Sobre criações, mentiras & trapaças: paródia profana
Último episódio da minissérie sobre tricksters | Se tricksters são mensageiros divinos, que tipos de mensagem eles revelam?
Chegamos na conclusão da minissérie sobre os tricksters! Aqui, finalizamos a leitura relacionando as histórias dos trapaceiros com a essência daquilo que é sagrado e profético. Se os xamãs e oráculos nos dão mensagens claras, os tricksters evidenciam a natureza dúbia da linguagem e das mensagens divinas. Se existe uma mensagem, existe um caminho e um mensageiro — e coisas que se perdem no trajeto.
Vocês devem ter notado a correria com a interrupção abrupta das histórias em formato de podcast. Pois é, o fim da minissérie dos tricksters inaugura um momento de “semi-hiato” na newsletter. A próxima temporada deve começar em agosto… ou deveria. Estou em processo de conclusão da tese e devo passar o segundo semestre focado na escrita. Se o cronograma apertar, ficamos com as Anemonações quinzenais e textos soltos que me surgirem — já tenho um rascunho sobre crises narrativas; outro, sobre crítica literária.
Devo pegar o tempo de produção das temporadas para fazer uma revisão básica e publicar as temporadas antigas em ebooks fechados na Amazon: cogumelos/fungos, bibliotecas, sonhos & tricksters (mas se você, leitor, tiver uma editora e quiser fazer uma troca no processo, adoraria bater um papo). Falamos disso melhor na virada do mês.
(Se quiserem acompanhar as novidades, tenho atualizado o perfil do @estantario no Instagram!)
A edição também traz um apanhado de referências que foram usados na escrita da newsletter. Ainda que grande parte seja um comentário sobre A astúcia cria o mundo, do Lewis Hyde, coloco também outros livros que auxiliaram na concepção da temporada.
Enfim, se você chegou agora, temos três episódios exclusivos em áudio com narrativas orais de Exu, Hermes e Susanoo, feitas por Inês Breccio, contadora de histórias. Você pode acompanhar os episódios com transcrição aqui no Substack ou em qualquer agregador de podcasts, como o Spotify.
Se você ainda não for inscrito, não deixe de colocar seu e-mail no botão abaixo para não perder nenhuma edição. Caso seja, o botão também permite um upgrade na assinatura para apoiar e garantir a continuidade da Ponto Nemo — se preferir, também temos a página no Financiamento Coletivo no Catarse.
Então, vamos nessa. Pé na estrada!
Paródia profana
Se a profecia desvela o mundano para revelar o divino, sim. É verdade. Os tricksters são profetas. Suas mentiras contam verdades; suas mensagens são desígnios dos imortais. Em uma de suas histórias, Yasoda, mãe de Krishna, precisa sair de casa e pede ao filho que, enquanto isso, não encoste na manteiga. Quando volta, Yasoda encontra Krishna no chão... lambuzado de manteiga.
Krishna, claro, responde às broncas como um trickster, esquivando-se. Ora culpa as formigas que, supostamente, estavam nos potes — e Krishna, coitado, só estava retirando os insetos de lá; ora diz que a culpa é de Yasoda, que o vestiu com braceletes apertados, que arranham seu braço — a manteiga nas feridas era o único alívio para a dor. Por fim, Krishna retruca: “Não roubei a manteiga. Como poderia, se tudo nessa casa pertence a nós?”. Yasoda, impressionada com o filho desavergonhado, ri.
Quando Krishna cresce, uma outra fome surge nas suas entranhas. Para saciar-se, o jovem trickster passeia pela floresta nos arredores da floresta, tocando melodias encantadoras com sua flauta. Quando escutam a músicas, mulheres saem das suas casas e seguem para dançar com Krishna à luz da lua — abandonando tarefas, maridos e o que quer que estejam fazendo.
Em determinado momento, o jovem multiplica-se para que cada mulher possa tê-lo por inteiro. Satisfaz o desejo de cada uma delas, como um amante. No entanto, quando o dia amanhece, Krishna desaparece e elas se encontram sozinhas & confusas.
