Temporada 01 – Episódio 03: Cogumelos no Brasil
Nessa semana: cogumelos no Brasil, biodiversidade, a Funga e sua preservação
Tive uma sensação complicada quando comecei a me interessar por cogumelos. Eu pensava: quão distante da suposta identidade brasileira estava pensar nos funguinhos? Quer dizer… o papel da mandioca na vida e história latina é muito visível e forte até os dias de hoje (o livro Vozes Vegetais (Ubu) mostra um pouco dessa presença fascinante), não deveria pensar em coisas afins?
Demorei um tempo até entender que os fungos são globais, que culturas se posicionam em sua rejeição ou uso: os cogumelos estão em todo canto. As pesquisas de Noemia Ishikawa me mostraram um caminho — tanto pelas pesquisas quanto pelas convivências que estabeleceu, já que parece sempre necessário lembrar à ciência da nossa humanidade.
Noemia convive há tempos com aldeias Yanomami do noroeste de Roraima e estuda como eles usam cogumelos em suas tradições. Chegaram a publicar, em conjunto, um livro sobre o uso culinário desses ingredientes — obra escrita em português e em sanöma, língua da família linguística Yanomami.
A mudança de visão que o estudo dos fungos provoca me faz inutir que o tema é rico para a ficção. Mas o caminho ainda me parece nublado. Sigamos. Sinto que ainda faltam alguns degraus até que eu possa voltar a falar de narrativas por aqui, estamos quase lá.
Nas últimas semanas, silhuetas de uma nova espécie têm povoado minha mente — humanoides andróginos de peles cinza-esbranquiçada, contorcidos, encurvados; genitálias como emissores de esporos. Inteligências compartilhadas. Sopas alquímicas, sensações. Me faltam estruturas.
Um dos contos que li na semana, publicado na Tor, chama-se Questions Asked in the Belly of the World (em tradução direta, Perguntas feitas na Barriga do Mundo). Nele, vemos uma conectividade possível e intensa: os humanos passam a fazer parte de um ecossistema micológico, uma simbiose intensa com um mundo fúngico que pede parte dos nutrientes produzidos por nós e, em troca, nos fornece participação no Mundo e um fungo consciente plantado na nuca.
Mas esse papo fica para depois. Vamos em frente… temos nossos próprios fungos para alimentar.
T01 E03: Cogumelos no Brasil
Para essa edição, quis conversar com alguém que pudesse tirar minhas dúvidas sobre os cogumelos em solo nacional. Foi o biólogo Marcos Santana, técnico na Universidade Federal do Oeste do Pará, em Santarém, que apareceu em meu auxílio. Ele é mestre em botânica, com especialidade em fungos macroscópicos (conhecido também como macrofungos; basicamente, fungos que produzem cogumelos), e doutorando em biodiversidade e biotecnologia, pesquisando cogumelos e o potencial deles na Amazônia — com previsão de conclusão nos próximos meses.
Na nossa conversa, me pareceu forte sua preocupação com a preservação dos ecossistemas e a valorização dos conhecimentos possíveis pelas vias fúngicas — inclusive, Marcos também é formado em Guia de Turismo, na intenção de fortalecer o micoturismo da região (turismo voltado para a apresentação e ensino sobre fungos, cogumelos, preservação e possibilidades gastronômicas regionais).
Nossa conversa começou com minha principal dúvida: faz sentido pensar em um cogumelo brasileiro? Mas a verdade é que… não muito. Em primeiro lugar, devido à onipresença e eficácia dos esporos: os fungos caminham pelas nuvens, na poeira e no vento. Sua dispersão cruza barreiras com muita praticidade e uma espécie que pensamos ser de um local pode estar presente em diversos outros.
O que nos leva ao segundo fator: o desconhecimento. Não é difícil imaginar uma situação em que adotamos um cogumelo como símbolo de uma região, mas logo é descoberto em outra — Marcos, inclusive, tem exemplos em sua carreira de situações parecidas. Por fim, entram nessa equação a própria ideia de conservação dos ecossistemas e suas biodiversidades.
“Recentemente, vi uma palestra sobre animais e plantas carismáticas e a maneira com que elas podem ser usadas para a conservação de outras espécies não-tão-carismáticas”, me diz o pesquisador ao explicar os problemas da adoção de uma espécie como símbolo nacional. Por exemplo, baleias e pinguins têm certas imagens, da mesma forma que araras, araucárias e castanhas carregam parte da nacionalidade brasileira. Mas os fungos têm características tão diferentes que não podem ser comparados com animais ou plantas.
