Temporada 01 - Episódio 08: Micopoética (ou a escrita dos fungos)
Micélios, hifas, líquens e micorrizas. Os fungos têm uma escrita própria no mundo. Mas como nos aproximar dessa leitura e fazer com que esses esporos frutifiquem no nosso pensamento?
Enfim, chegamos na última edição da Ponto Nemo deste ano. Isso significa que nossa temporada fúngica, pelo menos na sua Caixa de Entrada, também acabará.
Particularmente, acho curioso chegarmos até aqui. A newsletter nasceu de um texto que fermentou por muito tempo, alimentado com angústias que envolviam as formas de escrita, remuneração e plataformas. Tomou forma na ideia do antidestino, na figura do Ponto Nemo, e surgiu no newsletteraço enquanto espaço de experimentação de escrita.
De lá até aqui, adotei os cogumelos, conversei com pessoas ótimas — leitores e entrevistados — e encontrei novas maneiras de encarar a escrita graças aos fungos. Por isso, como conclusão da temporada, resolvi esmiuçar um pouco a questão da micopoética, a poética dos fungos.
Como primeiro rascunho, tentei separar leituras que pudessem manter o contato com a forma de vida fúngica apesar da conclusão dessa edição — como o perfil que faz música a partir dos sinais elétricos de cogumelos. A ideia era valorizar aquilo que Merlin Sheldrake evidenciou, citado na edição de Conexões Fúngicas: não transformar fungos em um aparato técnico, como um fio das árvores, ou entendê-los como um reino biológico menos desenvolvido.
Apesar da intenção ser mantida, tive que dar um passo para trás. Depois de uma conversa com Yama Chiodi, um pesquisador que reflete diretamente sob a escrita fúngica, entendi que o fascínio com a existência dos fungos não muda, necessariamente, a nossa posição antropocêntrica.
Por isso, repensei minha estratégia. Ao invés de correr o risco de cair numa exotização dos fungos, tentei escutar os que as micélias me diziam.
T01 E08: Micopoética (ou a escrita dos fungos)
Em A Trama da Vida, Sheldrake comenta sobre a capacidade primitiva de detectar e reagir às substâncias químicas que permite que as mais variadas formas de vida deem sentido e explorem o ambiente. Vejamos o nosso caso, por exemplo: para sentirmos um cheiro, uma molécula deve encostar no nosso epitélio olfativo — uma membrana que fica dentro e atrás do nariz. Esse contato vai desencadear uma cascata respostas, das pequenas até as maiores, enquanto nossa mente identifica a substância e/ou libera pensamentos e emoções.
Segundo Sheldrake, o nariz humano “pode detectar alguns compostos em uma concentração tão baixa quanto 34 mil moléculas em um centímetro quadrado, o equivalente a uma única gota de água em 20 mil piscinas olímpicas”.
Para fazer um parênteses, acho que cobras fazem algo parecido de forma particularmente curiosa: coletam as partículas presentes no ar com a língua e as conectam com o Órgão de Jacobson, um bioreceptor fendado que fica no céu da boca e é o responsável por interpretar e enviar os sinais químicos para o cérebro.
No caso dos fungos, o corpo inteiro é sensível para a interpretação desses sinais químicos. Em qualquer lugar da sua superfície, uma molécula pode se conectar a um receptor e “desencadear uma cascata de sinalizações que alteram o comportamento do fungo”, como descreve Sheldrake. Por isso, o crescimento dos fungos é sempre ativo e imprevisível — responsivo às informações químicas do ambiente.
Merlin chega a afirmar que “não é possível entender os fungos sem explorar esse mundo sensorial”, mas mostra a dificuldade de interpretá-lo. Não apenas pela limitação linguística do ato de compreender outra forma de vida, mas também pela alternância entre duas perspectivas que fazemos durante essa tentativa: a de transformar a experiência de outro numa relação inanimada e robótica ou a antropomorfização, a tentativa de encaixar outra forma de vida dentro da experiência humana.
São duas lentes que empurram as nossas interpretações para extremos: ou da objetificação, ou da subjetivação. Como ficam os fungos nesse caminho? Vistos como organismos menos complexos pela falta de um sistema nervoso central, suas interações são vistas apenas como gatilhos bioquímicos, automatizados. Mas é visível como eles detectam, respondem e se adaptam de forma ativa em relação ao ambiente — é isso que permite que eles solucionem labirintos, por exemplo, que façam as conexões com as árvores, que cacem, que infectem formigas.