O que as mentiras e trapaças de Krishna apontam é que, sim, os trickster revelam uma verdade escondida, mas, como lembra Lewis Hyde, “profetas geralmente não operam dessa maneira invertida. Isso é profecia com uma diferença”.
Krishna não é motivado pela escassez. É movido por desejo & fome, mas não pela falta do objeto desejado. Por que o trapaceiro age dessa forma? Como Hyde sugere, “a abundância que Krishna quer (ou simboliza) só está disponível quando a estrutura é removida”. O alimento de Yasoda para o filho era preparado — repleto de rituais, regras e costumes locais. “A manteiga roubada, por outro lado, é não condicionada, imediata, concentrada”; fora do controle local e materno. O casamento, assim como a refeição preparada, é estruturante da vida erótica e sexual; não é essa a maneira que Krishna busca para aplacar seu tesão — talvez, tampouco as mulheres.
Como um profeta tradicional, Krisha rompe o mundano e aponta para uma vastidão divina. Mas é esperado que um profeta, ao destruir a segurança do mundo cotidiano, dê um novo solo firme para sustentação. Um padre, por exemplo, pode apontar a dor e o sofrimento do mundo, mas dá em troca a segurança dos céus. A certeza do pós-vida.
Os tricksters... não. Eles extinguem o mundano, mas não deixam nada no lugar. Quando o dia amanhece, Krishna desaparece. Como escreve Hyde, “o mensageiro partiu sem deixar mensagem nenhuma”. Ele não diz o que seus atos significam: exibe o que há de construção no que parece natural na realidade criada e parte. Silencia sua existência, mantendo o vazio. O pesquisador explica que
não podemos ler seu significado ‘através dele’, pois o que representa está ausente. Opera não como um ponto de entrada para o significado, mas paradoxalmente como gerador de múltiplos significados. Isso equivale a dizer que, quando tentamos encontrar o sentido de um desses ‘símbolos da perda’, descobrimos apenas sentidos que nós mesmos lhe atribuímos e podemos facilmente atribuir significados novos a cada vez que os abordamos. (...) Krisha apaga o mundano, depois apaga a si mesmo, e essas remoções — precisamente porque não declaram — abrem o território para que os seres humanos desfiem interminavelmente suas ideias sobre o que aconteceu.
Em outras palavras, Hyde diz que “há tantas respostas quanto há anseios humanos”. É possível fazer um paralelo com o Guia dos Mochileiros da Galáxia e o número 42. No romance, um grande computador é criado para encontrar a resposta para a vida, o universo e tudo mais; depois de muitos anos, a resposta é descoberta: 42. Infelizmente, esqueceram de questionar qual era a pergunta para a vida, o universo e tudo mais — e, agora, o computador já está quebrado.
Nesse caso, há tantas perguntas quanto os anseios. Entendemos a plenitude dessa resposta conforme queremos entender, formulamos a pergunta a partir daí, balizamos com nossas experiências. O que os tricksters querem dizer é que cada verdade divina é, então, uma construção essencialmente humana.
O caminho que a revelação do trickster percorre é, também, oposto. Sua força motriz é o desejo. A luxúria não deve ser evitada, mas usada como propulsora. Ao fazer uma concessão para Hermes, Apolo afirma não poder conceder o dom da divinação, mas dá a ele o direito de abençoar um oráculo, o Oráculo das Donzelas-Abelhas. No Hino a Hermes, traduzido por Maria Celeste C. Dezotti e Sílvia M. S. de Carvalho, está escrito:
Mas a divinação, meu caro, que sem cessar me solicitas, nem a ti é dado conhecer, nem a nenhum outro imortal. Pois este saber é da mente de Zeus. Quanto a mim, empenhei minha palavra ao assentir, com potente juramento, em que, além de mim, nenhum outro dos imortais conheceria de Zeus o ponderado desígnio.
(...)
