Correnteza # Maio/2025
algumas das coisas que correram na minha vida durante o mês de maio — livros, jogos, filmes, podcasts, quadrinhos e notas aleatórias
Na virada do mês, saiu mais uma contribuição minha para a revista Pesquisa FAPESP, intitulada Artistas com deficiência defendem a presença de corpos não normativos em cena. Comentamos sobre as pesquisas em artes cênicas e artistas PCD e encontramos algumas iniciativas bacanas no teatro, na dança e na performance e discutimos sobre as possibilidades poéticas de pensar em um corpo não-normativo desde a concepção da obra de arte. Não sei vocês, mas conhecia poucos artistas nesse campo. Penso que vale a leitura para ampliarmos o repertório. O acesso ao site é gratuito.
Hoje, temos uma edição menor:
Fui sugado pela leitura de Solenoide;
mas deu tempo de me decepcionar com Contra Fogo;
e de aproveitar Homem com H e Ritas.
Além disso, preciso fazer um aviso oficial: vou retomar a produção das temporadas em um outro formato e com outro foco e que vai envolver a edição e produção em formato de podcast. Logo devo reescrever e editar a descrição da campanha de arrecadação, mas manterei as faixas de apoio — mas haverá um custo alto de edição do programa e criação de uma identidade visual. Portanto, mais do que nunca:
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:.: CALHAMAÇO :.:
Solenoide, de Mircea Cărtărescu, ficou famoso. Desde que a editora Mundaréu publicou por aqui (com tradução direta do romeno por Fernando Klabin), surgiram muitos elogios ao romance de quase 800 páginas. Para mim, acho difícil começar a leitura de uma obra já precedida de tantos elogios — inclusive, Cărtărescu está na lista de cotados para o Nobel. Me parece que não estou lendo só o livro, mas também tentando encaixar as expectativas e comentários. É muito cansativo ficar dosando os dois movimentos.
Ainda mais em um livro como esse.
No começo, acompanhamos a história de um professor de romeno em um colégio periférico próximo ao fim de uma linha de bonde. Acompanhamos sua rotina desgastante, a presença de piolhos e carrapatos e os sonhos perdidos de um educador que não virou escritor. Mas, aos poucos, a escrita passa a se transformar em algo diferente. Parece estranho que, num momento, nos conte que a escola é pequena e térrea, mas em seguida narre como ele subiu incontáveis lances de escada em busca de uma sala — em certo momento, ele ainda dará aula na sala do 6º Ω.
Quando paramos pra perceber, estamos envoltos pelos sonhos, alucinações e obsessões do protagonista. Não há um ponto de fixação para compreender a narrativa, e nem precisamos. Acompanhamos seu pavor frente à morte e às vidas que não pôde viver — e ao mistério que envolve sua casa, construída em cima de um solenoide, uma bobina de ferro que gera campos eletromagnéticos e aberrações gravitacionais e que reflete na vida e organização da cidade de Bucareste com influências imperceptíveis.
Para construir esse caos, Cărtărescu se baseia em uma construção bastante ligada ao Unheimlich (termo alemão cunhado por Freud mais comumente conhecido como infamiliar ou inquietante). Apesar de relacionarmos frequentemente o termo à sensação de que é algo que parece deslocado, “como uma boneca inanimada que parece viva”, significa, na verdade, que a narrativa vai trazer alguns elementos curiosos (já comentei de forma mais aprofundada sobre isso no texto sobre A vegetariana, de Han Kang, e Homem de Areia, de E.T.A. Hoffman:
O primeiro deles é uma narrativa com duplos (ou doppelgängers); são personagens que confundem os limites do Eu ao passar por processos de multiplicação, fragmentação, confusão ou mescla — além de indicarem uma espécie de lei de retorno, em que surgem as mesmas pessoas, as mesmas ações, objetos ou símbolos. Em Solenoide, os duplos pululam: gêmeo perdido, uma versão feminina, um futuro paralelo possível, amores de mesmo nome… enfim.
Além disso, temos uma narrativa marcada pela questão dos medos e traumas que envolvem o processo da castração infantil; questões aterrorizantes no processo de crescimento. Por isso, sua estadia em um internado para crianças tuberculosas, os pavores de sua ida ao dentista e seus intensos pesadelos (inclusive, alguns sexuais) são elementos recorrentes, inclusive com os símbolos que os representam.
