Temporada 01 – Episódio 05: Conexões fúngicas
Existem diversas formas de visualizar as conexões entre fungos e vida vegetal. Receio que, nas vezes em que comentei por aqui, tenha tomado a perspectiva utilitária, centrado nas árvores. Por isso, veremos a “internet das plantas” sob outro viés, visualizando o fungo como forma de vida e não como ferramenta.
Além disso, outro recado importante: a edição extra tomou parte do tempo responsável por essa edição — isso significa que comecei a escrever esse episódio às 8h da manhã, apenas duas horas e meia ANTES da publicação (que vai sair atrasada).
Já sabem o que significa…
Se imaginarmos uma floresta, a primeira coisa vamos visualizar é uma árvore. No entanto, as florestas são sistemas complexos e podem ser vistas de várias formas. Uma delas é visualizar os seres que brotam da terra com largos troncos de madeira; outra é enxergar um “mundo de infinitas trilhas biológicas” subterrâneas, que conectam e possibilitam a comunicação entre as árvores de uma floresta.
É com esse exemplo que Suzanne Simard, pesquisadora canadense, abre a palestra As árvores falam umas com as outras — e, para os interessados no assuntos florestais, podem conferir também as falas dela em A beleza das florestas em rede ou o livro Finding the Mother Tree (Em busca da Árvore Mãe, em tradução literal. Não foi traduzido para português, mas tem em espanhol).
Suzanne contribui muito com o campo das pesquisas florestais desde que, em 1997, resolveu estudar as possibilidades de comunicação entre árvores. Com mudas de bétula americana, abeto de Douglas e cedro vermelho canadiano, visualizou árvores se comunicando e transferindo alimentos — mas também em silêncio, no seu mundo. O cedro, por exemplo, se manteve isolado.
Ao longo do tempo, Suzanne descobriu as conexões simbióticas entre as raízes das árvores e os fungos que moram em suas raízes — as micorrizas. O interessante do quadro foi descobrir que as comunicações não eram vias de mão única e nele se envolviam fungos e árvores de diferentes espécies.
Sendo assim, visualizamos que não há só competição entre as plantas, mas também uma cooperação — quase interdependência (lembram do episódio passado?). E os fungos são papel de destaque nessa relação. Nesse processo, como veremos abaixo, são eles que estabelecem as conexões entre árvores e também auxiliam no fornecimento de nutrientes, trocando por alimentos produzidos pelas plantas no processo de fotossíntese.
Por isso, como vimos no segundo episódio, essas redes de micélio são abundantes na floresta, com centenas de quilômetros abaixo de cada passada dada em uma trilha. Preocupada em visualizar essas conexões, as pesquisas de Suzanne a levaram a mapear uma floresta (deixo a foto mais abaixo, no meio da edição) e os resultados apresentam quase a mesma imagem que um estudo sobre a internet e seus hiperlinks.
Em um gráfico, apresentou árvores interconectadas — algumas árvores chegaram a ter mais de cem conexões. Mas o padrão era interessante, essas “árvore centrais” (no inglês, é uma hub, como nos estudos digitais) são também as mais velhas, mais experientes.
São árvores que auxiliam no desenvolvimento daquela região, mas também reconhecem seus descendentes e, geralmente, priorizam seu desenvolvimento — enviam mais carbono & podem abrir mão de alguns espaços subterrâneos para que as raízes do novo ser cresça. Além disso, essas árvores aproveitam as redes criadas para “transmitir conhecimento e memória” para as outras quando estão morrendo ou doentes.
É por isso que Suzanne passou a adotar a metáfora de Árvore-Mãe ao se referir às árvores mais velhas e com mais conexões, que auxiliam no crescimento e cuidado das plantas mais novas.
Mas, nem tudo são flores — com o perdão do trocadilho. Parte da pesquisa que Suzanne desenvolve está diretamente ligada ao desmatamento e a consequente quebra dessas conexões devido à retirada das árvores-mãe. Uma metáfora que a pesquisadora usa é a dos parafusos na fuselagem de um avião: é possível retirar um ou dois, e o avião continua voando, mas existem um momento em que a coisa atinge um ponto crítico.
No vídeo, de 2016, é triste notar quando ela revela alguns dados de devastação, faz um breve suspense e diz: “aposto que vocês pensaram que eu estava falando do Brasil”. Penso no quanto, por aqui, as nossas florestas e suas consequentes conexões fúngicas estão perdendo — muito mais, nos últimos anos.