Como diz Sheldrake,
nossas descrições distorcem e deformam os fenômenos que descrevemos, mas às vezes essa é a única maneira de falar sobre as características do mundo: dizer como se parecem, mas não são. Será que esse também é o caso quando falamos sobre outros organismos? (…) Em suma, não há muita escolha. Os fungos podem não ter cérebro, mas suas muitas opções implicam tomada de decisão. Seu ambiente inconstante implica improvisação. Suas tentativas implicam erros. A resposta das hifas de retorno ao lar dentro de uma rede micelial, a atração sexual entre duas hifas em redes miceliais separadas, o fascínio vital entre uma hifa micorrízica e uma raiz de planta ou a atração fatal de um nematoide por uma gotícula tóxica mostram que os fungos sentem e interpretam o mundo ativamente, mesmo que os humanos não consigam saber como é para uma hifa sentir ou interpretar. Talvez não seja tão estranho pensar em fungos se expressando com um vocabulário químico, arranjado e reorganizado de forma que possa ser interpretado por outros organismos. (…) Às vezes — como acontece com as trufas — essas moléculas podem se traduzir em uma linguagem química que conseguimos à nossa maneira, compreender. Mas a grande maioria passará sobre nossas cabeças, ou sob nossos pés.
Não é difícil de ver como distorcemos quando tentamos interpretar outras formas de vida. De forma simples, Sheldrake fala sobre um cogumelo considerado tóxico que, certa vez, foi descrito em um guia como “gostoso quando frito” apesar de “causar um leve coma em pessoas com a constituição fraca”.
Quando aplicamos metáforas e tentamos adaptar outras linguagens para nossas experiências, é inevitável que usemos nossos vieses e filtros culturais. Partindo da edição de Líquens, Simbioses & Coletividades, as metáforas para seres que vivem em cooperação já foram descritas de diversas formas: como aproveitadores, trapaceiros, escravos, hospedeiros e etc.
Nessa mesma edição, falei sobre Jan Sapp, uma das escritoras responsáveis pelo artigo que aponta a impossibilidade de definição de um indivíduo, mas apenas de seres coletivos. Em A Trama da Vida, ela comenta sobre como recebe respostas de um biólogo que a considera uma bióloga de esquerda, enquanto ele se intitula um biólogo de direita.
A argumentação é de que ela teria uma leitura socialista da coisa, já que sem a individualidade a nossa sociedade cai por terra. Nós precisaríamos manter a ideia de indivíduos racionais, que organizam coisas por conta própria, para não colapsarmos. Sapp conclui o relato rindo e comentando das pessoas que só tem uma visão dicotômica da vida, mas é fato que os cogumelos têm proporcionado novas leituras — políticas — sobre o momento em que vivemos.
Simpoiética, ou criar-com
Em O cogumelo no fim do mundo, de Anna Tsing (ainda sem tradução), somos confrontados pela noção de que vemos as coisas pelo viés do progresso. Nas nossas narrativas, as ruínas são esperanças perdidas, espaços de fracasso e do desenvolvimento que-não-deu-certo.
No entanto, preocupados com um ritmo de exploração e geração de riqueza, essas interpretações nos prendem em um ciclo de ruína ecológica e econômica, não valorizam os espaços de sobrevivência colaborativa e pretendem exaurir todos os recursos que puderem. Presos na visualização do espaço produtivo, não enxergamos as formas de vida que surgem das ruínas, esses espaços de paisagem polifônica.
É nas ruínas que Anna Tsing encontra o matsutake, um dos cogumelos mais caros e valorizados, e faz dele seu companheiro de estudo e reflexão sobre as possibilidades de vida nas ruínas capitalistas, frase que serve de subtítulo do livro.
Yama Chiodi também encontrou nos fungos uma companhia para suas produções. Antropólogo, artista, professor e jornalista, Yama escreve uma tese no campo da antropologia, na Universidade Estadual de Campinas, em que repensa o fim do mundo a partir da visão dos fungos, com metodologia e escrita inspiradas nas micélias. Sua defesa está prevista para o ano que vem.
