Anemonações #15 — Hibridismos & simbioses
Misturas interplanetárias do novo desenho da HBO Max, "Planeta dos Abutres"
(Texto publicado em 17.11.2023, primeiro para os apoiadores da Ponto Nemo. O texto ficará aberto no dia 09.02.2024. Se quiser receber esses textos em primeira mão e apoiar a continuidade do projeto, considere apoiar via Substack ou Catarse)
Cena 1 — Enquanto conversam, um homem e uma mulher cutucam uma espécie de anfíbio azul alienígena e guardam em uma sacola com água. Eles estão se preparando para uma jornada difícil em um lugar perigoso. Ao que tudo indica, esses seres servirão de auxílio.
Cena 2 — Prontos para entrar em uma caverna, o homem e a mulher retiram o anfíbio da sacola e a encaixam no rosto, como uma máscara. O anfíbio gruda no rosto deles como se fosse uma ventosa, mas antes insere dois filamentos tentaculares pelo nariz dos humanos e gruda uma reentrância na boca dos protagonistas. Eles adentram a caverna, usando os anfíbios como uma máscara de proteção contra os esporos fúngicos que flutuam na região.
Cena 3 — Os dois caminham para a caverna. Cogumelos de todos os tipos brotam do solo. Algumas vezes, cadáveres humanos são utilizados como substrato dos fungos. Próximos do objetivo final da missão, a mulher se assusta. Sua respiração ofegante desestabiliza o anfíbio — que descola de seu rosto. Imediatamente, a mulher respira os esporos e cogumelos brotam de suas orelhas, braços e pernas. Ela vê o corpo dos antigos conhecidos serem reanimados, em uma forma cadavérica, esponjosa e repleta de fungos. O homem, assustado, tenta ajudar, mas precisa correr até uma abertura e flutuar para fora — manobra que só realiza graças à uma espécie de peixe-balão. Enquanto flutua, acima da caverna, cogumelos do tamanho de árvores formam um tipo diferente de floresta.
Foi essa sequência, na metade do primeiro episódio de Planeta dos Abutres, que me conquistou. Filmei a cena e mandei para alguns amigos. Em seguida, devorei a série na próxima semana. Foi uma história muita boa! Repleta de hibridismos, simbioses, cogumelos & robôs. Deixo o curta com o episódio piloto da série abaixo para quem quiser conferir antes da leitura do texto.
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Planeta dos Abutres
Planeta dos Abutres é uma série da plataforma HBO Max, criada por Charles Huettner e Joe Bennett. Como dito acima, a animação surgiu de um outro curta anterior, publicado pela dupla em 2016, que consegue passar a mesma sensação dos moradores do planeta que acompanhamos na série publicada em 2023.
No desenho, acompanhamos uma série de sobreviventes da nave Deméter-227 que naufragam no planeta Vesta — um planeta pautado por relações híbridas e simbióticas bastante complexas... e não só entre os habitantes nativos, mas também pelos próprios sobreviventes que se adaptam ao funcionamento daquele planeta.
Todos os personagens, divididos em três núcleos espalhados ao redor de Vesta, entram sintonia com o ambiente que ocupam. Mas, como cada sintonia exige uma frequência diferente, as questões que os arcos narrativas levantam trazer pontos de vista distintos sobre as relações entre seres humanos e não humanos — sejam eles orgânicos ou não.
Sam e Ursula
A primeira dupla apresentada na série é a de Sam, um homem grisalho e velho que tinha uma posição de comando na nave, e Ursula, uma mulher mais nova que parecia trabalhar na nave como uma espécie de botanista.
Em uma das suas primeiras cenas, Sam e Ursula removem glândulas, cipós e outros materiais caídos da nave para criar um mecanismo complexo que pode se comunicar com a nave e fazer com que ela pouse em Vesta. A criação dessas máquinas evidencia uma espécie de existência ciborgue-simbiótica pelos sobreviventes da ilha, já que suas ferramentas e materiais podem ter origens orgânicas ou inorgânicas.