Por isso, Suzanne sugere quatro pequenos passos: se conectar com suas florestas (algo que interpreto no sentido mais democrático da palavra e aplico também para qualquer área verde); aprenda com esses espaços e cometa erros — principalmente porque é para se permitir um processo ativo de aprendizagem; proteja esses espaços e use suas redes para falar sobre isso.
Ao estudar escrever sobre isso, não consigo deixar de lembrar uma fala da Paula Morais, professora da Universidade Federal do Tocantins. Enquanto conversávamos sobre o processo evolutivo, ela comentou sobre como as formas de vida seguem caminhos diferentes por um certo processo de “escolha”, ainda que involuntário & inconsciente. Depois dessa conversa, já me peguei extrapolando a linha de raciocínio e refletindo sobre os tipos de escolhas que estamos fazendo no caminho da nossa sobrevivência…
Enfim. Sempre corremos riscos com o maravilhamentos das conexões fúngicas, a explicação do processo em um narrativa humana e as metáforas que usamos. Hoje vamos esmiuçar um desses avisos dados por Merlin Sheldrake, em A Trama da Vida: deixar de colocar os fungos como os cabos das conexões entre as árvores.
T01 E05: Conexões fúngicas
Se você pesquisar micorriza agora, são altas as chances de você encontrar uma definição que comece com “myco significa fungo e rhiza, raiz”. E, no fundo, é a melhor forma de visualizar a situação: são fungos que se associam às raízes da plantas e se auxiliam nesse processo simbiótico.
Essas relações existem desde que as plantas começaram a habitar o solo terrestre. Há milhões de anos, com a terra seca e desolada, as plantas não tinham desenvolvido raízes para se sustentar e os nutrientes estavam presos em rochas, inacessíveis. Quer dizer… praticamente inacessíveis.
Por meio relações micorrízicas, os fungos passaram a usar sua força para quebrar as rochas e tornar os nutrientes disponíveis. Em troca, tudo o que queriam eram os produtos do carbono — açúcares e lipídios. Claro que no começo as relações não eram tão organizadas, mas, hoje, as espécies evoluíram o bastante para otimizar essas trocas.
Além disso, apesar das proximidades, essa associação é menos intrincada que a dos líquens: tanto a parte fúngica quanto a parte das plantas são identificáveis e estão separadas. É uma relação bastante livre, inclusive: uma raiz podem se conectar a vários tipos de fungos; da mesma forma, uma mesma rede de micélios pode se conectar a várias plantas de diferentes espécies — e também a outras redes miceliais.
Claro, as plantas também desenvolveram raízes ao longo do tempo e elas são boas em explorar o solo. Mas é que as hifas das micorrizas são excelentes: abrangem uma área maior e, pelo seu ciclo de vida, morrem e renascem em um ritmo maior, possibilitando a exploração de áreas maiores e outros trechos. Os fungos também se relacionam com bactérias e conseguem coletar nutrientes de diversas fontes.
Como me disse Marcos Santana, da Universidade Federal de Santarém, 90% das plantas terrestres estão associadas a alguma micorriza. Além de me falar sobre Cogumelos no Brasil, Marcos também explicou que nem todas as relações micorrízicas são iguais.
De um lado, temos a endomicorriza: o fungo penetra a raiz da planta, entra na célula. É uma relação bem íntima. “Isso acontece no deserto, por exemplo. O fungo pega os nutrientes que já são escassos, acumula nele e entrega para a planta. A planta usa isso para crescer, na competição ecológica, e devolve o alimento depois da fotossíntese”, me conta Marcos.
Além disso, fungos maiores podem fazer a ectomicorriza, Como essas espécies degradam substratos, comem outros seres, não são completamente dependentes das trocas com as plantas — mas também auxiliam no processo de controle populacional de insetos e outros vegetais, além de acelerar a regeneração da floresta. Nesse caso, a associação com as raízes não penetra na planta, mas forma algo como um casaco ao redor.
No cenário brasileiro, Marcos ressalta que, pensando nessa importância e presença, se torna impossível entender o ecossistema da Amazônica sem esses fungos: “Se são 90% das plantas, na Amazônia, quanto isso representa? Como essa vegetação se mantém?”, questiona o pesquisador. “É importante estudar esses grupos para ver o funcionamento”.
E as relações fúngicas se refletem de maneira mais direta do que pensamos. Em A trama da vida, Sheldrake faz experimentos diretos com outras plantas. Manjericão e Morango, por exemplo, têm gosto e aparência variados de acordo com os tipos de fungos que criam micorriza com ele.