“Pensar nas araras como símbolo de conservação ou nacionalidade pode funcionar. Elas têm um comportamento de reprodução determinado, um número de filhotes que é reduzido por casal, o tempo que esses filhotes vão demorar para se reproduzir é longo e etc.”, Marcos me explica, “são coisas que têm implicação nas formas que consideramos uma espécie ameaçada e o que é considerado necessário para a conservação”.
Quando pensamos em fungos, o ciclo é similar — necessidade de determinadas condições, ecossistemas e o encontro de parceiros sexuais —, mas ele se reproduz de forma diferente, são condições diferentes. Poderíamos ter um fungo na Mata Atlântica, uma espécie totalmente adaptada e nunca encontrada em outro ecossistema, mas depois encontrá-lo em campos de estudos da Amazônia.
Talvez, o problema do Brasil seja encontrar as amostras — ter recursos para entrar nas florestas e estrutura para a pesquisa. “A gente cai no dilema de tentar nacionalizar ou regionalizar algumas espécies quando, na verdade, o problema dentro da micologia é falta de conhecimento”, conta Marcos (Lembram da edição passada e a estimativa de mais de 5 milhões de espécies de fungos, com apenas uma ínfima parcela descoberta?).
Para visualizar o que estávamos falando, Marcos me enviou alguns materiais. Entre eles estavam dois PDFs, publicados no Museu de História Natural de Chicago, com fotos dos Macrofungos da Floresta Nacional do Tapajós e Fungos do Parque da Cidade de Santarém. Acessem, quando possível. As fotos são bem legais.
Esse é o Favolus Brasilienses, uma das espécies comestíveis encontrada na Reserva Extrativista Tapajós-Arapiuns. Descrição: Uma mão segura um tronco em uma floresta. Tudo parece bastante úmido. No tronco, crescem fungos brancos de diversos tamanhos no formato circular. São como ostras, mas com furos, como se estivessem costuradas.
Cogumelos & Comunidades
Antes de retomar o assunto do incentivo à pesquisa no Brasil, conversamos um pouco sobre as pesquisas que faz, principalmente seu trabalho com comunidades da região e o aproveitamento dos cogumelos em situações cotidianas (spoiler: parte da conversa aparecerá na próxima edição, quando vamos falar dos limites da individualidade e os micro-organismos).
“Quando falo de fungo para as pessoas, relacionam com doenças. Quando falo de cogumelos, elas perguntam ‘é de comer?’”, comentou o pesquisador. “Por isso acho importante popularizar essas discussões para tirar o estigma dos malfeitores e também essa ideia de que tudo que existe na natureza serve para um propósito humano”.
No caminho que trilha para a difusão dessas discussões, um dos objetivos é a publicação de um livro sobre cogumelos comestíveis silvestres para uso na culinária regional, que destaca espécies que podem ser aproveitadas, às vezes com muito mais nutrientes do que alguns produtos de origem animal e/ou padronizados.
Apesar de encontrar sempre as mesmas espécies nas gôndolas dos supermercados (shimeji, shitake, cogumelo Paris), Marcos já encontrou na região de Santarém, onde mora, cerca de 25 espécies comestíveis e com potencial para exploração gastronômica: “de onde vem essa informação? Quem começou a comer esses cogumelos? Temos que pensar nos povos tradicionais”.
Em uma de suas pesquisas, Marcos imergiu em uma comunidade ribeirinha entre o Rio Tapajós e o Arapiuns, numa reserva extrativista. Mas a experiência mostrou que o caminho que precisamos percorrer para aprender esse conhecimento ancestral exige convivência e empatia.
Nos primeiros contatos, sentiu que a relação das pessoas com os cogumelos era escassa: perguntava sobre o consumo de cogumelos, mas recebia negativas. Foi só ao perceber uma outra forma de chamar os fungos da região que entendeu que os cogumelos eram, na verdade, urupês. A linguagem aparece como um fator determinante e complexo, muitas vezes imperceptível, na compreensão dos conhecimentos tradicionais.