“Encontrei os fungos meio sem querer”, ele me explica. “Estava trabalhando com as ideias da Donna Haraway e, de repente, os pensamentos iam longe estudando os fungos. O que era para ser, de princípio, uma ilustração, virou o centro da pesquisa”.
Yama me conta que parte da sua reflexão surge com Deboleena Roy, uma neurocientista que vai pensar sobre relações entre linguagem e matéria na bancada do laboratório. Ela evidencia que o entendimento de alguns processos não estão no nível corpóreo, mas precisam ser compreendidos enquanto linguagem. “Só que ela não está pensando linguagem como uma coisa humana”, diz Yama, “o que ela está pensando é que, se tem uma interação que deixa rastros estudáveis, então isso é uma forma de escrita. É assim que eu olho para as micélias”.
Yama fala que, “quando estudamos as micélias, vemos as formas, a direção de crescimento que depende da interação com o ambiente. São registros que ficam, que são estudáveis, podem ser comparados”. Nesse caminho, “entendo que isso é uma forma de escrita que podemos ler, interpretar, pensar e deixar nossa própria escrita ser afetada por essa observação”, reflete.
Em seu trabalho, o crescimento micelial radial mostrou formas não-lineares de escrita e pensamento: “Minha tese não tem um capítulo com um argumento, teste de hipótese e que vai desaguar em uma conclusão. Eu tenho um centro comum, que cresce radialmente. São várias pontas, mas sem uma conclusão — já que se chega em vários lugares”.
Em 2019, junto com diversos colegas do Laboratório de Ficção, Ciência e Cultura, Chiodi fez parte do corpo editorial do dossiê científico Fabulações Miceliais, da revista ClimaCom. No editorial, Fabular, como fazem as micélias, eles comentam sobre como “pensar com os fungos se tornou uma atividade de cumplicidade com as formas fúngicas de existir no mundo, que nos desloca do antropocentrismo que sufoca nossas ciências, culturas e ficções”.
Uma das coisas interessantes ressaltadas no texto é a dos “fluxos mobilizados pela digestão micelial” que trazem, “ao mesmo tempo, narrativas de degradação e criação — decomposição que configura ou torna possível novos mundos para outros organismos”.
Por isso, penso que o conceito de simpoiética seja importante para conhecermos. Em Simbiogensis, Simpoiesis e Ativismos de Arte-Ciência para ficar com o problema, Donna Haraway explica que “Sim-poiesis é uma palavra simples; significa ‘fazer-com’. Nada faz a si mesmo; nada é realmente auto-poético ou auto-organizador. Nas palavras do jogo de computador Inuit, os terráqueos nunca estão sozinhos [referência ao jogo Never Alone]”.
No entanto, por mais simples que seja, ainda é uma implicação radical. Como diz Haraway, “simpoiesis é uma palavra apropriada para sistemas complexos, dinâmicos, responsivos, situados e históricos” (e para quem tiver interesse, na FLIP desse ano, durante a Mesa 7 | Zé Kléber: Micélios, com Jorge Ferreira e Merlin Sheldrake, Sheldrake respondeu um pouco sobre o processo dele de visualizar a escrita fúngica).
Ao pensar sobre os fungos, Yama Chiodi faz esse caminho. Para além de questões temáticas ou estéticas, o antropólogo ressalta a importância dos fungos no nível epistemológico —na organização das ideias, na estrutura da escrita, na percepção do mundo e da linguagem.
“Os fungos estão na moda”, me diz Chiodi, “mas eu gosto de lembrar que precisamos trabalhar a visão antiantropocêntrica da coisa”. Isso quer dizer que precisamos entender que os fungos têm coisas para ensinar sobre nossa experiência — caso contrário, caímos em um lugar de admiração e exotização, não na reflexão sobre nosso pensamento. “Vira um teatro de curiosidades”, explica Chiodi.
“O que eu gosto de ver é quando deixamos eles afetarem nossa escrita e pensamento. É ouvir o que eles têm para dizer, mas fora do caminho místico ou espiritual”, Yama comenta. “É observar a vivência, eles interagindo com os arredores. É um processo diferente, de resguardar essa dimensão antiantropocêntrica de lidar com outros seres que não são humanos”.