Por último, a percepção de um mundo que funciona de acordo com regras fantásticas: coincidências improváveis em números que surgem em um papel e abrem cofres em outra ponta da cidade; pessoas que marcam sua infância na biblioteca e ressurgem como guardiãs; a ideia de que sua individualidade é o que define a experiência coletiva; e também o pavor, uma sensação de horror cósmico que surge ao contemplar a infinitude do universo, a pequenez da existência e a possibilidade de um ser que escapa da dimensão humana da existência.
Não são os únicos elementos que definem esse estranhamento e existem alguns outros, como a presença de um passado recorrente, que não para de retornar, mas me parece que esses são os mais presentes nessa narrativa.
Com isso, acompanhamos algumas crises sobre a forma: (1) muitas vezes apresentado como grotesco, o corpo aparece como um recipiente crítico, que comprime a mente; (2) o pensamento que emana da mente também tem suas limitações, que rejeita a alucinação, os sonhos e aquilo que não compreende racionalmente; (3) a obra de arte, mas o romance, em específico, são limitantes: fazemos uma literatura que não busca a transcendência ou a fuga — como uma imagem recorrente, lemos livros que nos mostram portas belas e rebuscadas, mas que não se abrem; (4) assim como nossa própria existência é limitante — olhamos o dedo que aponta ao invés do lugar apontado, como um gato que lambe o indicador do dono sem compreender a mensagem indicada. Presos no fluxo do desejo e da morte, vivemos sem conseguir compreender os sinais que nos chegam de outra dimensão.
Para aprofundar essas crises, Cărtărescu insere cientistas que realizam experimentos com enforcamento, mundos e corpos completamente tatuados, manipuladores de sonhos, modelos matemáticos e geométricos que procuram simular a quarta dimensão em um cubo de três dimensões e os paralelos possíveis entre os vermes, a humanidade e Deus.
No fim, gostei bastante. Fiz a leitura em um curto período de tempo para conseguir entregar uma resenha para publicação (logo compartilho o link por aqui, com algumas questões mais técnicas e aprofundadas para quem ficou curioso) e quero reler em um futuro próximo.
:.: CONTRA TUDO, CONTRA TODOS :.:
No ano passado, conheci um livro cuja premissa me pegou bastante: Contra Fogo, de Pablo L.C. Casella, contaria a história dos brigadistas voluntários que apagam incêndios com uma forte pegada estilística e com marcas de oralidade.
Além disso, o próprio autor é politicamente ativo na preservação do meio ambiente. É analista do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), atuou por duas décadas como integrante da equipe que administrou o Parque Nacional da Chapada Diamantina, na Bahia, e colocou em seu romance de estreia o que conheceu.
Por isso, queria ter gostado. Queria mesmo.
Infelizmente, é um livro de oportunidades perdidas ou de pontas soltas.
Acompanhamos a história ao lado de Deja, um dos brigadistas voluntários, que nos conta tudo em primeira pessoa. Deja é um herói trágico: preso entre uma necessidade visceral de apagar o fogo, preservar a diversidade e auxiliar a Terra — uma figura maternal quase divina, vítima dos crimes ambientais e ele, um expiador dos pecados que carrega a culpa da humanidade.
O problema maior é que, enquanto me parece que devíamos sentir as dores do dilema “quais sacrifícios e dores esses brigadistas voluntários precisam aguentar pra cuidar do Meio Ambiente por eles e pelos outros?”, Deja parece inconsciente da tragédia que vive: não passa por transformações, não se conecta com as outras personagens, não entende onde erra, nem propõe um exercício de enxergar as outras perspectivas. Nenhuma das escolhas pareceram, de fato, dilemas.
Em uma das cenas, conversa com a esposa sobre sua ausência em casa como pai e companheiro. O protagonista diz que não entende. Poucas páginas depois, um amigo repete o mesmo discurso. Agora, compreende. Mas a compreensão não interfere em nada, nem como farol, nem como mau exemplo. Ignorada.
Depois de passar por perrengues em dois casamentos e duas paternidades, conflitos com seus amigos e conflitos com os poderes públicos, Deja se vê sozinho no buraco onde se enfiou. No entanto, sua conclusão é: finalmente, agora não tenho cabrestos. A profundidade e tragédia do herói despedaça. Ele nunca teve nada a perder, apenas uma vontade egocêntrica de satisfazer os próprios desejos e mitigar sua culpa.