Mas tomo a liberdade para fazer um parênteses nesse momento. Noemia Ishikawa foi coautora, junto de Ruby Vargas-Isla e Victor Py-Daniel, de um artigo que apresentava as contribuições nos usos e conhecimentos de fungos por diversos povos indígenas da Amazônia. As esferas compreendem o uso gastronômico, medicinal, alucinógeno e até a própria sabedoria de quais cogumelos são venenosos.
Só nessa região da Amazônia, os pesquisadores destacaram doze grupos étnicos — sem contar as populações rurais e ribeirinhas — com forte presença dos cogumelos em seu cotidiano. Em uma entrevista à Fundação de Amparo à Pesquisa do estado do Amazonas (FAPEAM), Ruby fez duas falas que acho interessantes de mencionar.
A primeira das falas diz respeito à presença dos cogumelos no continente americano e seu uso por culturas ancestrais: “os fungos nativos têm grande importância etnomicológica por ser um alimento muito apreciado pelos indígenas de diversos grupos étnicos na América Central e, em geral, pelos camponeses e ribeirinhos de regiões dos bosques úmidos. Há gerações vem coletando e preparando os cogumelos nativos (cozidos, embrulhados em folhas ou assados) os quais são considerados ou vistos como uma importante fonte de proteína. Na falta de peixe e carne de caça eles conseguem suprir a falta de proteína consumindo os cogumelos”.
Marcos, por exemplo, também me contou diversas possibilidades de usos dos cogumelos pela comunidade que visitou: no caldo de peixe, em uma experiência religiosa singular (e psicodélica) ou na disseminação de espécies de cogumelos consumidos em clareiras onde ele ainda não tinha sido visto. A comunidade ribeirinha usava as florestas próximas tanto quanto usava os rios.
Outra fala da Ruby na entrevista é sobre o despertar do seu interesse por cogumelos. "O que mais me chamou a atenção foi a diversidade de cogumelos (formatos, cor, tamanhos e substratos) existentes na Amazônia. Em curtas caminhadas na floresta após um dia chuvoso, nos deparamos com os cogumelos. Observamos a floresta, animais, o homem que a habita e ignoramos a rede de fungos que se conecta neste ambiente sustentando a floresta”, mas também ressalta outro fator: a falta de micólogos formados em solo nacional.
Micologia
Eu pergunto ao Marcos sobre a formação de profissionais nesse campo e fico sabendo que o número de micólogos têm aumentado nos últimos anos e que o Brasil mantém uma pós-graduação em biologia especializada em fungos — ponto importante no campo científico já que, tradicionalmente, os fungos estavam subordinados aos estudos botânicos.
É nova a forma com que vemos os fungos atualmente e foi alterada, principalmente, com o aumento das tecnologias microscópicas: por exemplo, hoje sabemos que fungos não são animais e nem plantas. Antigamente, a percepção era de que os fungos eram plantas não-evoluídas. O que faz certo sentido: visualmente, cogumelos são muito próximos de plantas, já que não se movimentam; o cogumelo brota como uma flor; tem interação com insetos… coisas do tipo.
Agora, sabemos que fungos precisam encontrar parceiros sexuais — e que frequentemente fracassam, para poder aumentar a variabilidade genética. Dentro da cadeia evolutiva, os fungos estão muito mais próximos dos animais do que das plantas.
Outra noção recente é a percepção de um novo termo para falar desse ecossistema fúngico, a Funga. Da mesma forma que visualizamos a Flora e a Fauna, a Funga surge para destacar as formas de vida que não se encaixam nesses dois filtros. “Os fungos precisam muito disso", me diz Marcos. “Fungo tem sua importância no ecossistema, assim como todos os outros grupos. Fungo também entra em extinção, fungo também corre riscos, também são ameaçados”. Conservar fungos é conservar o ambiente.
Uma das grandes dificuldades que os pesquisadores passam é a visualização desse fator de risco nessas formas de vida, inclusive nas tentativas de inserir fungos em listas vermelhas de extinção. Retomando o começo da conversa, Marcos cita as espécies carismáticas como exemplo de novo: “Não é, necessariamente, te convencendo de conservar as araras, que eu consigo te convencer a conservar os fungos e seu ambiente. Precisamos educar, mencionar tudo isso para construir essa importância”, construir a noção das (inter)relações entre Flora, Fauna e Funga.
E nesse caminho de educação, acho que temos uma figura bastante interessante em solo brasileiro: @mateusdosfungos.
