leitura também resiste na medida em que, o livro na mão, a interação com o papel e o ritmo de leitura do volume físico defende memórias e fixa esse conhecimento. A gente não vai conseguir abandonar esse diálogo com o livro, sabe?
Então, o futuro das bibliotecas é articular essa experiência digital com a física e, depois disso organizado, otimizado e funcionando, se desenvolver e firmar enquanto centro cultural.
Por exemplo, a biblioteca do Centro Cultural São Paulo (CCSP) é uma das bibliotecas mais bem frequentadas da América Latina, com um fluxo de pessoas muito intenso. Ou seja, as bibliotecas não estão sumindo. O futuro não tem uma perspectiva de extinção à vista. O que está em risco é essa dimensão da educação, do letramento. A leitura está em risco. As bibliotecas, do jeito que elas estão, na quantidade que elas estão, estão ótimas: vão durar 50 anos, fácil. Mas quem é que vai lá? Quem vai ler? Como é que a gente vai conseguir ocupar essas bibliotecas?
Eu espero que, no futuro, o ambiente de bibliotecas tenha propostas menos capitalistas no seu uso e mais inclusivas, incluindo o empréstimo de aparelhos de leitura digital, que é a última barreira e aqui no Brasil. Por mais que você baixe 100 mil PDFs, não tem Kindle na mão da periferia. A pessoa não lê mais de três páginas no celular direito. A gente tem editoras que estão olhando para isso, para a leitura no celular, mas tem um limite, né? As pessoas não aguentam ficar olhando tanto tempo. Tem um lance do design que é o teor de ofuscamento da leitura: o conforto de interação visual com alguma coisa depende de vários fatores e, para a interação de tempo prolongado, que é a leitura, você precisa de um nível de ofuscamento baixo e um nível de contraste alto para o seu olho só conseguir passar e não ficar tanto tempo fixo e a pupila não precisar ficar se adaptando. Tem todo um lance técnico-físico que impede, realmente, que a gente leia muito tempo na tela.
Mas de futuro, eu espero que siga por aí.
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Nos últimos 21 dias, eu:
Participei do episódio: “30:MIN 374 - A Cabeça do Santo - Socorro Acioli”;
Participei do episódio: “30:MIN 375 - Livros que quero ler um dia”;
Participei do episódio: “30:MIN 376 - Por que ler Svetlana Aleksiévitch?”.