Outras pesquisas mostram que plantas capazes de sobreviver em um ambiente, quando trocados os fungos das suas micorrizas, criam novas capacidades de sobreviver em outros ambientes — mas perdem a capacidade antiga.
Mas essas relações são complexas e dependem da situação social. Nenhum dos dois fatores têm controle total sobre as trocas: plantas e fungos precisam “fazer acordos”, “resolver trocas” ou implantar estratégias” e cada espécie resolve as situações de um jeito diferente.
Em seu livro, Sheldrake frequentemente mostra os ajustes (quase econômicos) na relação micorrizica em um sistema de “escoadouro” — o transporte de carbono para seres que têm acesso a menos e estão mais necessitados; movimentação de fósforo de um lugar repleto para plantas que estão em lugares onde ele é mais escasso (exigindo até mais carbono por essa transação).
Durante nosso papo sobre as conexões fungos-plantas na Amazônia, Marcos faz um paralelo com o filme Avatar: o que a cientista estuda com a árvore central e a conexão com os outros organismos é quase o que existe nos fungos, um “WhatsApp das Plantas”. Mas… será?
Internet das plantas… será?
Fungos formam redes, certo? Mas pode ser vista como uma rede além do WhatsApp. Sheldrake, em A trama da vida, diz que é a diferença entre conhecer 20 pessoas e compartilhar o mesmo sistema circulatório com essas 20 pessoas.
Os compartilhamentos são fortes. Não estamos falando apenas de carbono, mas de muitas outras coisas, como nitrogênio, fósforo, água e informação. Além disso, não é qualquer fungo que se relaciona com qualquer espécie, apesar da ampla possibilidade: nem todos se conversam, nem todas as relações são mutuamente benéficas.
Também existem plantas que são “mico-heterotróficas” e dependem da rede micorrízica fungos para sua nutrição — algumas, como a Monotropa e a Voyria, dependem integralmente da rede; outras necessitam delas quando jovens, mas depois contribuem na produção de alimentos: um comportamento complexo de “pego agora, pago depois”.
Os fluxos também podem variar: uma planta maior que passa para as menores, mas também plantas que se auxiliam em diferentes estações — quando uma planta tem folhas e a outra, não.
Apesar dessa relação aparentemente ideal, Sheldrake ressalta que é importante não generalizar a natureza dessas “super-conexões”. Muitos estudos não conseguiram observar a transferência entre as plantas ou de situações em que participar da rede não faz para a planta mais do que faria um parceiro “único”, isolado/particular.
Ademais, qual a vantagem dessas relações? Para as árvores, já apontamos os caminhos para contornar esse dilema: são plantas que se beneficiam no começo, mas podem auxiliar depois. O custo não é alto, já que o acesso à luz não é exatamente limitado. Podemos visualizar pelo aspecto da “seleção de parentesco”, quando a planta auxilia a outra com um custo pessoal, mas o processo faz com que seus genes sejam preservados.
Mas, conforme diz Sheldrake, “você notará que em todas essas histórias sobre redes micorrízicas compartilhadas as plantas foram protagonistas. Os fungos recebem destaque na medida em que conectam as plantas e servem como um canal entre elas. Eles se tornam pouco mais que um sistema de encanamento que as plantas usam para bombear material entre si”.
Esse fitocentrismo pode iluminar a questão, mas transforma o fungo em uma ferramenta, tira dele o papel do ser. E esse risco se reproduz no próprio ato comunicativo: ao longo do texto, usamos imagens e metáforas que podem conferir um “agenciamento” para as plantas ou traçar comparativos com sistemas econômicos e antropomorfizar a relação.
No que tange os fungos, a primeira problemática surge ao notarmos que ele não é um agente passivo de transporte. Os fungos controlam o fluxo e gerenciam o que acontece. Sheldrake relata um experimento entre pés de feijão em que uma das plantas é atacada por uma praga e logo os sinais elétricos que avisavam da praga viajam pela rede, fazendo com que os outros pés emitam sinais que atraem vespas, predadoras da praga.
Além disso, as redes também são criadas por outros fungos, como os decompositores, que fazem redes de folhas em decomposição, galhos apodrecidos e outros materiais. Além disso, aquela rede de cogumelo do mel, que falamos na segunda edição, tem se expandido ao longo de milhares de anos… para se alimentar das árvores da floresta.