Mateus dos Fungos 🍄
Mateus Ribeiro Santana, de 23 anos, é conhecido no Twitter como Mateus dos Fungos. Graduando em Ciências Biológicas na Universidade Federal da Bahia, em Salvador, Mateus se dedica a fazer Divulgação Científica nas redes sociais, principalmente no Twitter.
Mateus sempre soube que queria ser biólogo. Tem a lembrança clara de, quando criança, ver o biólogo Sérgio Rangel no programa da Eliana e pensar que era isso que queria fazer quando crescer — curioso notar que, mesmo que não perceba, Mateus não só reproduziu a profissão de biólogo como seu papel de divulgador.
Ao começar seus estudos, logo no segundo dia de aula, saiu batendo de porta em porta nos laboratórios, procurando alguma vaga de estágio voluntário. Por um golpe do acaso, bateu no laboratório de fungos para tirar uma dúvida pessoal e, no meio da conversa, a oportunidade de pedir um espaço para estagiar surgiu e ele se ofereceu. “Eu não imaginava que eu ia gostar tanto de fungos a ponto de ficar a graduação toda lá”, me conta ele.
Nos relatos que vi, micólogos geralmente registram mudanças na percepção do mundo. Mateus me contou três diferenças que notou. “Primeiro, eu passei a ver fungos em todos os lugares”, uma educação do olhar para identificar espécies presentes.
Em segundo, sua relação com a mata. “Antes, eu olhava para cima, para as árvores. Nunca olhava para baixo. Mas fungo cresce praticamente no chão. Hoje, eu entro olhando para baixo e percebo outras coisas: plantas que ficam próximas ao solo, vejo mais insetos, mais sapos, cobras, etc.”.
Por fim, mudou sua relação com a morte: “Vendo os fungos como decompositores, passei a ter essa noção de que morrer é uma parte da vida, que tudo morre em determinado momento, mas não é o fim. É tudo reaproveitado”.
Mateus começou a divulgar ciência nas redes “na força do ódio”. Ele me explica que “não tem muito trabalho com fungo em área nenhuma, tirando os fungos alimentícios”. Ele via que “as pessoas tinham muita ignorância em relação aos fungos e ficava irritado porque até pessoas que trabalhavam com divulgação e estavam falando sobre fungos propagavam informação errada”.
Depois de tanto sentir ódio, resolveu fazer alguma coisa. Pegou o perfil no Twitter e transformou num perfil de divulgação. Ele considera seu trabalho bem-sucedido: o número de seguidores cresceu em 7 mil em menos de um ano e poucos falam sobre cogumelos na área de divulgação científica.
“As pessoas têm curiosidade. Quando se fala de fungos, elas sentem que é algo de outra dimensão, porque têm pouco contato. O contato é com a faceta negativa, das doenças, bolor na parede”. Talvez por isso, as pautas que mais são compartilhadas são as que trazem assuntos aleatórios: cogumelos que comem radiação ou bioluminescentes, que brilham no escuro.
Além disso, me parece que cogumelos têm um apelo estético natural. Pergunto se essa minha percepção faz sentido, e Mateus confirma: "Cogumelos são muito mais atraentes para divulgação do que um esquema de moléculas. As pessoas gostam muito de cogumelos coloridos. Se o cogumelo for azul, então, elas adoram”.
[Quando morreu, enterrei o corpo ao lado da figueira. Nossa promessa: juntos até depois da morte. Seus restos alimentaram os frutos que, religiosamente, comi antes de dormir para mantermos os rituais. Mas então um bolor limoso & amarelo, cresceu do montinho de terra e agarrou-se à árvore. Antes de dormir, vejo na janela a gelatina pulsando e cintilando. A silhueta ganha vida e me acena um boa noite. A brisa balança a cortina. Que saudades…]
Obrigado por ler até aqui!
e não perca, na próxima edição: quando você é composto por diversos seres, minúsculos, que usam seu corpo como planeta Terra, como entender onde acaba você?
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Nos últimos 15 dias, eu:
Participei do episódio “351 — Direitos Universais na Literatura: Alimentação — com Guilherme Zocchio (O Joio e o Trigo)”;
Escrevi um texto sobre a narrativa de Julio Cortázar para o Jornal Rascunho, intitulado “Realidade e Fantasia numa fita de Möbius”.