Temporada 01 – Episódio 02: Cogumelos, fungos & nomes estranhos
Nesta semana: o que são cogumelos, fungos e alguns dos nomes estranhos que fazem parte desse universo; descubra um micófilo e os cogumelos estranhos que ele compartilha.
Ainda que escrever o Ponto Nemo e retomar o hábito de falar sobre assuntos aleatórios seja uma experiência ótima, uma das coisas mais legais é conversar com pessoas. Por causa da última edição, fiquei sabendo que uma amiga que mora na Suécia estava prestes a ir a uma expedição oficial de caça aos cogumelos na floresta.
A Vanessa me mandou um e-mail contando sobre como a tradição dos locais de coleta ainda existem, como os guias nativos guardam esses lugares e passam para seus descendentes, bem como a questão cultural que conversamos na última edição. Ah, a Vanessa também tem uma newsletter e faz parte do podcast Incêndio na Escrivaninha.
Enfim… se sentirem vontade, não deixem de me escrever.
Dessa vez, diminui as categorias. A edição de hoje está um pouco mais pesada. Senti a necessidade de estabelecer uma definição, entender o que é fungo, o que é cogumelo. É preciso mostrar como eles funcionam, suas porções subterrâneas. Pela quantidade de termos e coisas novas — pelo menos, para mim — unifiquei o texto em um tema só.
Para não ter nenhum problema, eu pedi uma ajuda para o Mateus dos Fungos. Ele é um divulgador científico no Twitter e coloquei alguns fios dele para vocês checarem depois.
T01 E02: O que são cogumelos?
Para conhecer os cogumelos é preciso dar um passo para trás e entender o que eles são: fungos. Uma maneira de percorrer esse caminho é pelo documentário Fungos Fantásticos, de 2019. Com menos de uma hora e meia (disponível na Netflix), a narrativa vai da apresentação dessas formas de vida até suas propriedades medicinais, psicodélicas e espirituais — é de onde eu tirei as informações que não estão linkadas no texto.
Uma das primeiras falas do documentário é de Eugenia Bone, uma jornalista que diz que “os cogumelos não são vegetais, nem animais”, mas “algo entre os dois”. Na divisão clássica em cinco reinos, eles têm um próprio: os fungi. Estudos preliminares estimavam mais de 1.5 milhão de espécies de fungos — dessas, só 20 mil produzem cogumelos. Atualmente, uma pesquisa de Meredith Blackwell, publicada no American Journal of Botany, mostrou que é possível que existam cerca de 5.1 milhões de espécies.
O número gigantesco mostra a variedade de estilos de vida. Seja unicelular ou pluricelular; camuflado ou brilhando no escuro, os fungos podem morar em diversos lugares graças à diversidade das suas habilidades metabólicas.
Em Entangled Life, Merlin Sheldrake faz uma definição simples, mas bem clara para visualizar essa amplitude: “metabolismo é a arte da transformação química”, e os fungos são “magos metabólicos”. Por isso, os fungos conseguem “quebrar” uma variedade de coisas, seja o componente mais duro da madeira, pedras, plásticos, explosivos. Alguns, inclusive, se ocuparam do reator de Tchernóbil e se alimentam das partículas quentes de radiação, da mesma forma que uma planta faz fotossíntese (são os chamados fungos negros, já que tem a coloração negra devido à produção de melanina. Tem um fio sobre eles mais para baixo).
No documentário, a voz que emula os fungos nos diz: “Somos a sabedoria de um milhão de anos. Somos a criação, a ressurreição, a condenação e a regeneração. Nós somos a mudança”. Os fungos são uma espécie de trato digestivo da natureza, são decompositores que fazem parte de um processo de renascimento e regeneração. Eles reinserem o que está morto no ciclo da vida. Sem eles, por exemplo, a floresta estaria repleta de vida vegetal morta.
Os fungos estão por todo lugar, mas é fácil não os notar. Eles estão dentro de você e ao seu redor. Eles te sustentam e sustentam tudo aquilo de que você depende. Enquanto você lê essas palavras, os fungos estão modificando a maneira com que a vida acontece, como têm feito por bilhões de anos. Eles estão comendo pedras, fazendo solo, digerindo poluentes, nutrindo e matando plantas, sobrevivendo no espaço, induzindo visões, produzindo comida, fazendo remédios, manipulando o comportamento animal, e influenciando a composição da atmosfera terrestre. Fungos dão uma chave para compreender o planeta onde vivemos, e os caminhos pelos quais nós pensamos, sentimos e nos comportamos. Mesmo assim, eles vivem suas vidas majoritariamente escondidos das nossas visões, e mais de noventa por cento de suas espécies continuam indocumentadas. Quanto mais sabemos sobre os fungos, menos faz sentido sem eles — Entangled Life, de Merlin Sheldrake, p.3.