Essas são redes que consomem as plantas, não sustentam. Se unir com várias plantas, por exemplo, traz a vantagem fúngica de ser sustentado por diversas árvores e a garantia de que, se uma praga atacar uma espécie, ele ainda terá outras para dialogar.
As redes fúngicas também se beneficiam das relações com bactérias. Essa bactérias podem usar os fungos como um rápido “meio de transporte” para perseguir e caçar suas presas. Outras podem usá-lo como espaço para crescer e se alimentar. Alguns fungos chegam a cultivar bactérias para servir de alimento. Por fim, essa rede complexa entre plantas, fungos e bactérias pode transferir não só hormônios ou defesas, mas também venenos que inibem o nascimento de outras plantas.
Representações
Os estudos e resultados que envolvem esse assunto são mais complexos e desenvolvidos do que o espaço me permite, mas ainda estamos em um momento em que é complicado saber o que as redes fazem, podem fazer e talvez façam.
No que diz respeito ao que eu faço por aqui, com vocês, temos um problema sério de representação e narrativa. É difícil traduzir o que seres, que se comunicar de maneira tão distinta, estão efetivamente realizando. Será que a imagem de uma Árvore-Mãe é a melhor para trabalharmos? Estamos, de fato, vendo um processo mercadológico nas relações entre as espécies?
O próprio processo de “aviso” e “informar as plantas de uma rede de um ataque”, que falamos acima, é visto por um dos entrevistados de Merlin Sheldrake como uma “ilusão antropomórfica”. O sinal e a subsequente transmissão não é ser, necessariamente, ativo. Pode ser um reflexo, quase como um grito químico emitido pelas plantas, que é captado e repassado para outras.
Em A trama da vida, Merlin escreve o seguinte:
A internet das árvores apresenta um desafio particular. Ainda não temos certeza de como as redes miceliais coordenam seu próprio comportamento e permanecem em contato consigo mesmas, muito menos como gerenciam suas interações com várias plantas em solos naturais. No entanto, conhecemos o suficiente para saber que as redes miceliais são acontecimentos contínuos, e não coisas. Sabemos que elas são capazes de se fundir umas com as outras e se podar, redirecionar o fluxo ao seu redor e liberar névoas de substâncias químicas — e responder a elas. Sabemos que os fungo micorrízicos formam e formam suas conexões com as plantas, emaranhando-se, desembaraçando-se e voltando a se emaranhar. Sabemos, em suma, que a internet das árvores é um sistema dinâmico, em reorganização pulsante e incessante.
O que sabemos é que é o assunto é rico e, inevitavelmente, ativa nossas imaginações. Além de Avatar, foi a empolgação das descobertas micorrízicas que fez com que J.R.R. Tolkien escrevesse o presente de Galadriel a Sam Gangi, em O Senhor dos Aneis: é com fungos que o Hobbit refloresta o Condado.
Em Star Trek Discovery, temos o personagem chamado Paul Stamets, um astromicólogo que caminha com a USS Discovery pela rede micelial e um motor de esporos. O personagem é uma homenagem ao micófilo homônimo que revolucionou os estudos de cogumelo nos EUA — e é um dos personagens principais do documentário Fungos Fantásticos.
Até eu, que tento me inspirar o bastante para escrever um trechinho de ficção em toda edição, já imaginei as possibilidades de uma rede de comunicação envolvendo bactérias, redes de micélio, plantas e insetos.
E você? Já foi tocado pelos fungos?
[A máscara fúngica estava justa. Não percebeu quando os micélios penetraram a pele fina da sua face, não notou quando sutilmente foi conectado ao solo. Só agora, na tentativa de tirá-la do rosto, sentiu a mensagem que recebia.
Era necessário em Outro Lugar. E talvez, não voltasse]
Obrigado por ler até aqui!
Estou querendo abordar uma maneira de citar cogumelos e culinárias desde que comecei a idealizar a temporada. Espero conseguir fazer isso na próxima edição. De aniversário, ganhei duas caixas de cultivo próprio de shimeji branco & salmão.
Os cogumelos já foram alimentados, crescidos e devidamente comidos. Talvez eu faça um relato para vocês.
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Nos últimos 15 dias, eu:
Participei do episódio: “354 – Direitos Universais na Literatura: Defesa (com Augusto de Arruda Botelho)”;
Participei do episódio do Boteco dos Versados “Mais Uma Dose 25 – Weird Fiction e New Weird”;
Participei do episódio “355 – Os Supridores – José Falero”.