Temporada 01 - Episódio 07: "Cogumelos Mágicos" e a Psilocibina
É difícil pensar nos fungos sem lembrar das suas possibilidades psicodélicas. Mas quais são as propriedades que alteram nossa percepção de mundo? Como essas substâncias surgiram nos cogumelos? E há quanto tempo nos temos consumido?
Para mim, falar sobre esse tema é uma coisa muito complexa. Tenho uma dificuldade enorme de lidar com a linha estreita que (me parece) divide o consumo dessas substâncias entre a “caretice” e o “desbunde”, como disse uma amiga minha esses dias.
De um lado, o uso como panaceia, o esvaziamento ou cooptação de sentidos outros — religiosos, espirituais — por uma lógica de consumo. Do outro, resquícios de uma educação colonizadora, silenciadora de conhecimentos e costumes que fogem da racionalidade e de ideais cristão de controle, além de tabus e discursos que mascaram movimentos de guerra às drogas — mais preocupados no retorno financeiro gerado por um estado bélico do que em supostos problemas de saúde pública.
É difícil achar um tom que me deixe confortável. Mas é preciso arriscar. Marcos Santana, da Universidade Federal do Oeste do Pará, me contou uma história interessante durante a conversa do Episódio 03: Cogumelos no Brasil. “Ribeirinhos usam as florestas quase tanto quanto usam os rios, como para procurar remédios”, me disse Marcos. E disse:
“Em um dos diálogos, ouvi um relato muito interessante de uma senhora, bem idosa, com quem conversei. Ela me disse que, uma vez, usou um urupê [cogumelo] que estava brilhando na floresta. Ela estava com um problema e pediu ajuda das entidades, uma sinalização que indicasse o que ela pudesse fazer.
"Quando saiu, acredito que à noite, viu brilhar um urupê [cogumelo]. Ela me disse outro nome, mas eu não me recordo. Disse que escutou uma voz, que disse: ‘Isso é para você comer’. Aí, ela comeu e entrou num transe. Ela saiu desse transe com respostas para os problemas dela e, a partir dessa experiência, começou a usar esse conhecimento de outras formas.”
De certa forma, penso que essas mesmas vozes tocaram diversas pessoas com quem cruzei nessa trajetória, como Hemerson e Camilla, da Amuscaria Fungi, que conversei para o episódio anterior e retomo aqui. Eles não só têm uma história que começa com o Psilocybe Cubensis, como tem uma vivência que se relaciona diretamente com um movimento contracultural de “faça você mesmo” de cultivo de fungos psicodélicos e evidenciam a necessidade de conversar abertamente sobre o psilocybe.
Mas, para chegar até lá, precisamos começar. Então, sigamos.
T01 E07: "Cogumelos Mágicos" e a Psilocibina
O uso de substâncias que alteram a mente não é exclusividade dos humanos. Pássaros, lêmures, mariposas, gatos e vários outros animais já tiveram suas drogas preferidas registradas pela ciência. Mas, até o momento em que escrevo esse texto, as evidências indicam que somos os únicos a encontrar nelas interpretações espirituais.
No caso dos cogumelos, desde a Antiguidade o uso parece estar envolto em um véu místico. No Egito, por exemplo, os cogumelos apareciam como a comida dos deuses. Sem sementes, os egípcios atribuíam o aparecimento do fungo como um presente do próprio Osíris. Por isso, o consumo era exclusivo de classes superiores — ainda que, apesar das especulações, o uso especificamente de cogumelos psicodélicos como parte dos rituais religiosos egípcios não foi confirmado.
E nesse caminho há poucos registros datados. O mais longevo documento sobre o cogumelo da psilocibina é de 1486, durante a coroação de um imperador asteca. Os astecas chamavam os cogumelos de teonanáctl, cujo significado aproximado é carne dos deuses. Mas poucos relatos sobreviveram ao processo brutal da colonização espanhola.
Assustados com o uso da substância, e também preocupados com a execução de um projeto estrito de dominação, os colonizadores e freis espanhóis tentaram apagaram os máximo possível dos usos e registros dos rituais ao longo da história. No entanto, alguns relatos sobreviveram e evidenciam o papel que os teonanácatl e outras plantas psicoativas tinham na sociedade: eram consideradas presentes divinos e um caminho para obter a sabedoria de seres superiores. Frequentemente, se reuniam para comer “a carne dos deuses”. Riam, cantavam, dançavam, choravam e partilhavam experiências e visões.