Com a clara ausência de respeito pelos sentimentos, próprios e dos outros, acompanhamos Deja de longe. Inclusive, não só se perde a conexão com o leitor, mas também com todas as subtramas e repertórios que aparecem como oportunidades perdidas: os problemas de alcoolismo, as crises parentais, as distâncias dos laços afetivos, a economia turística, as dificuldades financeiras, a homossexualidade silenciada, o auxílio dos companheiros não-humanos, a trajetória política do IBAMA e do ICMBIo que correm de plano de fundo e a movimentação dos aportes políticos, os fazendeiros e seus incendiários, até mesmo questões de feitiçaria. Deja é incapaz de parar cinco segundos para observar qualquer história que não a própria.
Por fim, importante ressaltar que o desenvolvimento estilístico da oralidade do interior da Chapada também é irregular. Alguns momentos são bastante interessantes, outros são linguisticamente irregulares — além do conhecido caso de que todos da região da Chapada falam com marcas orais, mas o português de outras regiões seguem a norma culta e até o inglês é transposto corretamente.
:.: HOMEM COM H & RITAS :.:
O primeiro dos filmes que fui ver foi Homem com H, cinebiografia de Ney Matogrosso. Gostei bastante. Da infância aos dias de hoje, acompanhamos os anos formação de Ney, o florescer de sua carreira artística, seus grandes shows, seus conflitos com a ditadura, as diferenças entre sua persona artística e a figura privada, os relacionamentos amorosos e afetivos ao longo de sua vida e encerramos com o último show que realizou até a finalização do filme.
Com uma longa vida, o filme tem a ingrata tarefa de selecionar os trechos que entram na narrativa, mas achei que, num geral, foram boas escolhas. Mas destacaria três coisas que parecem ter se destacado: (1) a atuação de Jesuíta Barbosa e o trabalho dele no filme na busca de emular o movimento corporal de Ney Matogrosso; (2) a retratação dos corpos e das cenas de sexo, majoritariamente com corpos masculinos, que ficou espetacular; (3) a sensibilidade para tratar de um tema que, me parece, tem ganhado espaço para discussão e compreensão, que foi a epidemia de HIV. Não sei se tomei conhecimento há pouco tempo, ou se a esfera pública tem discutido a irresponsabilidade desse período com mais afinco, mas me parece importante compreender todos os estigmas, dores e perdas do período — e seus reflexos que perduram até hoje. Vi, recentemente, que a moda masculina se tornou “sóbria” e “básica” na época do pavor do HIV e que, “para não parecerem gays”, os homens adotaram um estilo mais neutro (e sem graça).
E fazendo um gancho entre dois grandes atores da música brasileira, vi também a cine(auto?)biografia da Rita Lee, Ritas. (E o grande gancho é que o viúvo de Rita Lee, Roberto de Carvalho, tocou com Ney por muitos anos e foi o cantor que apresentou os dois pombinhos.)
Depois de ler os dois livros, ver à exposição do MIS e assistir à peça (afinal, moro com uma das maiores fãs dela. tenho certeza.), achei que teria pouca coisa a conhecer sobre a vida de Rita Lee, mas fui positivamente surpreendido! Muito material inédito e/ou de difícil acesso: temos gravações da Rita Lee ainda em vida, gravando a própria rotina já velhinha, temos shows raros com filmagens restauradas, trechos de reportagens e entrevistas e até cenas do programa TVLeezão. Apesar de um probleminha de ritmo na segunda metade do filme, é bem legal e acrescenta bastante na biografia dela.
(Curiosamente, dois artistas que beberam muito do glam rock e resolvi ceder a uma vontade que eu tinha e comprei dois livros sobre o Bowie, um mais geral e outro especificamente sobre o Ziggy Stardust. Espero contar um pouco mais sobre isso depois.)
:.: RECEBIDOS :.:
O mês de maio foi bastante recheado, então preparem-se!