Existem, de fato, certas Moiras, irmãs de nascença, virgens, envaidecidas das asas velozes; são três. Elas têm a cabeça salpicada de branca farinha e habitam morada ao pé da falda do Parnaso; são mestras avulsas da divinação, à qual eu, a par dos bois, dediquei-me, ainda menino; e meu pai não se importava. De lá, então, voejam ora aqui ora acolá, a nutrirem-se de favos de mel e perfazem cada desígnio. Quando saciadas de mel verdoengo, caem em êxtase e, de bom grado, desejam a verdade declara. Mas, se carecem do doce alimento dos deuses, aplicam-se, então, em guiar por extraviados caminhos. Esse, pois, eu te concedo.
Em primeiro lugar, é interessante notar o espaço intersticial que as Donzelas ocupam. Seu alimento não é terreno, já que carecem do mel, “doce alimento dos deuses”. Mas tampouco estão livres da fome, vermes do estômago. Apolo, então, fica com a profecia pura; enquanto isso, Hermes recebe o direito da profecia mentirosa, refém do apetite.
Uma fome que reflete aquilo que dissemos antes: com o alimento divino, não estamos preocupados com a escassez, mas com a luxúria, um desejo pelo que a ordem retirou do mundo.
Em outra de suas histórias, um Krishna criança brinca nas ruas e come terra. Yasoda, sua mãe, se prepara para brigar com o garoto. Primeiro, Krishna nega; depois, abre sua boca. No entanto, o que Yasoda vê ali, na boca de uma criança ainda não completamente moldada & educada pela ordem humana, é o universo inteiro… em turbilhão. Como escreve Lewis Hyde, o que sua mãe vê não é “a pureza celestial”, mas a “plenitude deste mundo antes que a ordem determinasse a exclusão da sujeira”.
Xamãs ou falsos xamãs?
Em A astúcia cria o mundo, Hyde destaca o trabalho de Mac Linscott Ricketts, teólogo estadunidense que pesquisou as narrativas de tricksters norte-americanos. Em seu doutorado, defendeu que os contos tradicionais colocam o trickster em oposição às práticas e crenças do xamanismo.
“Segundo a maneira de pensar de Ricketts”, escreve Hyde, “a humanidade teve duas respostas quando confrontada com tudo o que engendra assombro e temor neste mundo: o caminho do xamã (e dos sacerdotes), que supõe um mundo espiritual, curva-se perante este e procura fazer alianças; e o caminho do trickster (e dos humanistas), que não reconhece poder além de sua inteligência, que procura apreender e subjugar o desconhecido com razão e astúcia”.
Ao evidenciar o desejo como força motriz, o trickster cutuca a ferida das restrições humanas. Os mortos não voltam, tampouco podemos conquistar a imortalidade. Evidenciar essas verdades faz com que o olhar se volte para o mundo terreno, não o sagrado.
Misturar o sujo com o limpo; o pudor com a sem-vergonhice; o engraçado com o sério; o sagrado e o profano. Tais movimentos quebram as estruturas da realidade e revelam aquilo que ficou de fora, faz ressurgir o caos primordial — o universo em um punhado de lama e saliva.
Então, se o xamã entende que o trickster viola o mundo ideal, o trapaceiro sabe que há um ponto cego nesse retrato. O que ele pede é o “reconhecimento da complexidades do próprio reconhecimento”, como diz Hyde. O pesquisador escreve que, “se há falsos xamãs entre nós, teria sido melhor aprender a interpretar, e nesse ponto reside o elemento final do padrão da profecia trickster. A revelação da plenitude exige uma revelação da mente”.
A importância da linguagem e do simbólico foi apontada nas edições anteriores, mas retomamos. A profecia é uma construção humana, linguística, narrativa. Se um profeta quer expressar uma verdade divina, precisa estar ciente dos processos criativos e imaginativos. Nas palavras de Lewis Hyde, “se há uma falsa crença entre nós, precisamos ter consciência de como a fé é criada”.