Claro, além do Império Asteca, várias culturas têm outras espécies de cogumelo em suas tradições. Os xamãs da Sibéria, por exemplo, usam o famoso Amanita Muscaria (o cogumelo vermelho de bolinhas brancas) em rituais para provocar euforia e sonhos alucinatórios. Os fungos ergot tem um repertório vasto de efeitos medonhos, que incluem alucinações, convulsões e uma sensação de queimação insuportável — inclusive, podem ter sido causa dos sintomas associados à “bruxaria”.
No entanto, o foco nos povos astecas surge do papel de destaque dos cogumelos mágicos. Em A Trama da Vida, Merlin Sheldrake escreve que o uso desse fungo é (quase certamente) anterior ao dos registros dos colonizadores espanhóis: “foram encontradas centenas de estátuas em forma de cogumelo, datadas do segundo milênio antes de Cristo, e manuscritos anteriores à conquista da América espanhola representam cogumelos sendo ingeridos e elevados por divindades emplumadas”.
A principal diferença entre o cogumelo psicodélico e os outros é a presença da psilocibina (aliás, numa monografia intitulada Fungos Alucinógenos: uma revisão sobre o Psilocybe sp. e a substância Psilocibina, Jéssica Ferreira Faria explica que a definição dos cogumelos como alucinógenos é um pouco problemática. É que a psilocibina não gera alucinações verdadeiras, mas mudanças nos sentidos, pensamentos, humores e comportamento — por isso, psicodélicos).
Em oposição às alucinações, também é comum a caracterização dos cogumelos da psilocibina como enteógeno. O termo surge de uma palavra grega que significa “manifestação do interior divino” e está relacionado ao êxtase espiritual e à sensação de conexão universal que pode se manifestar durante o uso dos cogumelos — além de ter sido criada no intuito de não menosprezar experiências religiosas fora da cultura cristã.
Em seu livro, Sheldrake escreve um resumo das sensações que acometem o indivíduo sob efeito da psilocibina:
Com efeitos que vão desde alucinações auditivas e visuais e estados de êxtase semelhantes a sonhos até mudanças intensas na perspectiva cognitiva e emocional e uma dissolução de tempo e espaço, esses compostos químicos afrouxam o controle de nossas percepções cotidianas, atingem nossa consciência e nos tocam em algum lugar profundo. Muitos usuários relatam experiências místicas ou uma conexão com seres divinos ou entidades, um sentimento de “unidade” com o mundo natural e a perda do senso de identidade bem delimitado.
Ao entrar no corpo, a psilocibina é convertida em psilocina e influencia o funcionamento do cérebro de algumas formas. Em primeiro lugar, ela estimula os receptores de serotonina, um neurotransmissor que tem entre suas funções a regulagem do ritmo cardíaco, do sono, do apetite, do humor, da memória e da temperatura do corpo.
Além disso, pela semelhança estrutural com a própria serotonina, a psilocina também se infiltra no sistema nervoso e é captada pelos neuroreceptores. Ela se insere no caminhos dos sinais elétricos pelo corpo, — parte do motivo pelo qual a hipersensibilidade surge sob o uso —, e pode alterar o crescimento e as estruturas dos neurônios, além de propor novas conexões.
Recentemente, descobriu-se que a psilocibina não aumenta a atividade do cérebro, mas reduz a atividade de áreas-chave. “O tipo de atividade cerebral reduzida pela psilocibina está na base do que é denominado ‘rede de modo padrão’ (RMP)”, escreve Merlin Sheldrake. O escritor explica que, “quando não estamos muito concentrados, quando nossa mente está vagando ociosamente, quando estamos refletindo, quando estamos pensando no passado ou fazendo planos para o futuro, é a RMP que está ativa. A RMP foi descrita por pesquisadores como a ‘capital’ ou o ‘diretor executivo’ do cérebro. Na confusão dos processos cerebrais que ocorrem a cada momento, entende-se que a RMP mantém uma espécie de ordem”.
Abrindo um parênteses nessa explicação, uma das reportagens que me auxiliou na compreensão da quebra desse efeito foi escrita por Bruno Vaiano, na Super Interessante. Em Do que é feito o pensamento? A ciência por trás da voz na sua cabeça, Bruno explica o processo de construção da consciência (e a forma como nos comunicamos com ela) e, em determinado momento, apresenta uma hipótese chamada de “espaço de trabalho global”.