Ruínas & Fronteiras
No que diz respeito à pesquisa, os fungos ensinaram a Yama que “fim do mundo” como acontecimento futuro é um privilégio de quem pode falar sobre fim no futuro. É um fim de mundo que não serve para refugiados de todas as espécies, que já viveram um fim de mundo; que não serve para espécies que foram extintas; para povos indígenas que sofreram genocídio. “O fungo convida a gente a pensar em mundos, no plural, que se interpõem: os fins e os mundos estão embolados uns nos outros”, diz Yama.
Nesse aspecto, a ruína aparece como símbolo de destaque — como visto no subtítulo do livro de Anna Tsing: “se fungos conseguem trabalhar para fazer nova vida em lugares destruídos, talvez a gente tenha algo a aprender com eles”, comentou Chiodi. Por exemplo: ainda que nós fiquemos paralisados pela ineficácia em gerar mudanças sistêmicas a partir das nossas atitudes individuais, os fungos nos estimulam a procurar no entorno, se movimentar e explorar, realizar o que está ao nosso alcance.
Por habitar esse espaço ambíguo, de criação & degradação, de destruição & vida, perguntei ao Yama se poderíamos pensar também na imagem das fronteiras. Creio que a imagem me era cara por ser um espaço que está, simultaneamente, dentro e fora. Seguindo minhas reflexões sobre Ficção Estranha, que brinca com as ideias de grotesco e sublime, indaguei se poderíamos pensar em algo nesse sentido.
Mas entendi que a terminologia estava fora de compasso — até para a sensação que estava procurando. Apesar do contato possível entre a Ficção Estranha e o fungo pela via do grotesco, das imagens da digestão externa, da transformação do morto em vivo, “os fungos cagam para as fronteiras e mostram como não faz sentido separar as coisas. Até a dimensão de indivíduos ou de dentro e fora é difícil com os fungos", explica Chiodi.
No fim, era essa a imagem que eu queria buscar. A sensação que tentei traduzir. A imagem da fronteira me marcou pela maneira com que é trabalhada na Trilogia Comando Sul, de Jeff VanderMeer, e a construção de dois espaços imiscíveis que, ainda assim, se misturam. No fundo, o que acontece durante a trilogia é a desconstrução do conceito da fronteira, que se transforma em uma película que permite a contaminação dos elementos internos e externos.
Enquanto ouvia a resposta de Yama, percebi que a palavra que busco está relacionado à exploração dessas territorialidades, dessas mesclas. Uma espécie de antifronteira. O fungo tem “uma fluidez exploratória e uma dinâmica de adaptação em relação ao que está em volta que deixa a noção de fronteira obsoleta”, me diz Yama, enquanto vou reorganizando minhas as percepções. “A fronteira parece que pede permissão para imaginar um lugar seguro, cercado. Uma das coisas que os fungos fazem com nossas ontologias é tirar essa certeza. Nada está seguro”, ele me conta. Aos poucos, percebo que era essa a sensação que tentei descrever. Essa era a sensação que VanderMeer me deu enquanto mesclava nosso mundo com a Área X.
Pensamento Tentacular & Caminhos Radiais
Como parte da pesquisa de doutorado, Yama Chiodi criou uma zine chamada Caminhos Radiais: histórias sobre a tentacularidade fúngica (disponível em inglês) para o congresso Society for the Social Studies of Science, em Nova Orleans. Yama mesclou arte, biologia e antropologia para criar uma obra de ciência especulativa e divulgação científica, tendo como base sua relação com os fungos e algumas teorias feministas contemporâneas.
Pelo caminho que Yama propõe na zine, gostaria de destacar três conceitos que se relacionam diretamente com a minha proposta de apontar direções para uma poética fúngica. São eles a teoria da cesta, da Ursula K. Le Guin; o pensamento tentacular, da Donna Haraway; e a ideia dos caminhos radiais, que Yama Chiodi expõe.
Ao pensar na teoria da ficção como uma bolsa, Ursula K. Le Guin desenvolve em seu ensaio Teoria da ficção como uma cesta uma linha de pensamento que busca narrativas que não sigam as linhas heroicas, lineares, conflituosas e bélica, tão comum no nosso repertório.