Como apresentado no filme, muitos eventos na história terrestre tiveram participação especial dos fungos. As plantas, por exemplo, saíram da água porque fungos serviram de substituto das raízes (por dez milhões de anos, até que as plantas desenvolveram raízes próprias). O solo se tornou fértil para a vida principalmente por causa dos fungos. Além disso, depois daquele meteoro, foram organismos que se uniram aos fungos que sobreviveram — inclusive, um dos fósseis mais antigos de cogumelo foi encontrado aqui no Brasil!
Na edição passada, falamos dos líquens e de como eles são um exemplo de simbiose; de vivência conjunta entre fungos e algas ou bactérias. São eles que estabilizam o solo para plantas em ilhas vulcânicas e em lugares onde geleiras derreteram. Em lugares mais estabelecidos, muitas vezes os fungos que seguram o solo depois da chuva.
Hoje sabemos que cerca de 90% das plantas terrestres dependem dos fungos que moram nas suas raízes (os micorrízicos) e da “wood wide web” que eles criam. É como uma internet das plantas. Por meio dessa rede, que funciona com estímulos elétricos e de maneira muito similar ao nosso sistema nervoso, as árvores sabem quem precisa de mais nutrientes, quais plantas são novas, onde estão as pragas e várias outras coisas. Para sacar esse funcionamento, precisamos conhecer as partes exóticas dos fungos.
Alguns nomes estranhos…
Uma das diferenças entre plantas e fungos é que, como disse Michael Pollan no documentário dos Fungos Fantásticos, “as plantas querem chamar atenção. Um tomate vermelho numa árvore está falando ‘Ei, eu estou aqui’. Mas os fungos não dão a mínima. Ficam fazendo suas coisas, às vezes escondidos”.
Mas Pollan ressalta que encontrar com cogumelos sempre ativa uma espécie de “dilema do onívoro”. Aquele corpo estranho & atraente nos faz levantar questionamentos de “Eu deveria comer? Sei o bastante para comer? Vai me matar se eu comer?”.
Cogumelos são uma forma dos fungos se relacionarem com os seres-não-fúngicos. Uma parte desse relacionamento, por exemplo, é o de espalhar seus esporos. Os cogumelos podem ser vistos como frutas de uma árvore e os esporos, as sementes.
Os esporos são uma forma leve, pequena e eficiente de transportar genes fúngicos — muitas vezes, proliferados sem a necessidade de um cogumelo. Os esporos são as maiores fontes de partículas vivas no ar, inclusive nas nuvens, influenciando o clima (enquanto lia essa newsletter, por exemplo, você já inspirou vários. Não deixe de dar boas-vindas).
Além disso, ao pisar numa floresta, há quase 500 km de fungo sob cada passo. É uma grande teia, crescendo e formando as conexões que já falei. A pesquisadora Suzane Simard tem dois Ted Talks legais sobre o assunto: A beleza conectada das florestas e As árvores falam umas com as outras. Essa rede é formada pelas raízes das árvores e, também, pelos micélios dos fungos.
Nem todos os fungos produzem micélios. Muitos têm estruturas unicelulares, como as leveduras do pão, da cachaça ou da cerveja. No entanto, a maioria das espécies criam estruturas tubulares conhecidas como hifas, estruturas que se esticam, se dividem, se conectam e enroscam em um fluxo irregular. São as hifas que estruturam os cogumelos e os micélios.
Essa teia pode viver praticamente para sempre, contanto que tenha comida. Um dos organismos vivos mais antigos da terra é um fungo que mora no topo das Montanhas Blues, no leste do estado de Oregon, nos Estados Unidos. A idade estimada do fungo é de 2.500 anos (número que pode chegar aos 8 mil). Ele ocupa uma área com cerca de 9 km².
A espécie em questão é o Armillaria ostoyae, conhecido como cogumelo do mel. O curioso desse caso é que o fungo não se relaciona dessa mesma maneira com as árvores da floresta, não. Ele se espalha por toda a região, mas aproveita da ligação com as raízes e troncos para se alimentar, matando as árvores em até 50 anos. Enfim… magos metabólicos. Essa é a carinha dos cogumelos do mel:
De volta aos cogumelos
Aproveitando essa deixa para voltar aos cogumelos, algumas pessoas têm medo desses seres com chapéu e seus esporos, muitas vezes associado com a morte. Os cogumelos estão no começo e no fim do ciclo das coisas… e muitas vezes, no meio.
Plantas dependem de fungos para sua alimentação e proteção. No documentário, vemos alguns animais, como as formigas-cortadeiras, uma das espécies mais socialmente complexas, com comunidades de até 8 milhões de indivíduos, que têm sua rotina criada ao redor de um fungo. Assim como algumas colônias de cupim têm segurança rígida para que nenhum inseto entre na colônia contaminado por fungos (caso tente, ele é levado a um cemitério por dois “Cupins-Seguranças”, que o decapitam e se matam depois).