Da editora Rocco, recebi dois lançamentos nacionais de amigos! O primeiro, Carga Viva, de
, é uma história em duas linhas do tempo entre o presente e os anos 1980. Ansioso para ver as questões sociais que aparecem por aqui (e também me prometeram um elemento esquisito!); já em Moeda de Troca, de Lucas Mota, acompanhamos um motoboy que se vê no centro de uma luta de classes em um mundo onde o Ox é um metal que substitui dinheiro e também fonte de magia para famílias ricas.Já a Morro Branco nos enviou uma releitura queer de Pinocchio: A vida entre marionetes, de TJ Klune (trad. Rita Süssekind). A narrativa tem um coletivo de personagens que parecem interessantes: um androide inventor Giovanni Lawson, uma enfermeira robô sádica, mas agradável, um pequeno aspirador de pó carente, e um humano chamado Victor Lawson. No entanto, as coisas dão erradas quando Giovanni é capturado e Victor precisa resgatá-lo no antigo laboratório na Cidade dos Sonhos Elétricos.
Mês passado, li Imagens Estranhas, de Uketsu, e, nesse mês, a Intrínseca enviou o novo livro do autor: Casas Estranhas (trad. Jefferson José Teixeira). Num bairro residencial no Japão, um casal percebe que sua casa tem um cômodo estranho e precisa saber o que fazer. Por isso, convidam um arquiteto e seu ajudante ocultista para saber o que mais existe de errado por lá — e o problema é que tem muito mais do que só um cômodo.
A editora Tinta da China enviou Salazar e o poder: a arte de saber durar, livro de Fernando Rosas que ganhou o prêmio PEN de ensaios em Portugal. Aqui, por o pesquisador vai explicar como a mais longa ditadura europeia do século XX se sustentou a partir de cinco fatores estruturais: a violência contra as oposições; o controle político das Forças Armadas; a cumplicidade da Igreja; o corporativismo; e a investida cultural no “homem novo”. Parece um estudo bastante robusto e interessante.
A última tradução do livro de Richard Power, A trama das árvores, chegou por aqui há algumas semanas graças à editora Todavia. Estou bastante curioso com esse calhamaço que promete misturar a história de diversas pessoas com o percurso de vidas vegetais e reflexões sobre a existência e a catástrofe climática. (trad. Carol Bensimon.)
Comentei na edição sobre A inteligência das aves, e a editora Fósforo me enviou A sabedoria das corujas, ambos de Jennifer Ackerman. Neste lançamento, veremos as últimas descobertas no campo científico das corujas, além de discutir sua presença em narrativas e em diversos outros campos que discutem o símbolo desta ave graciosa & assassina. (trad. Reinaldo José Lopes e Tania Lopes.)
Comecei há pouco tempo a leitura de Orbital, de Samantha Harvey (trad.
), enviado pela editora DBA. O livro, reflexivo e filosófico, aborda a história de seis tripulantes de várias nacionalidades a bordo de uma estação espacial, refletindo sobre a existência, política e questões ambientais observando a Terra ao longe. Estou curtindo a leitura até aqui.Da parceira com a Cia. das Letras, recebi:
A astrologia, de Liv Strömquist, último quadrinho da artista sueca publicado pelo selo Quadrinhos na Cia. que mantém o bom humor, ativismo político e críticas sociais pelo seu ponto de vista feminista. Agora, ela faz uma reflexão sobre os estereótipos dos signos astrológicos. (trad. Kristin Lie Garrubo.)
No selo Paralela, fiquei curioso para ler Os dois amores de Hugo Flores, livro de Felipe Fagundes que vai abordar a descoberta amorosa de um homem e discutir os papéis performativos que envolvem a sexualidade de um homem gay.
Também recebi O primeiro leitor, livro ensaístico de Luiz Schwartz sobre suas memórias sobre os livros, suas relações com escritores conhecidos e o ofício de editor em seu papel de leitor privilegiado.
Por fim, da JBC, recebi o primeiro de três volumes do mangá de terror Fobia. O livro é uma coletânea de cinco contos que envolve personagens marcados por medos terríveis e estou bastante curioso para conferir.
Obrigado por ler até aqui!
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Outras produções estão disponíveis no meu site pessoal e você pode me ouvir falando de literatura no podcast 30:MIN.
Se quiser conversar, pode responder esse e-mail ou me encontrar no Instagram.
No último mês, eu:
Publiquei na revista Pesquisa FAPESP a reportagem Artistas com deficiência defendem a presença de corpos não normativos em cena;
Participei do episódio: “30:MIN 532 – Literatura e trabalho: operários, greves e herdeiros”;
Participei do episódio: “30:MIN 533 – Trilogia de Copenhagen, de Tove Ditlevsen”;
Participei do episódio: “30:MIN 534 – As melhores despedidas da literatura”.