Ursula explica que, ao contrário do que o estabelecido no nosso imaginário, grande parte dos alimentos das eras do paleolítico, neolítico e na pré-história era coletado e não caçado. Mesmo a carne era retirada de armadilhas. No entanto, a nível de narrativa, os que saiam para caçar voltavam com histórias emocionantes, heroicas — e majoritariamente masculinas.
Por isso, ela se apoia na teoria da Elizabeth Fisher: antes da caça, da arma, desse dispositivo unilateral de ataque e sangramento, o recipiente foi o primeiro dispositivo criado. Afinal, como guardar o alimento que não cabe no estômago ou na mão? Onde colocar o bebê para colher o cereal? Onde guardar suas armas?
Soma-se a isso o fato de Ursula se identificar como distante da violência, da arma e do ato de matar — consequentemente, se sentir distante daquilo que era tido como instintivo da natureza conflituosa e violenta dos humanos. Apesar disso, Le Guin não deixa de apontar os desejos de guardar em sua bolsa coisas úteis, comestíveis ou belas para levar para casa (um outro grande recipiente, que abriga pessoas). A coleta também surge como espaço de partilha, de provisões para o inverno, de remédios, santuários, museus e outros espaços sagrados.
Não, diga-se logo, um ser humano afável ou pacífico. Sou uma mulher que está envelhecendo, com raiva, segurando com força a minha cesta, lutando contra bandidos. No entanto, assim como ninguém, eu não me considero heroica por fazê-lo. É apenas uma daquelas malditas coisas que você tem que fazer para seguir sendo capaz de colher grãos de cereais e contar histórias. (…) É a história que faz a diferença. É a história que escondeu minha humanidade de mim, a história que os caçadores de mamute contavam sobre o Herói, a de atacar, empurrar, estuprar, matar.
Em detrimento dessa história assassina, Ursula procura o que chama de história vital. É uma narrativa que parece estranha, cheia de percalços, mas que existe há muito tempo, como nos mitos de criação, contos populares, na figura dos tricksters e em diversos outros gêneros discursivos.
Diferente da narrativa heroica, que funciona como uma flecha — que, lançada, atinge seu objetivo e conclui a vida pela morte —, o conflito não é o ponto alto. O herói não tem seu pináculo. Ursula nos diz que, na cesta, não há heróis: há apenas pessoas.
Ao propor seu pensamento tentacular, Donna Haraway evidenciou a importância da Ursula e desse pensamento em sua trajetória. Numa conversa recente entre Donna e sua tradutora para o espanhol, Helen Torres, a pesquisadora diz:
nessa história ela fala sobre a necessidade de deixar de contar o conto fálico, o conto do herói com as armas, o conto de viagens fálicas que regressam com a recompensa… basta de histórias fálicas! Precisamos contar as histórias dos detalhes minuciosos de como viver e morrer juntxs, as histórias de colecionar e compartilhar e pegar e dar que não são, de forma alguma, histórias inocentes, mas são histórias de viver e morrer como uma sacola de rede, como uma mochila, como uma espécie de coleção.
É daí que vemos surgir o pensamento tentacular: estamos todos ligados, entrelaçados — vivemos em uma trama, fazemos parte da mesma cesta. Na zine, Chiodi escreve que “um corpo tentacular não é definido só pela sua forma, mas também pelas conjunções específicas e circunstanciais entre o corpo por si mesmo e tudo aquilo que ele toca. O corpo tentacular não acaba na pele. Como um ciborgue, continua vivendo pelas coisas que ele toca, as coisas em seu alcance”.
Em nossa conversa, Chiodi me conta que “o pensamento linear tem a forma de funil”. Tomando a escrita de ciência como exemplo, vamos do geral para o específico e, daí, queremos chegar numa conclusão. “É um formato que constrange o pensamento”.
Por outro caminho, a forma tentacular — e, consequentemente, a ideia da cesta — carrega consigo a ideia da coleta, da assembleia. É a reunião das coisas em um conjunto que cria o sentido do todo, não o caminho rumo à conclusão. O próprio agrupamento de histórias, em conjunto, se transforma em uma terceira coisa, fruto da interação.
