No ensaio Viagem em torno de uma mesa de trabalho, publicado na revista Serrote #32, Juan Villoro se dedica a esmiuçar o que é, talvez, um dos temas mais comuns na literatura: sobre o próprio ato da escrita.
Gosto particularmente da primeira parte do texto, quando o escritor mexicano reflete sobre a materialidade da escrita e a banalidade caótica daquele espaço — sem a magia tão comumente atribuída ao ato criativo. Villoro descreve esse espaço:
Vejamos o lugar dos acontecimentos: uma mesa com papéis desarrumados, objetos nem sempre úteis (clipes, borrachas, lápis com ou sem ponta, caixas contendo comprimidos, botões, bilhetes de metrô, um cassete sem gravador), recordações que apareceram ali misteriosamente (um apito, uma bola de borracha, um isqueiro), notas e recibos esquecidos, anotações que já não significam nada, post-its urgentíssimos, remédios para males do passado, fotos de família que perturbam mas têm valor de talismã, objetos quebrados, pedaços de alguma coisa que o tempo e a desmemória tornaram indecifráveis.
Esse lugar caótico e tremendamente normal resume a condição misteriosa do fato estético. Os achados surgem de um espaço comum que parece negá-los.
A magia pode ocorrer em circunstâncias tão banais? O pintor trabalha em um ateliê anárquico onde o uso progressivo dos materiais deixa vestígios nas paredes, nos sapatos e nas sobrancelhas, e onde as cores adquirem um destino. A mesa de um escritor é a negação de qualquer alquimia. O único assombro que poderia causar seria estar perfeitamente arrumada.
Quando penso nesse trecho, lembro também do que Bárbara Bom Angelo escreveu na newsletter Queria ser grande, mas desisti ao refletir sobre as mães que escrevem e a (não) rotina que no ato criativo. A descrição de Bárbara, logo na abertura da edição, talvez seja ainda mais precisa na descrição do espaço “caótico”, mas “tremendamente normal” que permeia o ato de escrita:
Quase nunca escrevo sentada à mesa. Esse lugar sagrado, com cadeira confortável, luz que entra suavemente pela janela. Um tempo de paz, sem barulhos, apenas o fritar da mente. Isso não me pertence. Escrevo em meio a gritos de “mãe”, a pedidos por mais comida, nas horas livres do trabalho, na sala de espera do médico.
As palavras também não se encontram num lugar só. Ocupam notas no celular, áudios para mim mesma. Essa é a cara da escrita para muitas mães. Sem longos períodos de concentração, aproveitando qualquer mínimo espaço de tempo.
Ao apontar tal processo, o que Villoro que é apontar que o processo de escrita é o do “surgimento do inexplicável em um ambiente comum”. Heidi Sopinka, escritora canadense ainda não traduzida, compartilhou no Literary Hub sua experiência em escrever usando roupas compradas em um brechó para sentir o personagem. Consigo pensar em poucas coisas que tão comuns quanto vestir um terno masculino de lã, peça comprada por Heidi.
Dessa mistura quase contraditória, o que o ensaísta defende é o surgimento de uma percepção de que o “mundo tangível é incompleto: a realidade factual não é o suficiente. É preciso imaginá-la, sonhá-la, reinventá-la” (ou sonhá-la, quem sabe?). O “preço” a se pagar pelo exercício que Villoro sugere não é o de sofrimento ou do escritor como um amaldiçoado, mas a constatação de que de escrever é um trabalho extenuante. Escrever cansa. Não só pelo exercício imaginativo, mas também porque “a maioria dos escritores não escreve porque sabe algo; escreve para saber”.
Quando inaugurei a Ponto Nemo, procurei evidenciar que a newsletter era um espaço de experimentações. Escrevo justamente aquilo que não sei — é com a escrita das edições que internalizo o que li, o que ouvi em entrevistas. Escrever me obriga a dar sentido e fazer ligações em todas as informações dispersas que encontro.
Inclusive… comecei a newsletter com um subtítulo que tentava me auxiliar no processamento dos lutos & todos os outros problemas políticos. Quem sabe, não é um impulso similar que me faça concluir o texto hoje, depois da minha frustração com o dia de ontem?
Também por isso, a escolha do nome Ponto Nemo — um espaço que é, também um antidestino, o ponto mais distante de terra firme, no sul do Oceano Pacífico. Ao longo desse ano de publicação, entendi que são poucos os caminho que poderiam me oferecer esse espaço além da newsletter — não pautada pelas redes sociais & outros algoritmos, mas pela recomendação de outras leituras, por amigos próximos.
A temporalidade dos textos aqui também parecem obedecer a um fluxo curioso, mas não inédito: marcada pelo dia-a-dia, mas também apta à leitura lenta, isolada.Reservada, mas não permanente. Penso na minha relação com revistas e a saudade (talvez mais nostálgica do que real) que eu tenho de folhea-las numa banca.
Foi pensando em refletir sobre essas particularidades e generalidades; sobre a escrita e também a leitura dos textos de newsletter que Vanessa Guedes (Segredos em Órbita) organizou o evento O Texto & o Tempo, que acontece nos dias 5 e 6 de novembro, totalmente online.
Fui convidado para oferecer a oficina Não-ficção na caixa de entrada e compartilhar um pouco a minha experiência na escrita da newsletter em experimentar e misturar com alguns tipos de escrita — e, também, falar sobre planejamentos e processos que envolvem a elaboração de uma temporada temática.
Além disso, temos outros nomes muito bacanas na programação que englobam várias áreas da escrita — tanto para conhecer nomes novos ou admirar quem você já gostava. A programação completa está aqui:
Você também pode ir para Sympla e garantir seu ingresso — que vale pelo fim de semana inteiro.
O evento também conta com ingressos sociais. São 20 vagas gratuitas para pessoas portadoras de necessidades especiais, jovens de baixa renda e pessoas não-brancas. É só enviar um e-mail para otextoeotempo@gmail.com.
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lindíssimas as reflexões ⭐️
uau! gostei demais desta edição <3
e obrigada pela menção tão carinhosa!