A fé habita uma estrutura rígida e, como vimos, no mundo dos tricksters, isso significa que não permite o contato com o outro, é incapaz de provocar a própria mudança. São os trapaceiros que, com seus humores e profanações, testam os limites. Mostram que acaso, ruído, coincidência, ambiguidade não são desvios, mas elementos que constituem o universo.
Dessas movimentações do trickster no campo da fé, nascem duas alternativas sombrias: (1) ou as profecias são verdadeiras, mas nosso caminho é permeado pelas incertezas do simbólico, de mensagens imprecisas e de sujeitos suspeitos; (2) ou a ‘mensagem divina’ é uma fantasia que esconde as nuances da realidade.
…jamais saberemos a alternativa correta. Não somos deuses, nem entidades divinas. Somos humanos, perenes. O que fazemos é seguir. Rindo, sujando, trepando & comendo. Caminhamos, rumo à encruzilhada, em direção ao acaso. Colisão frontal? Pé ante pé?
Que os tricksters olhem por nós.
Laroyê, Exu.
Notas de rodapé
Caso você queira ler mais sobre os tricksters, recomendo primeiro a leitura de A astúcia cria o mundo — Trickster: trapaça, mito e arte (2017, ed. Civilização Brasileira) , de Lewis Hyde. Ele faz um panorama geral, um sobrevoo de narrativas e temáticas dos tricksters que auxiliam no caminho das pedras e podem contextualizar para os aprofundamentos.
Para ler outras versões dos mitos citados aqui, é possível consultar Mitologia dos Orixás (2020, ed. Cia. das Letras), de Reginaldo Prandi. O Livro da Mitologia (2018, ed. Globo) é um compêndio de vários autores e, apesar de ser bastante introdutório, possui abrangência geográfica e uma boa lista de referências — é o local mais fácil para encontrar a história de Maui, o trickster polinésio, por exemplo, já que quase não há textos traduzidos. O Hino a Hermes foi retirado da coletânea Hinos homéricos (2010, ed. Unesp), bastante completa e que vai ser lida no projeto das Anemonações de Adônis.
Outras narrativas são menos acessíveis. O Kojiki, por exemplo, não foi completamente traduzido. Minha principal fonte foi a monografia de Bruno Costa Zitto para o curso de Letras da UFRGS, Tradução comentada do Kojiki (Tomo I): projeto visual. Mas também consultei a versão em inglês Kojiki: an account of ancient matters (2014, ed. Columbia University Press), traduzido por Gustav Heldt.
Para conferir as narrativas nórdicas, minha indicação é The Poetic Edda (2014, ed. Oxford University Press), traduzido por Carolyne Larrington para o inglês. Todas as versões em prosa passam pelo filtro do Snorri Sturluson e também não confirmei o texto de algumas versões traduzidas para o português.
Por fim, para as narrativas de nativos norte-americanos, infelizmente, também não há material traduzido. O ideal é começar pelo trabalho do Paul Radin, Trickster: a study in american indian mythology (1987, ed. Schocken Books Inc.). Há também uma coletânea organizada por Richard Erdoes e Alfonso Ortiz, chamada American indian myths and legends (1985, ed. Pantehon) e consultei os links Raven becomes voracious: A Tsimshian Legend e Native Languages of the Americas: Tsimshian Legends, Myths, and Stories para escrever sobre o Corvo trickster.
Obrigado por ler até aqui!
Se você gostou da edição, compartilhe com alguém que possa gostar. É de grande ajuda!
Além disso, você pode conferir a campanha de financiamento coletivo no Catarse — ou assinar pelo Substack — e ter acesso antecipado aos textos das Anemonações.
As novidades da newsletter, próximas pautas e calendários estão no nosso perfil do Instagram. Se você recebeu esse texto de alguém, não deixe de se inscrever e conferir as outras edições em Ponto Nemo. Outras produções estão disponíveis no Estantário e você pode me ouvir falando de literatura no podcast 30:MIN.
Se quiser conversar, pode responder esse e-mail ou me encontrar no Instagram pessoal.
Nos últimos dias, eu:
Participei do episódio: 30:MIN 433 — “Solitário, de Chabouté”.