“Você pode reunir coisas ao seu redor, como um corpo que estica seus tentáculos e pega algumas histórias, e não outras. Você abraça essa limitação. Com o corpo tentacular, você só pega o que alcança, o que está próximo. É um número limitado de coisas”, me diz Chiodi. Pensando no que pretende a ciência moderna neutra, perde-se o espaço da universalidade — não se pode falar por todos e nem de todos os lugares.
Yama entende que o pensamento tentacular evidencia que a narrativa deve ser afetada por aquilo que envolve: a escrita de pássaros deve envolver aquilo que se aprende com os pássaros, falar sobre pessoas refugiadas deve ser afetada pelas condições específicas dos refugiados e assim por diante. São questões que envolvem a simpoiesis, já citada acima (discussão que pode ser aprofundada na leitura do texto fazendo nós: fazer-com no Antropoceno, resenha de Staying with the Trouble: Making kin in the Cthulhucene, de Donna Haraway, que Yama Chiodi escreveu).
Em sua trilha na pesquisa, ao ser afetado pelos fungos, Yama pensa nos caminhos radiais. Sem centro ou periferia, o radial surge como um conceito que explora as possibilidades das proximidades e dos diversos caminhos, da simultaneidade.
Chiodi me explica que “a relação entre extremidade-centro não é a mesma na colônia fúngica, não é a de centro-periferia. Não é como se o centro fosse importante e a periferia, derivada”. Nesse sentido, a célula na ponta do micélio tem as mesmas capacidades que a central. Assim, o fungo traz uma dimensão fractal. Não é um corpo animal, separado, com partes especializadas e tendo no cérebro o ponto central. É simultâneo.
“Na escrita, por exemplo, isso se diferencia porque não tem uma hipótese central, de onde as coisas se derivam. São coisas que têm sentido, reflexões em diferentes histórias. O sentido é conclusivo porque estão reunidas, não porque estão encadeadas”, conta Chiodi.
Por fim, em uma reflexão feita no começo da pandemia, Yama comenta sobre Vozes de Tchernóbil, de Svetlana Aleksiévitch. Em seus trabalhos, a jornalista bielorrussa, ganhadora do Nobel de Literatura, reúne depoimentos de testemunhas que vivenciaram momentos-chave na história do declínio soviético.
Nas obras de Svetlana, os conceitos destacados acima aparecem com força. São conversas que a escritora tem, seguindo os limites do seu corpo tentacular, transcritas em um livro. A própria jornalista se mescla ao que ouve, ao que edita. Além disso, as narrativas têm sentido porque estão reunidas, trabalhando em conjunto, e montam uma imagem maior, como uma colcha de retalhos.
Nesses depoimentos, não vemos narrativas heroicas. Temos minúcias, cotidianos. Pessoas que vivem às margens da história oficial, são anônimos. As ideias de contaminação, hibridismo e fronteiras incertas são princípios fundantes no trabalho da jornalista que se considera uma mulher-ouvido.
No nível da linguagem, Svetlana diz que sua literatura obedece a uma forma diferente, é um romance polifônico. A polifonia, em termos bakhtinianos, pode ser vista como uma dissecação do princípio dialógico da linguagem. Nesse caminho, vemos que a língua dotada de um sentido único é apenas uma miragem. A linguagem só existe no contato com o outro; o sentido surge do diálogo, na circulação. A linguagem é viva, é contaminada. É líquen.
Apodrecendo por aí
Para encerrarmos essa edição, gostaria de destacar uma imagem muito curiosa (e contraintuitiva) que Yama me apresentou: deixar o pensamento apodrecer. “Penso que as relações mediadas pelo capitalismo entram todas num tempo único e acelerado. É a conversão de todas as formas de existência em um tempo acelerado”, me explica Chiodi.
Uma planta, por exemplo, se transforma numa monocultura de exploração. Deixa de viver o tempo natural, sazonal, para adentrar no tempo de produtividade. Acelerado. Sempre presente.
Por outro lado, ao pensar no apodrecimento, temos a dimensão do tempo que as coisas têm. “Você não acelera o apodrecimento no solo, ele acontece”, me diz Yama. “Ele vai depender de uma enormidade de fatores: seres orgânicos e não-orgânicos de várias naturezas, a presença ou ausência, quantidade e equilíbrio, etc. O apodrecimento tem o tempo do assentamento, de respeitar as outras ontologias temporais. Ele não deixa a aceleração ser o guia de todos os tempos”.