Ali, ele aproxima o funcionamento do nosso cérebro ao de um computador com vários processos paralelos em aberto. Nós respiramos, liberamos hormônios, caminhamos sem tropeçar e com o coração batendo sem prestar atenção a nada disso. O motivo é simples: temos um fluxo de consciência serial, e não paralelo: “prestamos atenção em uma coisa de cada vez, mesmo que várias estejam acontecendo simultaneamente.”
Sob efeito dos cogumelos mágicos, perdemos o senso de identidade e do eu. Enfraquecemos o contato com essa voz que organiza as experiências em um fluxo linear e compreensível e nos transformamos em alteridade, nos unimos ao conjunto de todas as coisas vivas em um intenso fluxo simbiótico — mais líquen do que nunca.
Proibição e Cultivo
O processo de silenciamento da colonização espanhola deu quase certo. Até 1930, quando um botânico de Harvard chamado Richard Evans Schultes leu os relatos sobre o consumo da “carne dos deuses” na América Central, pouco se falava sobre os cogumelos psicodélicos. Mas Richard se interessou. Em 1938, o pesquisador partiu para Oaxaca e lá descobriu que os mazatecas mantinham a tradição viva, aconselhando e curando, além de encontrar diversos espécies micológico.
Schultes coletou os cogumelos e publicou descobertas até que, em 1952, Gordon Wasson, um micólogo amador e vice-presidente do banco J. P. Morgan, conheceu o trabalho do botânico e resolveu viajar para Oaxaca. O relato de sua experiência foi publicado na revista Life em uma matéria chamada Em busca do cogumelo mágico: um banqueiro de Nova York vai às montanhas do México para participar de rituais ancestrais de indígenas que mastigam fungos estranhos que produzem visões. O sucesso da matéria foi estrondoso — inclusive, é a origem da expressão “cogumelos mágicos”.
Jéssica Ferreira Faria, na monografia citada acima, comenta sobre o aumento de interesse pelos cogumelos mágicos: foi um verdadeiro boom. Alavancado pelo movimento hippie e pelas pesquisas experimentais com LSD, em pouco tempo o cogumelo se tornou uma droga recreativa comum e a psilocibina um forte objeto de interesse. A procura pelos cogumelos mágicos se torna ainda maior quando, na década de 1970, os riscos legais ligados à psilocibina pura e ao LSD se tornam muito intensos no contexto de proibição e Guerra contra as drogas nos EUA de Richard Nixon.
Mas o conhecimento já estava consolidado e o cogumelo tinha caído nas graças do povo. No entanto, os entusiastas enfrentavam um problema: apesar da descoberta de espécies variadas ao redor de todo o globo, o fornecimento de cogumelos mágicos ainda dependia bastante da sazonalidade.
É com Terence e Dennis McKenna que a coisa muda de figura. Ao contar a história dos dois irmãos, Merlin Sheldrake conta como encontraram uma solução radical para resolver o problema de fornecimento após uma viagem à Colômbia: publicaram um livrinho de cultivo pessoal chamado Psilocibina: Guia do Criador de Cogumelo Mágico.
“Os McKenna não foram os primeiros a cultivar cogumelos da psilocibina, mas foram os primeiros a publicar um método confiável para o cultivo de grandes quantidades de cogumelo sem equipamento de laboratório especializado”, explica Sheldrake. “O guia foi um sucesso estrondoso e vendeu mais de 100 mil cópias nos primeiros cinco anos. Deu início um novo campo da micologia do tipo ‘faça você mesmo’ e influenciou um jovem micólogo chamado Paulo Stamets”.
Paul é uma figura bastante ativa no campo da micologia. Desde o momento em que teve uma experiência transformadora com um cogumelo psicodélico, se apaixonou pelos fungos e criou uma empreendimento gigantesco em torno do cultivo de cogumelos. Para quem assistiu ao documentário Fungos Fantásticos, o personagem já é conhecido.
É desse momento contracultural que Stamets se alimenta. “Em 1983, publicou O cultivador de cogumelos, que simplificou ainda mais as técnicas de cultivo”, descreve Sheldrake. “Na década de 1990, conforme surgiam fóruns on-line para cultivadores de cogumelo mágico, os empresários holandeses identificaram na lei uma lacuna que lhes permitia vender cogumelos da psilocibina abertamente, e muitos produtores holandeses de cogumelos comestíveis de supermercado passaram a produzir cogumelos psicodélicos”.