Em Entangled Life, Merlin Sheldrake também aponta outros casos em que cogumelos não servem só para expelir esporos, mas podem ter aroma atraente, como as trufas (aliás, corpos de frutificação. Trufas não são exatamente cogumelos, mas, aqui nessa newsletter, elas são próximas o bastante). Além disso, são capazes de levantar asfalto e ainda virar uma tinta, como o Coprinus Comatus. Nós, por exemplo, somos muito dependentes dos fungos em vários níveis. Já citamos a importância dele na alimentação com as leveduras, mas, em nível molecular, temos muito em comum, o que facilita a criação de muitos remédios.
Isso sem contar a penicilina: sua propriedade bactericida tem centenas de anos de história, com relatos de doentes que colocavam pão mofado em suas feridas como tratamento.
Também é inevitável falar dos cogumelos e de suas propriedades psicodélicas. Seja usada em pequenas doses nos testes para tratamentos de ansiedade e depressão, seja usada em doses maiores para uso espiritual ou recrativo, a psilocibina parece ter tido um papel de destaque na história da humanidade.
Na hipótese do símio chapado, Terence McKenna argumenta que a descoberta e o uso de cogumelos psicodélicos foi um dos fatores importantes para o desenvolvimento cerebral do Homo Sapiens. O estímulo dos cogumelos teria apresentado novas possibilidades cognitivas, o que teria nos auxiliado para chegar a arte, a linguagem e as tecnologias descobertas daquele período.
Por fim, cogumelos também têm mudado a maneira com que vemos o mundo. Já falamos da Anna Tsing na outra newsletter. Dessa vez, vou comentar um pouco de Entangled Life, de Melvin Sheldrake. No livro, o biólogo conta da relação com os fungos e como eles o levaram a outro patamar de compreensão do mundo e da realidade.
Seja nas florestas, laboratórios ou cozinhas, os fungos mudaram minha compreensão de como a vida acontece. Esses organismos questionam nossas categorias e pensar neles faz o mundo parecer diferente. Foi minha crescente admiração no poder deles que me guiou a escrever esse livro. Eu tentei encontrar maneiras de curtir a ambiguidade que os fungos apresentam, mas não sempre fácil estar confortável no espaço criado por perguntas abertas — Entangled Life, de Merlin Sheldrake, p.14.
A questão dos fungos e o espaço intermediário também aparece em suas reflexões. Melvin conta que dois campos crescentes de estudos na biologia o ajudaram na pesquisa com fungos. O primeiro foi a percepção cada vez maior de seres que resolvem problemas sem a necessidade de um sistema nervoso como o nosso — e de como isso enfraquece nossa noção antropocêntrica e hierarquizada de inteligência.
Além disso, os estudos recentes de micro-organismos aumentaram a percepção da simbiose como fator onipresente na vida e estilhaçaram a noção de indivíduo, visto que necessidade de colaboração fica escancarada. Visto que nossa individualidade precisa comportar outros seres para existir, até que ponto as bactérias do meu corpo fazem parte de mim? É a biologia se misturando com a ecologia; corpos como microbiomas.
Em Melvin, a domesticação aparece como via dupla, um problema complexo e difícil de representar com uma única seta. O biólogo também escancara as limitações da cognição humana em compreender uma forma de vida tão diferente, a necessidade da criatividade imaginativa no fazer diário de ciência (inclusive, participou de um experimento com LSD para pesquisadores). O livro ainda não chegou por aqui, mas logo será traduzido pela editora Ubu e chegará com o título A Trama da Vida — a gente volta a falar dele em outra edição.
Glossopédia
Uma das minhas diversões no TikTok é ver cogumelos estranhos. Passando por aquela linha do tempo infinita, uma vez encontrei o perfil do @FascinatedByFungi e fiquei vendo todos os fungos que ele encontrou e filmou e analisou. Ele posta grande parte dos vídeos no Instagram também — já que as duas mídias estão cada vez mais parecidas.
Só depois fui descobrir que ele se chama Gordon e tem um trabalho maior de popularização dos fungos, mostrando como forragear e coletar cogumelos, apresentando espécies e fazendo receitas em vários canais.
Quem quiser dar uma olhada, fica a dica. É possível encontrar esse usuário nas redes digitais mais conhecidas, sempre por FascinatedByFungi. Tem cogumelo viscoso, cogumelo que solta gotinhas, cogumelo que parece espinha, cogumelo que parece amoeba… vários.
[Click — Num estalo, percebi que não havia nenhum livro naquelas estantes. Eram apenas papéis, tinta, couro e cola, juntos & separados. Alimento para o esquecimento, para o fungo que não parava de crescer nas paredes do fundo da biblioteca]
Obrigado por ler até aqui!
e não perca, na próxima edição: você sabe qual a presença do cogumelo na cultura brasileira? Vai ficar sabendo!
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Nos últimos 15 dias, eu:
· Participei do episódio “348 — Vai rolar uma VINGANÇA!”;
· Participei do episódio “349 — Clube de Leitura: O frágil toque dos mutilados, de Alex Sens”.