Ao adotar a figura da putrefação como positivo, carregamos a imagem da degradação para um novo fim-começo e invertemos a ideia de que, se é algo bom, deveria ser algo de um organismo supostamente mais complexo — como o florescer, ou brotar, das plantas.
Enfim, Yama Chiodi me diz: “quando a gente observa uma vida que é diferente de tudo que a gente faz, é uma habilidade tentar deixar o pensamento apodrecer. Deixa essa coisa que não faz sentido dentro do nosso pensamento ser do jeito que é. Às vezes, é o nosso pensamento que não faz sentido com aquela coisa".
Então, deixemos o nosso pensamento apodrecer.
Mas podemos deixar alguns alimentos de compostagem para o apodrecimento das ideias dos humus sapiens que leram essa edição. Além dos textos usados nessas — e nas outras edições — fica aqui a recomendação feita pelo Chiodi do documentário Donna Haraway: Story Telling for Earthly Survival, de Fabrizio Terranova.
Também o site Feral Atlas, que trabalha com a ideia de animais ferais — seres domésticos e selvagens, ao mesmo tempo. Coisas que se tornam monstruosas devido às transformações do mundo. O site, no entanto, não é tranquilo de navegar e, para os que resolverem se arriscar, sugiro a leitura do guia de navegação, escrito pelo próprio Chiodi.
Yama também recomendou os filmes de Denis Villeneuve, principalmente Duna, Bladerunner 2049 e A Chegada pelo trabalho de um futurismo não-tecnológico, envolvendo pedras, luz natural e coisas do tipo. Recente, também li o texto Ser junto: experimentos simpoiéticos fúngicos – A arte de Saša Spačal, da poeta Maria Clara Parente.
Para que eu possa apodrecer alguns pensamentos, encerramos aqui essa temporada. Estou muito feliz de ter chegado até aqui e feito uma temporada que durou um semestre. Parte disso, claro, foi pela resposta ativa e positiva de vocês. O número de inscritos dobrou desde a primeira edição, tive conversas ótimas — e a incumbência, dada pelo meu amigo Igor, de postar uma foto da Lorde de vestido de cogumelos.
Agora, nos vemos só no ano que vem. Muitas coisas ficaram de fora. Não consegui falar dos Anéis de Fada e o mistérios dos cogumelos que crescem em círculo. Não pude falar das iniciativas de micoturismo, para quem quisesse conhecer um pouco mais de cogumelos em campo. Também é impossível manter as coisas atualizadas: nesse meio tempo, por exemplo, tivemos uma matéria na Folha de S.Paulo chamada Cogumelos brasileiros, enfim, começam a abastecer os chefs, que dialoga com a edição de Cultivo e Coleta de cogumelos.
Por isso, digo de antemão que algumas coisas dessas temporada vão frutificar. Em primeiro lugar, devo organizar os links em um texto único no Medium. Esses links devem incluir resenhas de alguns dos livros que consultei (e que escreverei ao longo do ano que vem).
Também… como dizem que divulgar projetos auxiliam e pressionam os indecisos, aviso que vou editar & ampliar & atualizar todos os textos publicados nessa temporada em um livro. Ainda estou planejando formatos e possibilidades — mas já assumi que é um dos próximos passos da publicação. Aos que me pediram pela publicação, aguardem!
Por enquanto, nos vemos por aí.
Até 2022.
Obrigado por ler até aqui!
Se você gostou desse texto, compartilhe com alguém que você acha que ia gostar; e se você recebeu esse texto de alguém, não deixe de se inscrever e conferir as outras edições em Ponto Nemo, os textos do Estantário e os episódios do podcast 30:MIN. Também pode me seguir nas redes sociais, Twitter ou Instagram, ou conversar comigo por aqui. Se quiser, me manda um livro de presente de fim de ano.
Nos últimos 15 dias, eu:
Participei do episódio: “360 – Em defesa do SPOILER – com Luiz Ribeiro”;
Participei do episódio: “361 — Medéia – Eurípedes (com Bruna Maia)”;
Participei do episódio: “Um pouco de salada, um pouco de cogumelos alucinógenos – Boteco Alucinógeno 001”.