Descrevo essa situação com tantas aspas do escritor britânico porque elas me ajudaram na aproximação da história de Hemerson e Camilla, do Amuscaria Fungi (presentes no episódio passado sobre cultivo e coleta de cogumelos). Durante nossa entrevista via videoconferência, vi um painel atrás deles com marcas de cogumelos e, curioso, quis saber se eram alguns dos resultados dos experimentos com a tinta extraída de outro tipo de cogumelo, o Coprinus. Não era.
“O painel foi feito com carimbos de psilocybe cubensis. Fomos um dia no pasto, voltamos com muitos cogumelos e estendi um pano”, me explica Camilla. O processo de criação me pareceu intenso. “Tive o trabalho de tirar cada pezinho de cada cogumelo, posicionei em cima do tecido e deixei eles esporularem ali. Levantei de madrugada para ir trocando e fui carimbando todo o tecido com os chapéus de cogumelos” (e, para os curiosos, deixei uma foto de um trabalho parecido mais abaixo).
É também com o psilocybe cubensis que a história de Camilla e Hemerson com o cultivo de cogumelos começa. Hemerson me explica que, durante a faculdade de contabilidade que fazia, tinha um movimento alternativo muito forte que sempre falava do psilocybe, o cogumelo do pasto. “Mas ninguém vendia cogumelo na época”, ele me explica. “A galera falava para ir para o pasto depois da chuva, e a gente ia. Sempre. Quando eu tinha a oportunidade, ia acampar nos pastos, mas não acertava o dia, não conseguia achar”.
O estalo para a solução veio em uma reportagem sobre o cultivo de cogumelo-de-Paris. Se uma espécie conseguia ser plantada em casa, por que não a outra? Hemerson, sem saber, fazia parte do movimento fúngico de ‘faça você mesmo’. Ele começou a estudar a produção de psilocybe por um site chamado Cogumelo Mágico, com diários de cultivo americanos, que eram fotografados e tinham seus procedimentos traduzidos.
“Na época, era complexo até para você conseguir o carimbo de esporo”, ele me conta. O esquema se estruturava no que eu imagino ser a lacuna na lei holandesa, descrito por Sheldrake. “Você tinha que pegar um envelope, colocar o teu endereço, colocar dois dólares dentro com o tipo de cogumelo que você queria. Depois, colocar dentro de outro envelope com o endereço da Holanda e enviar”.
De lá, as correspondências faziam um percurso complicado de vai-e- volta, e, no fim, Hemerson recebia um carimbo de esporos que deveria dar cerca de mil inoculações. Camilla e Hemerson me contam do processo complicado, de ficar na boca do forno para tratar com as seringas e experimentar de todas as formas possíveis. Apesar das dificuldades, eles conseguiram.
Usos antigos, usos atuais
Mas esse interesse pelos cogumelos não é recente. O primeiro dos cogumelos mágicos surgiu há pelo menos 75 milhões de anos, como explica Merlin Sheldrake, e alguns mistérios envolvem sua existência. Afinal, por que sintetizá-la? O que ela faz para a sobrevivência dos fungos?
Dois estudos citados por Sheldrake em A Trama da Vida mostram que a psilocibina deve proporcionar benefícios aos fungos, já que aparece mais de uma vez em sua história evolutivo. Além disso, a habilidade também já saltou de uma linhagem de fungo para outra de maneira horizontal (ou seja, não herdado, mas “aprendido”). Essa situação é comum em bactérias, mas raro em fungos. Principalmente por ser um grupo de genes metabólicos que se manteve intacto ao longo do tempo entre essas linhagens — o que significa que é uma característica que deve garantir uma certa eficácia na manutenção da espécie, pois, caso contrário, o mais provável seria o definhamento da característica. Mas qual é essa vantagem?
O terreno é incerto, e tudo que nos resta é especular. Mas conseguimos estabelecer alguns contornos. Os genes responsáveis pela produção de psilocibina foram transferidos entre fungos que viviam em madeira apodrecida ou em esterco de animais. Além disso, os ambientes tinham características próximas: ou os cogumelos ou eram comidos por insetos, ou competiam com eles.
Como esses insetos provavelmente são sensíveis à atividade da psilocibina, é possível conjecturar que ela possa influenciar o comportamento animal, mas não está claro como. Se levarmos em consideração a hipótese mais conhecida, de que a psilocibina é um repelente de insetos, não parece uma forma muito eficaz: “existem espécies de mosquito e mosca que, rotineiramente, fazem sua moradia dentro dos cogumelos mágicos. Caracóis e lesmas os devoram sem efeito nocivo aparente. E observou-se que formigas-cortadeiras buscam ativamente certos cogumelos da psilocibina, carregando-os inteiros até o ninho”, explica Merlin Sheldrake.