Anfíbios podem atuar como máscaras de oxigênio ou balões emergenciais. Glândulas de animais pode ser usadas como lanternas. Fungos viram acendedores de fogueira. Mas nada disso impede a utilização de um GPS tecnológico, de barracas de acampamento ou das mochilas para as trilhas.
Importante notar que nenhuma dessas existências não humanas parece existir para além do seu papel enquanto ferramenta ou objeto. Mas há uma diferença em relação aos pontos de vista que eles adotam. Na mão de Sam, a racionalidade impera: tudo gira ao redor da utilidade prática e objetiva que dada em sua interpretação. Ursula, por outro lado, está aberta ao encantamento e à sensibilidade das outras formas de vida. Em um certa conversa, quando Sam questiona parte da origem de seus conhecimentos, ela diz: “instinto”.
Como veremos nos outros núcleos, não há ingenuidade na sintonia com as outras consciências. Diversos tripulantes que conseguiram chegar ao planeta Vesta, não resistiram. Ainda outros, ao longo da série, serão esmagados antes mesmo de entender a lógica do novo espaço. Nesse fluxo de adaptação, Ursula procura compreender os seres — tanto as outras formas de existir, como os próprios instintos —, mas Sam é mais rígido. Seu duplo, fruto híbrido corrompido, inicia um arco onde a inflexibilidade e contaminação é perigosa, hostil e severamente mortal… bem diferente de como Ursula e os fungos interagem no primeiro episódio.
Kamen e Hollow
O segundo núcleo da série é composto por Kamen, um homem ruivo com um cargo de confiança dentro da tripulação, e um parceiro inusitado. Kamen é apresentado de forma angustiante. Há semanas preso dentro da nave, vemos ele com barba e cabelo compridos, bastante magro, chorando, rindo e se contorcendo no chão de maneira errática. Momentos depois, ele espreme seu braço por uma pequena fissura no casco da nave e tenta capturar algum alimento.
Quando vemos sua nave, entendemos o motivo: o trajeto que a cápsula fez na fuga da Deméter-227 deu no topo de árvores enormes. Todas as portas e aberturas estão presas por galhos e troncos enormes. Pelos flashbacks que permeiam a narrativa, conhecemos Kamen: além do cargo de destaque, era um homem violento e descontrolado — diretamente relacionado com o acidente do cargueiro espacial.
É através da fuselagem da nave que Kamen conhece seu futuro companheiro de jornada, Hollow, espécie originária de Vesta com poderes telecinéticos, telepáticos e empáticos. Tais seres hipnotizam suas vítimas com uma projeção azul clara em suas testas, enquanto vomitam uma gosma preta que flutua e é ingerida pelo simbionte alvo. A comunicação entre o hipnotizador e o hipnotizado, então, acontece em um estado de quase alucinação e pela ativação de memórias específicas que comunicam aquilo que os seres querem comunicar.
Depois de ser humilhado por um membro mais forte do seu bando, Hollow encontra Kamen por acaso, o liberta da nave e firma a parceria pela hipnose e consumo gelatinoso. Os flashbacks são fruto dessa nova relação simbiótica (e é também quando conhecemos a relação amorosa entre Kamen e Fiona, outra tripulante da nava que está desaparecida). Se Hollow quer mostrar que está bravo, evoca cenas de briga entre o casal. Se quer que Kamen o siga, projeta Fiona dizendo “por aqui” e outras comunicações nesse caminho.
O intuito dessas relações simbióticas é que os seres hipnotizados possam trazer alimentos. Quando conhecemos os seres pela primeira vez, alguns hipnotizam pequenos animais verdes que recolhem frutas pelas árvores e trazem até eles. No entanto, quase como um contraponto, o núcleo de Kamen e Hollow apontam pelo caminho bélico e conflituoso.
Mais do que um caçador ou predador, Kamen se torna um assassino feroz. Não se trata aqui de um paralelismo entre consumo de carne é igual a vilania, apesar da existência de um farto repertório de outras fontes de comida no planeta e do caráter onívoro da dieta de Hollow. Há aqui um caminho de corrupção. O consumo alimentar é ganancioso. As carnes apodrecem pela demasia de oferta, Kamen sente prazer nessa posição de poder. Em determinado momento, ambos caçam e se alimentam de semelhantes— humanos e alienígenas.
