Anêmonas de Adônis #1 — Introdução
Uma trilha para caminhar entre deuses & outros seres portentosos
Foi durante uma brincadeira com Eros que Vênus se machucou com uma das flechas da criança. Frouxa na aljava, a deusa do amor e da beleza alvejou o próprio peito por acidente. O ferimento, mais profundo do que parecia, não foi curado antes que ela se apaixonasse pelo belo Adônis.
A deusa afastou-se dos céus e dos lugares que outrora frequentava porque só a presença de Adônis era seu conforto. Preocupada com a saúde do amado, advertiu: tome cuidado com os animais que a natureza arma, como os ursos, lobos e javalis, também pelo rancor que alguns deles guardam de mim.
Vênus conta que ajudou o jovem Hipômenes a conquistar o coração de Atalanta, mas que, no momento da união do casal, os dois apaixonados esqueceram de realizar os devidos rituais de agradecimento. Enfurecida, Vênus pergunta ao amado:
Adônis, não fui merecedora de que ele me agradecesse, de que me prestasse as honras do incenso? Nem se lembrou de dar graças, nem de me oferecer incenso! Entro em súbita fúria e, ferida pelo insulto, previno o exemplo, para que as gerações futuras não me desprezem e incito-me a mim mesma contra eles ambos —Metamorfoses, Ovídio (ed. 34, tradução de Domingos Lucas Dias)
Além de não fazer as devidas honras à deusa, Hipômenes ofende o caráter de um antigo templo sagrado — quase abandonado, ao que parece — e Vênus decide agir. Transforma o apaixonado em um leão selvagem.
Depois de prevenir Adônis, Vênus parte em uma viagem que não se concluirá porque, antes de chegar ao seu destino, ouve os gemidos de morte do jovem imprudente. Adônis ignorou os avisos divinos e partiu para caçar um javali — e falhou fatalmente. Depois de errar os golpes no animal, "enfurecido, logo o javali arranca com seu recurvo focinho o venábulo tinto com seu sangue e, arremetendo contra Adônis, trêmulo e em busca de refúgio seguro, crava-lhe os dentes todos abaixo da virilha, estendendo-o, às portas da morte, na areia dourada".
Vênus retorna ao corpo e culpa as Moiras, senhoras do destino, pela morte do amado. Então, para manter sua existência de alguma forma, a deusa do amor mistura sangue com néctar e o transforma em uma flor frágil, cor de romã: a anêmona (nome que deriva do grego ánemon, vento). Abaixo, o trecho de Metamorfoses em que Ovídio descreve o processo (ed. 34, tradução de Domingos Lucas Dias):
"(...) 'Teu sangue mudar-se-á numa flor. Tu, Perséfone, pudeste um dia
mudar em perfumada menta o corpo de uma mulher.
Não hei de, por causa da inveja, dar a este herói, o filho de Cíniras,
nova forma?' Depois destas a palavras, [Vênus] aspergiu o sangue
com néctar perfumado. Ao ser por este atingido, começa o sangue
a borbulhar da mesma forma que, à superfície de um lodaçal amarelo,
costuma surgir transparente bolha. E não demorou
mais de uma hora até que, do sangue, nascesse uma flor
de cor igual às que a romãzeira, que oculta a semente
debaixo de flexível casca, costuma produzir. Mas é de curta duração
o proveito que dela se colhe, pois, mal fixa e demasiado leve,
cai, sacudida pelos ventos, que lhe dão o nome"
Anêmonas de Adônis
Toda essa história do começo é para explicar e apresentar a próxima série de textos da Ponto Nemo, as Anêmonas de Adônis — um nome que combina com as Anemonações. Há muitos anos, tenho vontade de conhecer a fundo algumas narrativas mitológicas, principalmente as Metamorfoses, de Ovídio, e o Paraíso Perdido, de John Milton.
Resolvi registrar o percurso por aqui em um espaço sem data para acabar. O texto aberto é um convite, quase uma sugestão de leitura conjunta. Mensalmente, vou compartilhar impressões dos trechos que li. Não tenho a pretensão terminar os calhamaços em um mês, ainda estou refletindo sobre como a abordagem em cada texto será, mas a ideia é seguir um ritmo suave.
Sendo assim, os escritos vão seguir um percurso majoritariamente literário. A primeira parte do planejamento de leituras está disponível no fim da edição, mas vamos começar pela Mitologia Grega: A Teogonia, de Hesíodo.
Criei um chat, espaço que você acessa pelo aplicativo do Substack, para saber um pouco mais de como vocês se relacionam com as narrativas mitológicas. Recebi alguns relatos e sugestões interessantes. Fiquem a vontade para ler e escrever por aqui:
A série vai ser postada no espaço fechado das Anemonações, exclusivo para os inscritos na newsletter. Tenho refletido sobre a política dos textos fechados e conclui que todos serão abertos depois do período de um ano da publicação. Até lá, quem quiser ler os textos em dia, pode se inscrever pelo Financiamento Coletivo no Catarse ou conferir os planos aqui do Substack:
(Além disso, se você tiver interesse, mas está com problemas financeiros, pode me mandar um e-mail e a gente conversa, certo?)
Em alguma medida, os textos também vão dialogar com a próxima temporada, que estreia em março, sobre os Tricksters — aquelas entidades trapaceiras. Como o percurso começa com a mitologia grega, Hermes é um dos primeiros que vamos ter contato por aqui. Claro, caso lembrar daquela pessoa que sempre curtiu mitologia, não deixe de compartilhar:
Indicações & Panoramas
Caso esteja curioso para acompanhar as leituras, aqui estão os livros que pretendo ler ao longo do ano. As duas próximas edições devem tratar da Teogonia, de Hesíodo. Ajustamos o percurso a partir daí. Também, compartilho alguns materiais que me acompanharam nos últimos meses.
Livros — Mitologia Grega
Teogonia, de Hesíodo (ed. Hedra, tradução de Christian Werner)
O trabalho e os dias, de Hesíodo (ed. Hedra, tradução de Christian Werner)
Ilíada, de Homero (ed. Ubu, tradução de Christian Werner)
Odisseia, de Homero (ed. Ubu, tradução de Christian Werner)
Hinos Homéricos: tradução, notas e estudo, de Homero (ed. Unesp, compilação e tradução de Wilson Alves Ribeiro Jr. e tradução de Edvanda Bonavina Rosa)
Companheiros
Noites Gregas, de Cláudio Moreno (Podcast)
Mitografias, de Leonardo Henrique Tremeschin (Podcast & YouTube)
Os Mitos Gregos, de Robert Graves (ed. Nova Fronteira, tradução de Fernando Klabin)
Obrigado por ler e apoiar!
Nos próximos capítulos: o nascimento dos deuses, ou ‘a teogonia’.
Não deixe de conferir as últimas edições da Ponto Nemo.
Como assim culpar as Moiras??? Elas NUNCA erram!!! Curioso com a série e pronto para desbravar uns textos contigo. Li a Teogonia e O Trabalho e Os Dias faz pouco tempo para pesquisar para uma história, mas em outras traduções, da Iluminuras. A Ilíada e a Odisseia eu tenho da 34, e estão eternamente na estante do “depois eu leio”. Tudo indica que o depois é agora! (E se quiser bater diferentes traduções de qualquer trecho, me diz)