Por isso, outros pesquisadores caminham na hipótese de que a psilocibina, então, influencia os animais a atuar de maneira que beneficie o fungo. Será? A psilocibina pode ser tóxica para alguns e resistente para outros, garantindo acesso exclusivo aos cogumelos. Mas como se estruturam essas relações: defesa? difusão dos esporos? É difícil saber.
No que diz respeito à história da humanidade, alguns pesquisadores postularam a hipótese do símio chapado, relacionado o consumo de cogumelos da psilocibina com a evolução biológica, cultural e espiritual da espécie humana. Para Terence McKenna, os cogumelos mágicos são os responsáveis pelos lampejos de autorreflexão, linguagem e espiritualidade que desembocou no desenvolvimento das sociedades, do comércio e das artes.
No entanto, como Sheldrake nos explica, o terreno é incerto e precisamos caminhar nele com muita cautela. Supõe-se que divindades micológicas tenham sido registradas em pinturas rupestres em 9000 a.C. e, da mesma forma, sabemos que primatas procuravam e consumiam cogumelos como alimentos. No entanto, nenhum caso bem documentado comprova o consumo amplo do cogumelo da psilocibina pela análises dos vestígios encontrados e tampouco podemos ter certeza de que os fungos estavam retratados naquelas pinturas — mas “a ausência de evidência também não é evidência de ausência”, ou seja, é um espaço ideal para a especulação.
O que sabemos é que, em relação aos dias de hoje, temos evidências o bastante para justificar um consumo atual. De acordo com pesquisas que retomam a psilocibina como objeto de estudo, a eficácia deles comprova que os cogumelos da psilocibina são capazes de curar uma ampla gama de problemas humanas — um conhecimento científico que demorou para chegar no patamar do que já era amplamente conhecido por culturas tradicionais há muito tempo.
Em 2016, um estudo da Universidade de Nova York em colaboração com a Universidade de Johns Hopkins mostrou que 80% dos pacientes que sofriam de ansiedade, depressão e tinha sofrimento existencial após um diagnóstico terminal de câncer tiveram mudanças drásticas após uma dose de psilocibina junto com um tratamento psicoterápico.
Os pacientes relataram sensações de alegria, êxtase e amor. Um movimento para a sensação de isolamento para a de interconexão. Grande parte dos envolvidos relataram, no final do experimento, que essa seria uma das experiências mais significativas da vida deles, ao lado de situações como o nascimento dos primeiros filhos ou a morte de um dos pais. Recentemente, um artigo evidenciou usos possíveis da psilocibina até mesmo das sequelas da Covid-19.
“Eu sempre brinco que, quando começamos e temos essa curiosidade, a gente imagina que vai comer um cogumelo e vai ser como Alice no País das Maravilhas”, brinca Hemerson, do Amuscaria Fungi. “Mas eu descobri que não era bem assim. Na verdade, é um poder incrível e tem uma capacidade de mexer com nosso raciocínio, de mostrar, de ensinar, de curar”.
Camilla e Hemerson tem experiência com o psilocybe cubensis em diversas frentes de trabalho. “Há 15 ou 20 anos atrás, o uso de cogumelos estava carregado de preconceitos. Era um usuário de drogas, ia ficar sequelado para sempre. Hoje, a grande maioria de interessados é de senhores de cabelo branco, com filhos grandes e mente aberta que estão procurando alternativas para uma vida melhor, mais saudável e também autoconhecimento”, eles me contam.
Além disso, Hemerson me conta que existem variações, concentrações diferentes de psilocibina. Quem cultiva e consome adquire um conhecimento e uma experiência com sua produção que mostra a diversidade das relações e sensações. “Eu brinco que alguns são mais amigáveis”, diz ele.
Para que eu pudesse entender, ele descreve: “Para mim o problema do cogumelo é o início. Depois que você consome, tem uma sensação de ansiedade, medo e angústia. São quinze ou vinte minutos desse processo. Mas é possíveis facilitar a travessia”, me explica dizendo que existe uma brincadeira de que é uma passagem para outra dimensão. “Concentrar na respiração e fazer jejum, por exemplo, são coisas que tornam mais fáceis o processo”.
Eles já tiveram experiências divertidas e recreativas; já tiveram momentos de autorreflexão sobre o Eu e as conexões do planeta; Hemerson também descreveu uma experiência de cura — já que se desintoxicou do cigarro depois de uma dessas experiências.