Quando Ursula K. Le Guin propõe a ficção como uma cesta para se afastar das narrativas violentas; para valorizar a coleta ao invés da caça (e por isso retomo essa imagem, com um paralelo tão propício à jornada da dupla), ela alerta sobre o perigo da ingenuidade e da falsa crença de que o hibridismo, a simbiose ou a convivência coletiva em uma mesma comunidade/cesta é pacífica e sem conflitos. Ao defender sua posição como uma contadora de histórias coletora, ela afirma sua humanidade longe das narrativas estruturadas pela noção de progresso e conflito, mas não como
uma humana pouco agressiva ou pouco combativa; que isso fique claro. Eu sou uma mulher envelhecida e zangada, impondo-me com a minha bolsa, lutando contra bandidos. E, no entanto, nem eu nem ninguém me considera heroica por fazer isso. É apenas uma daquelas malditas coisas que têm que ser feitas para se poder continuar coletando aveia selvagem e contando estórias (n-1 edições, 2021, tradução de Luciana Chieregati e Vivian Chieregati Costa).
Há aqui uma busca pela violência, a tentativa da resolução do conflito pelo sangue — mas que não nega a parcela complexa do fenômeno, que visualiza um potencial criador (e até de transformação daqueles envolvidos). Há aqui uma reflexão sobre as misturas perigosas que a simbiose e o hibridismo pode trazer.
Azi e Levi
Por fim, temos a dupla Azi e Levi. Azi é uma operadora do depósito de carga da Deméter-227. Reclusa, quando estava à bordo não participava de festas, não permanecia nas tripulações por muito tempo e quase não bebia álcool. Seu cabelo é milimetricamente medido, raspado e desenhado.
Levi, robô de operações do terminal de carga, é o companheiro de isolamento — ou, fazendo jus à brincadeira proposta pela legenda do desenho no HBO Max, companheira, ainda que o correto talvez seja a opção pelo pronome neutro, como em Salmo para um robô peregrino, de Becky Chambers com tradução de Fábio Fernandes. No entanto, se Azi é guiada pelo pragmatismo, Levi foi contaminado por um musgo amarelo e sua personalidade se torna cada vez mais emocional, reflexiva e criativa.
Levi tem instintos e impressões sobre o perigo... até medo, quem sabe. Levi começa a sonhar. Compõe músicas. Cria santuários para os animais. Aos poucos, ele compartilha suas preferências com Azi. Comenta sobre como gostaria que seu corpo fosse tratado, destaca preferências... e o mais bonito nessa relação é que Azi escuta. Respeita. Apesar da relutância inicial, compreende que Levi não é mais o robô que saiu da nave, mas um ser totalmente novo & híbrido.
(No futuro, em outro momento da trama, quando Levi e Azi se reencontram, ocorre um abraço que marca uma mudança brusca na jornada das duas personagens: Azi cria uma relação de afeto, demonstra suas emoções & se permite tocar outras pessoas, dar abraços. Levi, por outro lado, está em sua forma mais híbrida, convocado por seu afeto por Azi. É uma cena belíssima.)
Mas é o núcleo de Azi que traz um dos motivos para a trama perder sua ênfase no hibridismo e simbiose de Vesta quando apresenta um grupo paramilitar que tem a intenção de coletar os destroços do cargueiro destruído com personagens egoístas e guiados pela noção de hierarquia.
Apesar disso, a conclusão da narrativa e o desenvolvimento dos três núcleos — até o iminente encontro de todos eles — é bastante satisfatória. Levi, principalmente, ao nos apresentar uma simbiose completa entre orgânico e inorgânico mostra uma espécie de existência que mistura Solaris, de Stanislaw Lem, com os episódios mais filosóficos e espirituais de Hora de Aventura… além disso, penso que, talvez, a série nem precise de uma segunda temporada.
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