“É como se a gente vivesse dentro de um casulo, que limita a nossa percepção das coisas”, me diz Hemerson, e “o que o cogumelo faz, me parece, é que ele abre a nossa visão. Coloca nossa cabeça para fora. Conseguimos observar outras coisas, notar a importância delas. Coisas que parecem óbvias no momento da experiência”.
Camilla comenta que é nítido o aumento de interesse das pessoas. “Em todo encontro em que temos a oportunidade de falar de cogumelos, a curiosidade com os psilocybe vem. Às vezes, alguém puxa o assunto na roda, outros nos procuram depois, quando os filhos já estão longe”. Mas ela destaca a importância da organização enquanto comunidade, para que não haja entraves ou problemas quando o consumo se tornar legalizado e controlado.
“As pessoas perguntam ‘posso tomar um cogumelo e ir para uma rave?’”, me conta Hemerson. “Não, não vai. Você vai passar mal. É diferente de uma droga, não é para dar uma chapada de cogumelo. Você vai procurar uma coisa e vai encontrar outra, bem diferente”.
Na fala dos dois, fica evidente a necessidade de respeitar o momento do consumo. De encarar o cogumelo de acordo com o objetivo daquilo que você quer, sem consumir achando que vai “tirar uma pira”. Por isso, evidenciam a importância de se organizar enquanto comunidade, de tornar o terreno seguro para a legalização e organização, como a Ayahuasca e o Peyote, além de quebrar os estigmas e mitos.
Microdosagens
Camilla também evidencia o aumento do uso das microdosagens de psilocibina. “Você tem o uso do psilocybe para trabalhos espirituais, mais introspectivos. Mas também o uso das microdosagens para pessoas que querem cura, mas não a experiência”. Eles me contam que a valorização da pesquisa desse tipo de medicamento é importante não só pela possibilidade de tratamento além do espectro dos medicamentos controlados, mas também porque as microdosagens possibilitam uma reorganização das experiências, uma quebra no padrão comportamental do cérebro, conforme descrevemos acima.
Ao descrever esses efeitos no nosso corpo, Merlin Sheldrake fala sobre a dificuldade de explicar as reações e efeitos da psilocibina no cérebro. “Normalmente, entende-se que as drogas atuam por meio de um circuito farmacológico que ignora a consciência: uma droga afeta um receptor, que desencadeia uma mudança nos sintomas”, escreve ele. Em outras palavras, é difícil pensar que nossa experiência com a dipirona afete muito a sua eficácia.
“Em contraste, a psilocibina — como o LSD e outros psicodélicos — parece agir sobre os sintomas da doença mental por meio da mente”, explica Merlin”. O circuito padrão é ampliado: uma droga afeta um receptor, o que desencadeia uma mudança mental, que por sua vez desencadeia uma mudança nos sintomas. A própria experiência psicodélica do paciente parece ser a cura”.
Tais experiências modificam as categorias que organizam a experiência humana, “tiram a pessoa da própria história”. A psilocibina em microdosagem pode induzir, com segurança, experiências consideradas místicas e apresentar um sentimento de deslumbramento, interconexão, transcendência temporal e espacial e uma nova compreensão intuitiva sobre o que é a realidade.
Novamente, retomando o começo do texto, não se trata de uma panaceia. Os estudos com a psilocibina são recentes e as restrições são vastas — casos, inclusive, em que o uso da psilocibina agravou quadros depressivos e suicidas, ao invés de uma melhora no tratamento. Mas estudos da substância, há muito proibida e afastada pelos estigmas da guerra contra as drogas, têm mostrado que é um caminho que vale a pena investir e descobrir — sem desbunde, nem caretice… ou talvez um pouco dos dois.
Obrigado por ler até aqui!
Se você gostou desse texto, compartilhe com alguém que você acha que ia gostar; e se você recebeu esse texto de alguém, não deixe de se inscrever e conferir as outras edições em Ponto Nemo, os textos do Estantário e os episódios do podcast 30:MIN. Também pode me seguir nas redes sociais, Twitter ou Instagram, ou conversar comigo por aqui. Se quiser, me manda um livro de presente.
Nos últimos 15 dias, eu:
Criei a minha homepage, você agora pode me encontrar em www.estantario.com.br;
Participei do episódio: “358 - Vai rolar uma PORRADARIA (com Cesar Marcon)”;
Participei do episódio: “359 - Degenerado, de Chloé Cruchaudet”.